Duelo de magos e de egos

Apocalipse Now
14 mar 2021
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pistolas mágicas

Na manhã de 12 de maio de 1893 (algumas fontes põem os eventos no mês de janeiro), o cavalo que levava o jornalista Henri Antoine Jules-Bois (1868-1943) para o duelo com pistolas que iria travar com o marquês Stanislas De Guaita (1861-1897) estacou no meio da estrada de Meudon, nos arredores de Paris. O animal ficou vinte minutos parado, imóvel exceto pelos tremores que percorriam seu corpo, antes de se deixar conduzir novamente.

Bois tinha motivo para suspeitar de interferência sobrenatural: ele havia sido desafiado para o duelo depois de acusar, via imprensa, De Guaita de assassinar, via magia negra, o abade Joseph-Antoine Boullan (1824-1893). Boullan havia sido um dos muitos sacerdotes das igrejas Católica e Anglicana da segunda metade do século 19 a se envolver em ocultismo e acabar acusado de heresia e satanismo.

O abade vivera uma vida movimentada, incluindo um caso amoroso com uma freira, Adèle Chevalier, com quem fundou um convento mais tarde acusado de promover “ritos sexuais”. Ele e Adèle teriam tido (e matado) um bebê, em 1860. Ambos foram também presos por fraude. Em 1869, foi preso pela Inquisição, em Roma, e em 1875 finalmente foi expulso da Igreja Católica. Com um grupo de seguidores, fundou sua própria ordem, e por algum tempo foi amigo de De Guaita — a amizade teria acabado por volta de 1886, depois de o marquês roubar um livro de feitiços do abade.

Boullan foi ainda uma das fontes que Joris-Karl Huysmans (1848-1907) usou para construir seu romance sobre satanismo e magia negra, “Là-Bas”, de 1891. Huysmans, aliás, chegou a apoiar a acusação de homicídio mágico feita por Bois contra De Guaita.

 

O mundo oculto

O século 19 costuma ser apontado como uma era de triunfo do positivismo, de uma visão de mundo baseada numa ciência rigidamente materialista e até certo ponto dogmática. Mas essa é uma visão muito limitada do período. A época também foi marcada, principalmente a partir do final da década de 1840, por aquilo que o historiador escocês James Webb (1846-1980) chamou de “fuga da razão”.

Essa fuga, Webb sugere em seu livro “The Occult Underground”, foi reação a um par de efeitos psicológicos trazidos pelos progressos da ciência e da secularização da Europa, a partir do século 18 — o aumento da liberdade humana (já que as regras da religião e da tradição social revelavam-se cada vez mais arbitrárias), acompanhado pela perda da sensação de haver um sentido maior, transcendental, no mundo (dado o progresso científico trazido pela abordagem materialista do Universo).

Superstição, escreve Webb, torna-se proeminente em meio à ansiedade e à incerteza.

O ocultismo foi uma das facetas dessa fuga. Ele emerge como um sistema de crenças para organizar e dar conta da mesma gama de fenômenos de que tratava outro produto da época, o espiritismo, mas numa chave menos religiosa, mais individualista e com apelo a uma tradição de pensamento que remontava ao Renascimento, a da “prisca filosofia”, ou filosofia primordial.

Trata-se de uma versão particular do Mito da Queda, a ideia de que a Humanidade existe hoje num estado degenerado, decaído de um passado áureo. No caso, o Éden perdido teria representado um estado de sabedoria perfeita. O ocultismo (assim como a tradição hermética da Renascença, que lhe serve de base) vê-se fazendo o resgate dessa ciência perfeita "deixada para trás".

No caso do ocultismo do século 19, a ideia de “ciência” é especialmente importante. Assim como o misticismo quântico do século 20 busca apresentar as descobertas da física quântica como meras “redescobertas” de ideias presentes na filosofia das religiões da Ásia, principalmente da Índia e da China, os ocultistas sugeriam que suas tradições tinham “chegado antes” a ideias e fenômenos apontados por ciências (ou pseudociências) emergentes na época, como psicologia, psicanálise e parapsicologia.

 

Indústria esotérica

O ocultismo francês de De Guaita e de seus colegas Gérard Anaclet Vincent Encausse (1865-1913), também conhecido como “Papus”, e Joseph-Aime Péladan (1858-1918) não era lá muito oculto, e era também um grande negócio, girando em torno de periódicos populares, como a revista L’Initation, de Papus, e livros best-seller como “Le Vice Suprême”, de Péladan.

Em sua revista, Papus promovia livros sobre temas esotéricos que eram publicados por editores parceiros (em maio de 1890, a editora de L’Initation mudou-se para um prédio novo, onde estabeleceu também sua própria livraria). Outra revista, menor (de apenas 4 páginas) e mais barata, Le Voile d’Isis, foi lançada pelo mesmo grupo naquele ano, e em 1892 já vendia 10 mil exemplares cada edição.

