Evolução não tem “meta”

Apocalipse Now
19 fev 2021
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Charles Darwin

 

O último 12 de fevereiro foi Dia de Darwin, mas com a maluquice do vírus a data acabou passando em branco aqui na Revista Questão de Ciência. É uma deficiência que tentarei remediar agora, chamando atenção para um dos erros mais frequentes que acabam grudando, feito cracas num navio, àquilo que a maioria das pessoas entende (ou acredita entender) da Teoria da Evolução: a ideia de que “evolução”, no sentido biológico, implica “progresso” e, mais especificamente, “progresso” em direção a formas bípedes racionais.

Esse é um falso pressuposto que anima muitos dos argumentos menos sofisticados (ou mais desonestos) da franja criacionista. Está por trás, por exemplo, da imortal questão “Se viemos dos macacos, por que ainda há macacos?”, que parece visualizar o processo evolutivo como uma espécie de trem que passa por várias estações — peixes, répteis, macacos — no caminho até o destino final determinado por Deus (destino esse que, no século 19, era o gentleman inglês, mas hoje provavelmente deve ser o eleitor de Donald Trump). Se o macaco é uma dessas estações de baldeação, por que ainda há quem tenha ficado ali?

A verdade é que não só esse modelo ferroviário da história da vida é errado, como o macaco não é uma estação no caminho até o Homo sapiens.

O modelo é errado porque a evolução não é linear e nem tem um “destino”. É um processo que ocorre às cegas, à medida em que o acaso e pressões ambientais combinam-se para afetar as chances de sucesso reprodutivo — a capacidade deixar descendentes viáveis — de indivíduos dentro de populações, populações que, com o tempo, podem acabar dando origem a diferentes espécies.

Tanto a Humanidade quanto os macacos que habitam o mundo hoje descendem de ancestrais comuns. Recuando o suficiente na história da vida, é possível encontrar ancestrais comuns entre você e seu gatinho (há dezenas de milhões de anos), ou (voltando até uns 3 bilhões de anos atrás) entre você e a bactéria da sua placa dental. E não há nenhum critério objetivo, do ponto de vista biológico, para considerar qualquer uma dessas espécies “mais evoluída” que as outras. A melhor frase sobre isso talvez seja a do biólogo britânico JBS Haldane (1892-1964), em seu livro “As Causas da Evolução”: 

“A mudança de macaco para homem pode muito bem parecer uma mudança para pior para o macaco (…) O macaco da atualidade é um animal bem satisfatório. O homem é, provavelmente, uma forma extremamente imperfeita e primitiva de ser racional. Ele é um animal pior que o macaco”.

 

 

Velha ideia

A ideia de que os seres vivos podem ser organizados numa linha hierárquica que culmina no ser humano não é, no entanto, invenção do movimento criacionista. Como o filósofo americano Arthur Lovejoy (1873-1962) mostrou em um dos mais influentes ensaios do século 20, “A Grande Cadeia do Ser”, essa noção fez parte do senso-comum ocidental por quase dois mil anos. Lovejoy localiza sua semente em Platão (428/423-348/347 AEC) e Aristóteles (384–322 AEC).

Aristóteles é especialmente interessante, neste caso, por já reconhecer, nos primórdios da ciência, que parecia impossível separar os seres vivos em categorias estanques. Em um de seus escritos, por exemplo, nota que “a Natureza procede pouco a pouco das coisas inanimadas para a vida animal, de modo que é impossível determinar a linha exata de demarcação, e de que lado dessa linha uma forma intermediária deve ficar” (e ele nem sabia dos vírus!).

Depois de propor a divisão do reino animal em criaturas terrestres, aquáticas e voadoras, o filósofo grego escreve que “focas ficam entre os animais terrestres e aquáticos, e morcegos no meio do caminho entre os que vivem no chão e os que voam; portanto, pertencem a ambas as categorias, ou nenhuma”. 

Lovejoy nota que Aristóteles (para quem o macaco era um intermediário entre os quadrúpedes e os seres humanos) não chega a propor a organização da vida, com todas suas formas de transição, em algum tipo de hierarquia absoluta, mas sugere que critérios arbitrários podem ser usados para gerar uma cadeia do tipo — por exemplo, nível de racionalidade.

A teologia medieval adotou a ideia de que toda a criação existiria num contínuo, com criaturas intermediárias e sobreposição de categorias. Na “Suma Contra Os Gentios”, Tomás de Aquino chama atenção para o fato de que “sempre se verifica que o ínfimo de um gênero supremo toca o supremo de um gênero inferior (…) alguns dos mais inferiores do gênero animal em pouco se elevam acima do gênero das plantas”.

Em Aquino, a ideia de hierarquia já está explícita: há gêneros superiores e inferiores. Na Idade Média, a Grande Cadeia do Ser encontra um princípio organizador, um Bem Supremo empoleirado no topo da escala: o Deus cristão. E as criaturas são tão mais “superiores” quanto mais se aproximam d’Ele. Alguns teólogos, pressupondo que a Grande Cadeia não deveria ter lacunas — nenhum elo poderia faltar, nem abaixo e nem acima do homem —, usaram a noção para estabelecer “racionalmente” a existência de espíritos e anjos, que seriam os degraus logicamente necessários entre nós e o Criador.

 

Tempo

Para a intuição milenar da Grande Cadeia virar fator de confusão na hora de compreender processos evolutivos, faltava incluir ali dimensão do tempo. Na Antiguidade e na Idade Média, o pressuposto era de que as formas intermediárias que preenchiam a cadeia deveriam existir simultaneamente, resultado de uma superabundância da criatividade divina.

