Lidando com riscos entre a paranoia e a negligência

Apocalipse Now
18 abr 2021
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Quindim engorda, caipirinha dá ressaca, sexo engravida. Aviões caem. Bancos quebram, o amor parte corações. Viver mata. Inexiste atividade humana, na verdade inexiste existência, sem risco. Não se trata de uma constatação nova, mas segue sendo muito curioso (ou fascinante, ou revoltante, ou aterrador) o que as pessoas fazem com ela.

Alguns têm uma predisposição para confundir “existem riscos inevitáveis” com “todos os riscos são iguais” ou “tomar cuidado é bobagem”. Claro que ninguém vive assim o tempo todo (ou, se viver, não será por muito tempo). Mas a relativização extrema dos riscos e a substituição de cautela por fatalismo muitas vezes serve de chave para justificar comportamentos imprudentes – “Vamos lá! Quer viver para sempre?” – e se presta à defesa de interesses nem sempre legítimos.

Por exemplo, durante muito tempo – depois que a batalha para esconder do público o vínculo entre cigarro e câncer já estava perdida – a indústria do tabaco usou o argumento de que a vida está cheia de riscos inevitáveis, que importa mais um?, tanto para combater regras de “proibido fumar” quanto para glamurizar seu produto, tentando revesti-lo numa aura de rebeldia e aventura. Até o grande Millôr Fernandes (1923-2012) caiu nessa esparrela, escrevendo certa vez:

 

“Enorme percentual de fumantes disposto a continuar fumando, apesar de ameaças de câncer, enfizemas e outras quizílias. O fumo é realmente um vício idiota. Mas os fumantes que persistem em fumar têm um vício ainda mais idiota – a liberdade. Provando que nem só de pão, e de saúde, vive o ser humano”.

O que escapou ao Filósofo do Méier, nessa ocasião, foi a antinomia fundamental entre “vício” e “liberdade”. O viciado, por definição, não é “livre” em relação àquilo que o vicia.

 

Liberdade de quem?

Abstraindo, por um momento, o enorme poder de adição da nicotina, o argumento melhora um pouco; mas soçobra novamente quando trazemos para a conversa a questão do fumo de segunda mão, ou passivo – o risco à saúde dos (e o incômodo para os) não fumantes que se encontram nas imediações. Afinal, eles também têm direito de ser livres – livres da fumaça, no caso.

A equação milloriana só se aplicaria, caso fosse mesmo válida, ao fumo tal como praticado em clubes fechados de fumantes, ou enquanto vício solitário.

De qualquer modo, há quem tente aplicar raciocínio semelhante à situação atual de combate ao novo coronavírus, seja enquadrando a resistência ou desobediência às recomendações e regras de isolamento social como “rebeldia” romântica (“nem só de saúde vive o ser humano”) e afirmação da liberdade individual: quem vai se contaminar sou eu, xô Estado-babá.

O problema, claro, é que a pandemia representa um risco coletivo enorme – muitíssimo maior do que o fumo passivo. O problema de fundo não é o risco que o indivíduo assume de modo (supostamente) consciente e voluntário, mas o risco que sua escolha impõe a terceiros.

Uma pessoa contaminada, na fase assintomática (e mais contagiosa) da doença é um perigo para todos os que se aproximam dela, ou circulam nos mesmos ambientes. Mal comparando, você é livre para soltar fogos quando seu time ganha, assumindo o risco de o foguete estourar em suas mãos, mas não se estiver dentro de um ônibus lotado.

 

Cautela demais

O extremo oposto do fatalismo irresponsável é a expectativa de risco zero, algo muito fomentado – às vezes por ingenuidade, às vezes de forma perversa – no campo da alimentação e da saúde.

Produtos ditos “naturais” vendem-se com a promessa de que seriam livres de riscos e de efeitos colaterais; ao mesmo tempo, normaliza-se a expectativa de que novas tecnologias de produção de alimentos, como a modificação genética, e os medicamentos industrializados, provem-se “100% seguros”.

