Quando os fanatismos convergem

Apocalipse Now
3 out 2020
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esfinge

 

Há algumas semanas que tento desenvolver uma metáfora sobre ideias ruins e crenças sem base racional, a partir da imagem de um sistema de vasos comunicantes, em que não importa o formato de cada recipiente individual, a água sempre encontra e mantém o mesmo nível. Ainda não consegui formular o pensamento de modo eficaz: tentei usar o conceito num artigo sobre medicina alternativa para uma revista inglesa, e o editor me perguntou se eu poderia ser mais claro. No fim, deixei a metáfora de lado.

Acho que ainda não consigo ser claro o bastante a respeito, mas a mesma imagem ocorreu-me depois que vi o artigo em que Jason Colavito chama atenção para uma aproximação entre as ideias de Erich Von Däniken e as defendidas por uma franja lunática da direita cristã — mais precisamente, uma convergência entre as “teorias” sobre astronautas do passado e a facção do literalismo bíblico criacionista obcecada com uma passagem específica do Velho Testamento, os versículos 1-4 do capítulo 6 do livro do Gênesis. Há traduções variadas para o português, claro, mas o sentido geral se preserva. Aqui, a forma como o trecho aparece na versão protestante Almeida Corrigida Fiel:

E aconteceu que, como os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas/Viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram./Então disse o Senhor: Não contenderá o meu Espírito para sempre com o homem; porque ele também é carne; porém os seus dias serão cento e vinte anos./Havia naqueles dias gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama. (Gn 6:1-4)

 

A versão oficial da CNBB, católica, é praticamente idêntica, exceto por algumas escolhas sintáticas (o verso final vem todo entre parênteses) e de vocabulário (“heróis”, no lugar de “valentes”, por exemplo). Nos Estados Unidos, existe todo um próspero nicho de mercado voltado para sustentar a crença de que o mito bíblico sobre “gigantes na terra” representa uma verdade literal: há livros sobre escavações arqueológicas que supostamente revelam esqueletos gigantes, mapas com a localização das tumbas dos gigantes, “documentários” onde apresentadores fantasiados de Indiana Jones buscam os vestígios dos gigantes, teorias de conspiração explicando que “eles” escondem a evidência dos gigantes — o cardápio é amplo, e pode ser acessado na Amazon ou no History Channel.

 

DNA de demônio

Uma figura-chave nesse mundo dos gigantes bíblicos é o escritor e apresentador de TV americano L.A. Marzulli, autor de uma série de livros sobre o tema. Marzulli é um criacionista que passa boa parte de seus livros esbravejando contra o “darwinismo”. Num volume com o sugestivo título Nephilim Hybrids (“nephilim” é a palavra hebraica traduzida como “gigantes” na Bíblia), ele se queixa de que o History Channel distorceu uma fala sua para adaptá-la ao “paradigma darwiniano”. Deve ser a primeira vez na história em que o History (trocadilho intencional) é acusado de cometer desonestidade intelectual a favor da ciência.

Criacionista radical e literalista bíblico como é, Marzulli acredita que cientistas, “em sua maioria darwinistas”, estão trabalhando em conjunção com alienígenas e demônios para manipular artificialmente o genoma humano e produzir o Anticristo. Isso tudo soa bem maluco — ou o enredo de um filme trash dos anos 80, o que dá mais ou menos na mesma coisa —, mas há elementos nos escritos de Marzulli que atendem a uma importante função didática, a saber, como a ideia de “interpretação literal” está longe de ser tão transparente quanto as pessoas tendem a imaginar.

Vamos lá: Nephilim Hybrids sugere que, no versículo “E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3:15), “semente” significa, de modo bem literal, “esperma”. A luta cósmica, então, seria entre o DNA dos demônios e o DNA humano. Minha versão de 15 anos de idade teria adorado assistir a este filme, provavelmente com Christopher Walken no papel de Lúcifer/cientista louco e Mathilda May (ao Google, jovens!) como a mãe do Anticristo híbrido, mas Marzulli apresenta a ideia como legítima não-ficção.

 

Reacionários do espaço

Em seu livro mais recente a ser traduzido do alemão para o inglês, War of the Gods, Von Däniken cita Marzulli como autoridade em crânios alongados, uma modalidade de modificação corporal praticada por várias culturas ao longo da história, mas que quando aparece em vestígios arqueológicos do Novo Mundo, é interpretada, por um certo tipo de gente, como sinal de hibridização alienígena (ou infernal).

Dada a narrativa geral de Marzulli sobre hibridização humano-alienígena-demoníaca, extraída a fórceps de sua leitura “literal” da Bíblia, é de se imaginar que rumos o pensamento do decano da “teoria dos astronautas antigos” está tomando — ou que público ele tem em vista, agora. Von Däniken já sugeria, há tempos, que a narrativa bíblica de “filhos de Deus” que teriam se reproduzido com “filhas dos homens” seria algum tipo de memória histórica distorcida de conjunção carnal entre visitantes extraterrestres e humanas indefesas, mas ao citar um teórico de hibridização demoníaca como autoridade, ele parece estar acrescentando ingredientes novos à sopa espacial.