Presumir que essas formas na verdade sucediam umas às outras, e descendiam umas das outras, foi ideia do francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829). “O passo momentoso de considerar a échelle [escada] não apenas espacial mas também temporal foi dado por Lamarck (…) e estava no coração da teoria lamarckiana”, muito mais do que a herança de características adquiridas, escreveu o paleontólogo George Gaylord Simpson (1902-1994), num artigo clássico sobre o assunto.

Segundo Lamarck, formas de vida simples — infusoria — seriam geradas espontaneamente o tempo todo e, sob ação do ambiente e de seus próprios impulsos internos (sua “vontade”), iriam se adaptando e ganhando complexidade, desenvolvendo, por exemplo, sistemas circulatórios e sistemas nervosos cada vez mais sofisticados.

Em seu artigo, Gaylord Simpson tem o cuidado de distinguir entre “sucessão” (uma espécie surge depois de outra), “progressão” (uma espécie surge a partir de outra, pré-existente, por meio de modificações graduais, aos poucos — “progressivamente”) e “progresso” (uma espécie é superior, ou “mais avançada”, em relação a outra, que veio antes ou que lhe deu origem). Lamarck supunha que os três processos eram um só.

 

Charles Darwin

No mundo real dos seres vivos, sucessão é um fato, progressão é um fenômeno frequente, mas progresso é uma quimera. Esses pontos já estavam implícitos no trabalho original de Charles Darwin (1809-1882), que embora não tenha escrito especificamente sobre “progresso”, notou que extinções são comuns e que há espécies que se mantêm inalteradas por longos períodos de tempo — ambas evidências contra a hipótese de que algum “impulso ao progresso” seja intrínseco à evolução.

De qualquer modo, essa noção errônea, uma espécie de eco distante do velho princípio da Grande Cadeia do Ser tal como filtrado por Lamarck, é difícil de pôr de lado. Nas palavras de Stanley Rice, autor da “Encyclopedia of Evolution”, o conceito de que o processo evolutivo “leva inevitavelmente aos seres humanos, ou pelo menos à maior complexidade (…) é, na cabeça da maioria das pessoas, inseparável da evolução”.

 

 

Raça e Espírito

A confusão entre evolução e progresso é uma espécie de caçamba conceitual: vazia em si, torna-se receptiva a todo tipo de entulho. Os mais comuns, conhecidos e combatidos são os do racismo e do preconceito de classe, o chamado “Darwinismo social”. A ideia de que a Humanidade está hierarquizada, pela natureza, numa linha que vai do “selvagem” ao gentleman inglês, de um grupo étnico ao outro; ou, na escala econômica, dos pobres aos ricos.

Mas a sedução do lado metafísico da Grande Cadeia do Ser, com seus degraus que culminam no Sublime ou no Inefável, também é duradoura. No início do século 20, o filósofo francês (e futuro ganhador do Prêmio Nobel de Literatura) Henri Bergson (1859-1941) publicava o livro "A Evolução Criadora”, onde propunha a existência de um élan vital, impulso e causa do progresso evolutivo. Sobre isso, o biólogo Julian Huxley (1887-1975) comentou que um ignorante em engenharia mecânica poderia supor que trens são movidos por um élan locomotivo.

A reiteração mais famosa e eloquente da Grande Cadeia do Ser no mundo contemporâneo, no entanto, certamente é a feita pelo paleontólogo e padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), que em "O Fenômeno Humano” propõe que todo o Universo forma uma cadeira de entidades conscientes — do mais humilde átomo de hidrogênio até o maior gênio da Humanidade — que aspira ao Ponto Ômega, a fusão final com a divindade.

O processo da evolução seria o caminho da natureza para criar recipientes com capacidades cada vez maiores de conter e assimilar consciência, até chegar ao estágio compatível com Ômega. Nas palavras do próprio Teilhard:

 

“Um mecanismo favorável para a ação da consciência certamente existe em organismos vivos, e para perceber qual é só precisamos olhar para dentro de nós mesmos; é o sistema nervoso. Há apenas uma interioridade que conseguimos apreender diretamente no mundo — a nossa (…) Mas temos todas as razões para pensar que alguma interioridade existe em animais, que pode ser medida, aproximadamente, pela perfeição do cérebro. Portanto, distribuamos os seres vivos de acordo com seu grau de ‘cerebralização’. O que acontece? Uma ordem estabelece-se, a mesma que queríamos — e automaticamente”.

 

O raciocínio de Teilhard — de que consciência é uma propriedade imanente da matéria, e que o Universo se move no sentido de concentrá-la cada vez mais, até alcançar Deus — é “sem meias palavras, pura bobagem”, como escreveu Gaylord Simpson no ensaio “The Divine Non Sequitur”, parte de uma antologia sobre a obra do jesuíta. Pode-se aceitar um princípio assim como ponto de fé, mas não há evidência nenhuma de que exista algo de consciente em átomos ou moléculas individuais.

Peter Medawar (1915-1987), biólogo, ganhador do Nobel de Medicina, abre uma resenha de “O Fenômeno Humano” dizendo que “há um argumento ali, sem dúvida — um argumento fraco, articulado de modo abominável”. Medawar aponta erros conceituais de biologia e evolução, e acusa Teilhard de usar termos técnicos da ciência de modo metafórico, “mas como se preservassem o peso e a força do sentido técnico”.

Evolução é mudança ao longo do tempo; algumas dessas mudanças podem representar “progresso” sob certos pontos de vista, mas não são “progresso” em nenhum sentido absoluto, como o exemplo do macaco de Haldane bem demonstra. A Grande Cadeia do Ser continua a assombrar, mas já deveria ter seguido pelo mesmo caminho do geocentrismo.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

 

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