Mas a promessa é falsa e a expectativa, irrealizável. As principais fontes de contaminação de alimentos são totalmente naturais: microrganismos e toxinas produzidas por microrganismos. Alimentos in natura, não processados, como leite cru, muitas vezes são mais perigosos para a saúde do que os que passaram por algum tipo de tratamento artificial, como a pasteurização.

No campo dos medicamentos, remédios sintéticos – em que moléculas, muitas vezes identificadas originalmente na natureza, são produzidas de modo artificial e usadas na fabricação de comprimidos, injeções, etc. – permitem um controle de dosagem e pureza muito maior do que é possível no consumo da fonte natural do princípio ativo. Aliás, enquanto eu dava os toques finais neste artigo, recebi a notícia de que a Dinamarca passa por um surto de salmonela causado por um medicamento feito de ervas.

A expectativa irrealizável de segurança total é empregada, de forma rotineira, para bloquear a adoção de tecnologias potencialmente benéficas, da mesma forma que o fatalismo (“viver é uma aposta”) é mobilizado a favor da adoção (ou da manutenção no mercado) de tecnologias que trazem muito mais riscos do que benefícios.

 

Equilíbrio

Num mundo ideal, seríamos capazes de sopesar riscos e benefícios, identificar riscos evitáveis, os custos de evitá-los, quais riscos novos são trazidos pelo fato de estarmos evitando os antigos, etc.

No mundo real, somos presas de nossos próprios vieses psicológicos. A percepção de risco de cada um é influenciada, e muitas vezes distorcida, por experiências pessoais marcantes, exposição à mídia e preconceitos vários. Violência e grandes desastres são muito mais raros do que doenças infecciosas e acidentes envolvendo poucas pessoas, mas há quem tenha mais medo de assalto do que de coronavírus (no ano passado inteiro, houve 43.892 mortes causadas por crime no país; o total de mortos pelo vírus já era mais do que o dobro disso no fim de julho), e a maioria das pessoas sente mais temor ao embarcar num avião do que ao sair de carro (acidentes de trânsito mataram 80 pessoas ao dia no Brasil, em 2020; acidentes aéreos mataram 132 pessoas no ano inteiro).

Neste mundo real, tentamos educar nossa intuição do melhor modo que conseguimos, e contamos com profissionais especializados e agências reguladoras para cuidar de situações mais complexas. Essas agências tendem a ser alvo dos lobbies da cautela absoluta e do deixa-pra-lá promovidos por interesses políticos, ideológicos e econômicos e, por conta disso, a qualidade de suas decisões têm altos e baixos.

 

Arriscando

Há diferentes maneiras de caracterizar risco, mas a maioria gira em torno de alguma combinação dos conceitos de probabilidade e perigo.

Para sequestrar um exemplo que a Natalia Pasternak usa, tubarões são perigosos, mas se você nunca entrar no mar sua probabilidade de encontrar um é zero, logo seu risco de ser atacado por tubarões também é zero (a menos que você seja um personagem da série Sharknado, claro).

Já se você for se banhar numa praia onde tubarões são vistos só muito de vez em quando, o risco sobe, mas talvez não chegue a ser alarmante; o equilíbrio risco/benefício pode muito bem ainda favorecer o mergulho. Outra praia, onde os salva-vidas puseram uma placa “CUIDADO, TUBARÕES!”, é uma história bem diferente.

Um modo de quantificar risco é multiplicar o valor daquilo que se tem a perder (do que está em perigo) pela probabilidade de a perda ocorrer. Quando há vidas em jogo, a conta fica complicada – quanto vale a vida humana? – e surge a tendência de achar que nenhum risco é baixo demais (já que o valor pode ser considerado infinito), caindo-se aí na armadilha da cautela absoluta – ou em seu oposto, o niilismo do foda-se, do deixa-pra-lá.

É claro que, com exceção de casos patológicos, todos que caímos nesse impasse damos um jeito de, em algum momento, quebrá-lo. Uma possibilidade é parar de olhar para cada risco individual como se existisse num vácuo, e compará-lo ao risco das outras coisas que poderíamos decidir fazer – ou ao de não fazer nada.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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