A organização de Papus, chamada Grupo Independente de Estudos Esotéricos, tinha sob sua égide nada menos do que duas sociedades “secretas”, a Ordem Martinista e a Ordem Cabalística de Rosa-Cruz. A Martinista aceitava novos membros com facilidade; a Rosa-Cruz, sob o comando de De Guaita, era mais exclusiva. Livros promovidos em L’Initation eram considerados “leituras úteis para a iniciação”, e a entrada na ordem do marquês exigia testes de conhecimentos presentes nesse material, incluindo um “doutorado” em cabala.

Isso tudo — você precisa ler os livros que eu escrevo e vendo para ser aceito no clube de que sou dono — pode soar muito como um modelo de negócios, a exploração de mentes impressionáveis, e é difícil ler uma descrição do ambiente ocultista sem imaginar uma cenografia pensada e calculada para embasbacar os parvos.

Nas palavras do historiador John Warne Monroe, “as reuniões tanto da Ordem Martinista quanto da Ordem Cabalística eram cheias de (…) fantasias, imagens secretas e décor extravagante”. Um jornalista dos anos 1890 descreve: “as salas de cursos, reuniões e palestras têm inscrições misteriosas nas paredes, entre símbolos herméticos, signos astrológicos, tabelas de letras hebraicas e do sânscrito”.

 

Charlatanismo sincero

A despeito da eficácia do esoterismo em gerar receita com conversa fiada, De Guaita, Papus e muitos dos demais envolvidos na cena ocultista (como Huysmans e Boullan) eram perfeitamente sinceros em suas crenças.

Huysmans atribuiu a derrota da França na guerra de 1870 contra a Prússia à superioridade esotérica dos alemães; em cartas a Péladan, o marquês descreve seu combate místico com Boullan (o padre renegado estava em Lyon; o marquês, em Paris) nos termos mais dramáticos, dizendo ter sofrido agressões astrais “de suprema violência”, e que um de seus aliados havia entrado em “estado cataléptico”, sob ataque iminente de um demônio súcubo. Bois, por sua vez, disse que até mesmo seu gato havia sofrido com as investidas espirituais do cabalista.

O vendedor de ilusões que conscientemente vê seus clientes como vítimas ou presas — o ateu que se passa por cristão fundamentalista pra cobrar dízimo — é um personagem raro na vida real. Há estudos, na verdade, que sugerem que o perfil psicológico de golpistas esotéricos aproxima-se muito do dos golpeados.

Um trabalho recente, publicado no British Journal of Social Psychology, descreve três experimentos que indicam que pessoas que se mostram especialmente hábeis em produzir “persuasive bullshitting”(literalmente, “falação de merda para convencer os outros”) são também especialmente suscetíveis “a vários tipos de informação enganosa”. Em resumo, engabeladores são fáceis de engabelar.

Isso não deveria causar surpresa. Percepção de sinceridade — o quanto imaginamos que a pessoa que está tentando nos persuadir crê no que diz — é um poderoso fator de convencimento, e tanto Hollywood quanto a televisão e o teatro, amador ou profissional, mostram que o estoque de bons atores do mundo deve ser limitado.

 

Vaidade

Outro estudo, também relativamente recente, este publicado no European Journal of Social Psychology, levanta a questão do narcisismo espiritual.

Também em três experimentos, os autores encontram uma correlação entre treinamento em práticas espirituais, vaidade, senso de superioridade e self-enhancement, definido como motivação para sustentar e ampliar a autoestima. “Nossos resultados apontam que a motivação de self-enhancement é poderosa e profunda, a ponto de poder sequestrar métodos que pretendem transcender o ego e, em vez disso, adotá-los para si”.

O resultado ajuda a entender parte do apelo do movimento ocultista, com suas promessas de sabedoria exclusiva e seus títulos mirabolantes — iniciado, mago, adepto, cavaleiro, mestre —, apresentando tudo isso como caminho de negação e transcendência do “materialismo crasso” do mundo. Na medida em que vaidade é um bem intangível, talvez o caminho não fosse de todo inútil.

Quanto ao duelo, Bois e De Guaita dispararam suas pistolas, e ambos erraram. Mas, segundo o relato de Webb, citando depoimento de um dos padrinhos de Bois, mais tarde descobriu-se que, em uma delas, embora a pólvora tivesse sido detonada, a bala não havia deixado o cano. Teria o marquês se protegido com mágica?

O jornalista tinha mais um duelo marcado para aquele mesmo dia. Seu adversário, agora, seria Papus. E se tratava de um duelo não com pistolas, mas espadas. Papus, um exímio espadachim, feriu Bois no braço. Derramado sangue, o duelo foi encerrado, e os dois deixaram o campo como amigos.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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