O preço da credibilidade é a eterna vigilância

Apocalipse Now
3 abr 2021
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titanic

 

Um assunto de que costumo tratar com frequência, quando me convidam para dar palestras (hoje em dia, via internet) sobre comunicação da ciência, é o dos chamados “indicadores indiretos de credibilidade”. Esses indicadores são emblemas, sinais – como um carimbo na testa ou, mais comumente, uma anotação no currículo – que dizem que Fulano S. Beltrano é competente num determinado assunto X; que as coisas que ele diz e pensa sobre X devem ser levadas a sério.

Falo muito sobre o assunto, enfim, mas não me lembro de já ter escrito a respeito. Este artigo aqui vem, então, para preencher a lacuna que, espero, não esteja entre aquelas “muito necessárias”.

Os indicadores são “indiretos” porque, como deve ser óbvio, a única prova real de competência, qualquer tipo de competência, é uma demonstração prática de seu uso: nenhum pedaço de papel, papiro ou pergaminho, não importa a qualidade da caligrafia, tem, em si, o poder de garantir que o médico sabe do que está falando ou que as contas do engenheiro estão corretas.

As necessidades da vida real, no entanto, muitas vezes tornam impraticáveis os testes diretos – que, de qualquer modo, podem ser muito caros, demorados e produzir resultados que leigos no assunto seriam incapazes de avaliar adequadamente.

Além disso, num ambiente hipersaturado de informação como o atual, saber a quem ouvir, antes mesmo de qualquer juízo crítico, é fundamental para evitar um naufrágio completo da limitada capacidade humana para prestar atenção no que quer que seja. Daí a necessidade e a importância cada vez maiores de emblemas como diplomas, títulos, filiação a sociedades de interesse especializado, etc., para sugerir às pessoas não apenas que serviços contratar, mas o mais básico – para que lado olhar.

 

Heurística social

Nesse aspecto, os indicadores indiretos de credibilidade são heurísticas sociais. Heurísticas são atalhos cognitivos, estratégias para economizar tempo e energia em nosso trabalho incessante de formar crenças, tomar decisões e tirar conclusões.

Por exemplo, em vez de dividir 71.461 exatamente por 3.107, limitamo-nos a perceber que os dois números diferem por uma ordem de grandeza, e que o primeiro dígito do maior é pouco mais do que o dobro do primeiro dígito do menor. Então dizemos, heuristicamente, que um é “cerca de 20 vezes maior” do que o outro.

A economia de tempo e trabalho, no entanto, cobra um preço em termos de precisão. No exemplo acima, o quociente correto é 23. Boas heurísticas produzem resultados “bons o suficiente na maior parte do tempo”, ou “para a maior parte das aplicações práticas”. Uma heurística útil gera um balanço entre esforço evitado e precisão perdida que é positivo.

Problemas graves podem surgir, no entanto, quando não nos encontramos mais “na maior parte do tempo”, nem estamos mais lidando com “a maior parte das aplicações práticas”.

No caso dos indicadores indiretos de credibilidade, seu valor heurístico torna-se negativo quando o processo de concessão de credenciais é corrompido, quando instituições credenciadoras são capturadas por interesses corporativos ou respondem a critérios que nada têm a ver com a competência específica, ou quando a percepção crucial de que há uma distinção a ser feita entre indicador de competência e competência efetiva se perde.

 

Espírito de corpo

Os indicadores indiretos de credibilidade podem ser informais (popularidade, presença na mídia, vendagem de livros, audiência, número de “likes”, de compartilhamentos ou de seguidores) ou formais (diplomas, títulos acadêmicos e profissionais, cargos ocupados).

Os indicadores informais têm problemas que são bem claros para todos – ao menos em teoria, embora na prática essas limitações sejam quase sempre ignoradas – e que derivam do truísmo fundamental de que “ser popular” e “estar certo” são qualidades que pertencem a domínios desconectados e completamente irrelevantes um para o outro.

Já os indicadores formais são, em tese, mais valorizados, mas também são vulneráveis a diversos problemas e dão margem a uma série de abusos. O mais citado e reconhecido é o da chamada “carteirada”, o uso da credencial não como emblema, mas como uma espécie de materialização da competência: do mesmo modo que, segundo o dogma católico, a hóstia consagrada é Jesus, no dogma da carteirada o diploma ou título é a competência.

Essa transubstanciação profana recebe muita condenação, da boca para fora, mas na prática é difícil encontrar quem não tenha se valido dela, ao menos uma vez na vida. As razões são das mais variadas, indo da pressa à arrogância, passando por exasperação pura e simples.

O principal problema trazido pelos indicadores formais, no entanto, é a formação de espírito de corpo entre seus portadores: nesse espírito, os verdadeiros competentes acabam criando uma espécie de ambiente acolchoado que protege, acolhe e, no limite, acoberta credenciados indignos.

Obter uma credencial formal costuma requerer a superação de algum tipo de barreira – completar um curso, passar num exame –, o que é visto como prova de competência, embora muitas vezes seja bem menos do que isso. A presença da barreira cria diversas ficções: a de que todos os que se encontram “do outro lado” são igualmente capazes, de que a superação do obstáculo é prova cabal de uma perícia conquistada, que se manterá a mesma – ou seguirá aumentando – pela eternidade.

 

Lado pessoal

Decidi finalmente pôr no papel estas reflexões porque neste ano arrumei um novo indicador indireto de credibilidade para chamar de meu – tive publicados dois (em breve, três) artigos em periódicos com revisão pelos pares (tive de arrumar até um número ORCID, uma espécie de “RG de cientista”).

Confesso que quando o primeiro artigo, escrito em parceria com Natalia Pasternak, saiu, fiquei esperando o céu se abrir e soarem as trombetas do Arcanjo da Respeitabilidade Acadêmica, mas foi só mais um dia como outro qualquer. Nem vontade de fumar cachimbo e de pôr gravata borboleta tive.

Nada do que digo, escrevo ou palpito vale mais (ou menos) por causa de minhas humildes contribuições formais à literatura sobre comunicação ou filosofia da ciência. Essas contribuições, por estarem onde estão, passam a fazer parte de um diálogo global qualificado, o que é importante, mas eu não sou mais esperto, nem o que tenho a dizer torna-se mais relevante do que era, até anteontem, por causa disso.

Indicadores indiretos de credibilidade cumprem uma função importante, na medida em que economizam tempo, esforço e ajudam a focar a atenção, mas depositar confiança indiscriminada neles traz riscos – como a pandemia bem demonstrou –, ainda mais num país altamente burocratizado como o Brasil, onde caligrafia bonita e realidade confundem-se com muito mais frequência do que seria recomendável.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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