O escritor de histórias de mistério John Dickson Carr (1906-1977) era chamado de “o homem que explicava milagres”: a maioria de seus contos e romances envolvia não só crimes impossíveis, como o paradigmático caso da vítima encontrada morta a facadas, sozinha, dentro de uma sala trancada por dentro e sem janelas, ou o homem morto com um tiro à queima roupa no meio de uma praia, sem pegadas na areia ao redor do corpo.
Carr, mesmo sendo americano, fazia questão de seguir as chamadas regras de fair-play do conto de mistério clássico britânico: todas as pistas devem ficar disponíveis para o público ao mesmo tempo em que aparecem para o detetive, de modo que o leitor inteligente seja capaz de resolver o crime por conta própria, sem precisar chegar ao fim do livro. A despeito de sua adesão às regras, o autor era capaz de produzir finais mirabolantes e surpreendentes.
Num depoimento, Carr certa vez disse que um erro comum de escritores iniciantes de mistério que tentam seguir a linha do fair-play é que eles são muito tímidos ao apresentar as pistas ao leitor: escondem-nas, ou passam muito rapidamente por elas. Com o tempo, disse, você aprende que é possível ser explícito, esfregar a solução do crime na cara do leitor, e nem assim ele vai perceber.
A história das “fraudes controladas” na ciência indica que o escritor estava certo. E não apenas em se tratando de romances policiais ou de mistério.
Uma "fraude controlada" é um tipo de experimento psicológico/metodológico/social: trata-se da produção deliberada de eventos ou resultados falsos, com o objetivo de testar a resiliência e a confiabilidade de uma metodologia científica, de um processo cognitivo ou de comunicação.
Ela se distingue da fraude pura e simples porque, enquanto esta última é construída de modo a circum-navegar os mecanismos humanos (senso crítico, bom-senso) e institucionais (revisão, crítica dos pares, controles) de checagem e alerta, a fraude controlada é criada com uma série de características salientes para excitar os mesmos mecanismos – como as pistas que o autor de mistérios planta diante dos olhos do leitor – desde que, é claro, esses mecanismos estejam funcionando adequadamente, ou haja uma intenção honesta de usá-los.
Mentalistas e pós-modernos
Talvez a fraude controlada mais famosa das últimas décadas tenha sido o Caso Sokal, de 1996, quando o físico Alan Sokal teve um texto completamente sem sentido publicado numa revista de crítica cultural pós-moderna.
O objetivo de Sokal era denunciar a apropriação indevida do jargão das ciências exatas por alguns autores “de Humanas” que pareciam mais interessados em impressionar leitores com o brilhantismo de sua prosa obscura – parafraseando o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), há quem confunda águas turvas com águas profundas – do que em comunicar ideias, e o relativismo radical que tomava conta de alguns setores da sociologia da ciência, na época. A fraude de Sokal foi um dos lances mais espetaculares das chamadas “Science Wars” do século passado.
Mas a fraude controlada de maior repercussão prática do século 20 provavelmente foi o Projeto Alfa, conduzido pelo mágico James Randi (1928-2020) e dois jovens treinados em truques de ilusionismo (um deles, Steve Shaw, viria a se tornar o famoso mentalista Banacheck), em 1979. Randi enviou Shaw e outro garoto, Mike Edwards, a um laboratório de pesquisa parapsicológica financiado por James Smith McDonnell (1899-1988), fundador e presidente da companhia aeroespacial McDonnell-Douglas.
McDonnell era um crente de poderes paranormais, e havia oferecido US$ 500 mil (US$ 1,9 milhão em valores atualizados) à Universidade de Washington em St. Louis para estabelecer um centro de estudos sobre o assunto. Anos antes, Randi já havia mostrado como cientistas que investigavam fenômenos paranormais deixavam-se enganar facilmente por truques de mágica (um de seus alvos favoritos era o israelense Uri Geller, cujos “poderes” Randi havia duplicado com facilidade para o editor de Ciência da revista Time em 1973).
Durante quase cinco anos, os dois foram levados a sério e considerados paranormais legítimos pelos pesquisadores, que acreditavam estar utilizando controles adequados contra fraude. Parte do protocolo do Projeto Alfa determinava que, se alguém lhes perguntasse diretamente se estavam usando truques, Shaw e Edwards deveriam responder que sim e explicar todo o experimento. Mas nenhum deles jamais foi confrontado com a questão.
O projeto só terminou em 1983, com a confissão dos ilusionistas, mas desde 1981 o próprio Randi já vinha alertando publicamente para os controles inadequados e a possibilidade de fraude nos testes realizados. Escrevendo sobre o assunto para a revista Skeptical Inquirer, James Randi apontou que “não havia dúvida de que o pessoal do laboratório acreditava que Mike e Steve realmente eram paranormais. Eles acreditavam. Foi essa crença que tornou a fraude tão fácil”.
Após o Projeto Alfa, não só o laboratório de St. Louis perdeu seu financiamento, como o foco da parapsicologia deslocou-se do estudo de “talentos excepcionais” para o de anomalias estatísticas.
Balões e ETs
Desejo de acreditar também está por trás do sucesso de outra fraude controlada, esta anterior ao Projeto Alfa e bem menos conhecida, apresentada numa monografia britânica publicada em 2005, “Conclusions from Controlled UFO Hoaxes”, de David Simpson. Nela, o autor descreve um experimento envolvendo uma série de falsos "discos voadores" – na verdade, balões de gás hélio com lanternas de pilha penduradas – lançada no céu de um vilarejo inglês no fim dos anos 60.
Simpson, um dos responsáveis pelas fraudes, relata alguns efeitos impressionantes, incluindo descrições exageradas e distorcidas dos objetos no céu por ufólogos – alguns acreditavam que as luzes dos "óvnis" (as lanternas) piscavam em resposta a sinais enviados do solo, ou a seus pensamentos – e a absoluta incapacidade dos mesmos ufólogos em aceitar a confissão, pelo grupo de fraudadores, de que os objetos não passavam de criações terrestres.
O livro “In Alien Heat: The Warminster Mystery Revisited”, de John Ries e Steve Dewey, descreve como o grupo de Simpson, chamado SIUFOP (Sociedade para a Investigação de Fenômenos UFO) “continuou com seus experimentos por anos, até mesmo usando pipas para elevar luzes com ‘timers’. O evento mais importante a seguir foi quando fraudaram uma vigília da qual a BBC estava participando. De novo, alguns ufólogos entrevistados pela BBC disseram que as fraudes da SIUFOP eram as melhores observações de óvnis que já tinham visto”.
Há uma grande controvérsia ética em relação às fraudes controladas, já que elas envolvem mentira e, no limite, a humilhação pública dos envolvidos. Em entrevista para o livro “How UFOs Conquered the World: The History of a Modern Myth”, Simpson não manifesta nenhuma dúvida quanto à correção de suas ações: os ufólogos enganados por ele estavam fazendo declarações públicas, almejavam à credibilidade pública e eram tratados como fontes confiáveis pela imprensa da época, incluindo a BBC, principal rede de televisão do Reino Unido. Nada mais justo que essa presunção de credibilidade e seriedade fosse posta à prova. Confiança não se dá de graça.
Chocolates e Hitler
O mesmo argumento pode ser aplicado ao Projeto Alfa e ao trabalho mais recente de John Bohannon sobre pesquisa de dieta e saúde humana, que de certa forma prefigura a crise de estudos metodologicamente desastrados sobre tratamentos para COVID-19 que acabaram sendo abraçados por setores da mídia e da profissão médica.
Em 2015, Bohannon, jornalista com formação em Biologia, não só conseguiu empurrar para um periódico “científico” um artigo de péssima qualidade com uma conclusão absurda – a de que comer chocolate emagrece – como ainda viu o artigo ganhar repercussão na mídia de massa.
Usando uma versão germanizada de seu nome, "Johannes", ele assinou um estudo sobre a relação entre chocolate e emagrecimento, que fez publicar num periódico predatório, uma dessas revistas supostamente científicas que estão mais interessadas no dinheiro do pesquisador do que na qualidade dos dados.
Divulgado por uma assessoria de imprensa, o estudo ganhou o mundo: foi destaque no jornal alemão Bild, na edição germânica da revista feminina Cosmopolitan, em tabloides ingleses, em inúmeros websites e em programas de rádio e televisão dos EUA à Austrália.
Meses depois de criar o hype, Bohannon produziu um longo ensaio para o site io9, confessando que o estudo tinha sido concebido para gerar resultados falsos. A conclusão sobre chocolates e dietas era inválida, porque os métodos usados e a análise estatística aplicada eram inadequados para sustentar a conclusão. O que deveria ser óbvio para qualquer pessoa cientificamente alfabetizada que lesse o estudo. Quase uma prefiguração dos trabalhos de Didier Raoult e seus groupies de todo o mundo sobre cloroquina – ainda que estes tenha sido feitos a sério.
Muito do comentário que se seguiu à revelação de Bohannon tratou a questão como resultado de um embuste, uma "fraude". Mas, a rigor, não houve fraude. O estudo foi realizado, voluntários foram recrutados, tratados de forma ética e divididos em três grupos – um de dieta emagrecedora comum, um de dieta com chocolate, o terceiro alimentando-se normalmente – e os resultados, registrados e analisados de modo honesto: sim, é verdade que o grupo submetido à dieta com chocolate emagreceu mais! A questão é que o resultado era vazio de significado, e a mídia falhou em se dar conta disso.
Em 2015, o embuste foi apontado como uma falha do senso crítico de parte da imprensa. Hoje, depois das ondas de hidroxicloroquina, ivermectina e “imunidade de rebanho” que varreram o mundo, temos alguma evidência de que o problema é bem mais disseminado, atingindo médicos, gestores públicos e, até, cientistas com título e cátedra.
Esta não foi a primeira fraude do tipo perpetrada por Bohannon: em 2013, ele havia enviado um artigo de biologia, obviamente imprestável, a centenas de journals que, supostamente, faziam revisão pelos pares, e viu-o ser aceito, acriticamente, diversas vezes.
Como o próprio jornalista escreveu na revista Science, sobre a peça pregada nos periódicos predatórios, "qualquer revisor com mais do que um conhecimento de ensino médio em química e a capacidade de interpretar um gráfico simples deveria ter notado as inadequações do artigo na hora. Os experimentos descritos são tão ruins que o resultado não faz sentido".
Já o fim da década passada assistiu a uma espécie de “homenagem” à fraude de Sokal. Apelidada de “Sokal Squared” (“Sokal ao Quadrado”) ou “Grievance Studies” (“Estudos de Ressentimento”), a operação envolveu três intelectuais – o filósofo Peter Boghossian, o matemático James A. Linday e a escritora Helen Pluckrose – na produção de 20 artigos deliberadamente ridículos ou idiotas (por exemplo, um deles reproduzia um trecho do Mein Kampf, o manifesto autobiográfico de Adolf Hitler [1889-1945], apenas com parte do vocabulário trocada para fazer o texto parecer “feminista”, em vez de racista) que foram enviados para periódicos acadêmicos de Humanas.
A fraude foi desmascarada prematuramente – um dos artigos, publicado e premiado, que associava o comportamento de cães em parques públicos à “cultura de estupro”, chamou a atenção de críticos no Twitter e na imprensa –, num momento em que sete dos trabalhos (incluindo o pastiche de Hitler e um outro sugerindo o ensino de astrologia) já haviam sido aceitos para publicação, seis rejeitados e sete ainda aguardavam resposta.
A hipótese dos perpetradores era de que, nas Humanidades, o meio acadêmico substituiu o rigor intelectual pela coerência ideológica, e que qualquer bobagem será publicada, desde que lisonjeie os preconceitos dos editores. Com sete sucessos e seis rejeições em vinte tentativas, não está claro o grau de confirmação obtido.
De qualquer modo, a reação da comunidade acadêmica americana à fraude foi vergonhosa: Boghossian foi alvo de críticas publicadas de modo anônimo e acabou punido por sua universidade, por conduzir um “experimento com seres humanos” sem consentimento das “cobaias” (no caso, os editores engabelados).
Tanto nos “Grievance Studies” quanto no Projeto Alfa, nos embustes de Bohannon e nos balões da SIUFOP, pistas suficientes foram dadas – o alerta de Randi em 1981, a qualidade sofrível dos falsos artigos nos casos de Sokal, Bohannon e Boghossian, as seguidas confissões de Simpson e de seus colegas quanto aos balões “extraterrestres” – para que as fraudes fossem detectadas ou reconhecidas por suas próprias vítimas.
A conclusão de John Dickson Carr, de que é perfeitamente seguro esfregar as pistas na cara do leitor, a maioria não vai notá-las, parece confirmada pela ciência.
Exageros político-ideológicos à parte, existe uma preocupação de que fraudes como a de Bohannon, envolvendo resultados falsos sobre saúde humana, poderiam acabar poluindo a literatura científica e confundindo a opinião pública; no fim, provocando mais mal do que bem.
Também é possível argumentar que as fraudes controladas acabam sendo redundantes: precisamos, mesmo, de mais um estudo constatando que seres humanos são fáceis de enganar? Qual a novidade disso?
Novidade nenhuma, por certo. Mas também parece certo que há lições que jamais são realmente aprendidas e que, portanto, têm de ser repetidas de novo e de novo, renovadas e reapresentadas a cada geração. A de que a mente humana está pronta para o engano, sempre predisposta a construir narrativas que tornem plausíveis os maiores absurdos, desde que devidamente motivada – seja por vaidade, ideologia, esperança ou lucro – é uma delas.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)