É interessante, à guisa de digressão, notar como uma ideia pode ser, ao mesmo tempo, “fora da caixa” e absurdamente reacionária.

Pondo de lado a implausibilidade biológica de integrantes de espécies diferentes, evoluídas em planetas diferentes, serem capazes de sentir atração sexual uns pelos outros, terem a anatomia necessária para copular entre si e, por último, mas não menos importante, gerar descendentes viáveis, consideremos que Erich von Däniken é ainda patriarcal demais para imaginar o fluxo contrário: naves extraterrestres tripuladas pelas fêmeas da espécie.

 

Pirâmides

O flerte entre literalismo bíblico e intervencionismo extraterrestre é antigo, mas a tendência inicial era secularizante, não criacionista: os ETs seriam a “explicação científica” para os milagres bíblicos, de modo que os eventos relatados poderiam ser verdade literal, mas o sentido espiritual, não. Esse tipo de narrativa foi, durante um tempo, muito popular na extinta União Soviética, onde o ateísmo era política de Estado.

Os primeiros trabalhos a especular que o mito judaico-cristão é, na verdade, um erro de interpretação de contatos alienígenas datam dos anos 1950. Um dos orgulhos de minha biblioteca de esquisitices é The Bible and Flying Saucers, livro que sugere que a abertura do Mar Vermelho foi conduzida por discos voadores e que Jesus era um ET. Esse volume foi publicado pelo pastor presbiteriano Barry Downing, em 1968, mesmo ano em que Eram os Deuses Astronautas?, livro de estreia de Von Däniken, saía em alemão (1968 é o “ano que não acabou” em mais de uma acepção).

Em sua obra inicial, Von Däniken insinua que o relato bíblico das rodas de fogo vistas no céu pelo profeta Ezequiel (Ezequiel 1:4) seriam óvnis, e já mostrava sinais de encanto com a história de Enoque, o patriarca bíblico sobre o qual o Velho Testamento diz apenas que foi pai de Matusalém, viveu 365 anos e “andou Enoque com Deus; e não apareceu mais, porquanto Deus para si o tomou” (Gn 5:24).

Assim como a natureza, a imaginação humana também odeia o vácuo, e lendas e mitos sobre Enoque e seu suposto arrebatamento aos céus vêm se acumulando pelo menos desde os primeiros séculos antes da Era Comum — incluindo a recentíssima hipótese que teria sido vítima de uma abdução alienígena. Pelo menos desde que publicou History is Wrong, em 2009, Von Däniken vem afirmando que Enoque construiu as pirâmides do Egito, seguindo instruções extraterrestres, para preservar uma ciência secreta que, de outro modo, teria sido destruída no Dilúvio (aquele, de Noé). Essa fixação enoquiano-piramidal ocupou boa parte da palestra que o autor deu no Brasil em dezembro de 2018.

 

Convergência

Então, o que isso tudo tem a ver com a minha tentativa de metáfora dos “vasos comunicantes”? Uma aproximação óbvia pode vir da constatação de que vasos comunicantes, afinal de contas, comunicam-se — estão interligados — e, pelo exposto, o mesmo pode ser dito de uma série de “programas de pesquisa” pseudocientíficos, e das comunidades organizadas para levá-los a cabo.

O conceito de programa de pesquisa é importante aqui, e eu o utilizo tanto no sentido mais óbvio, literal — tanto Von Däniken quanto Marzulli veem a si mesmos como investigadores à frente de projetos que podem ser descritos, em termos vagos, como algo entre "jornalísticos" e “científicos” —, quanto no senso mais técnico, sugerido pelo filósofo Imre Lakatos (1922-1974), de um núcleo teórico defendido por um cinturão de hipóteses acessórias.

Desse modo, o literalismo bíblico, o criacionismo, a ufologia e a teoria dos deuses astronautas são, todos, programas de pesquisa que se conectam e se comunicam, trocando tropos, motes e gerando uma rica fertilização cruzada de narrativas: seus cinturões de hipóteses polinizam-se mutuamente. E os frutos dessa fertilização constituem-se nos verdadeiros “híbridos alienígenas”, fundindo visões místico-encantadas do mundo a outras, de aparência mais sóbria, técnico-científica.

E qual seria, daí, o “nível comum” desses vasos comunicantes? O que me parece mais claro é: um olhar paranoico sobre o mundo. Von Däniken esbraveja o tempo todo contra o establishment arqueológico, e Marzulli acusa até o History Channel de conspirar contra sua pseudociência. Mas por que, tanta paranoia?

O antropólogo americano George Marcus certa vez definiu “paranoia extremista” como algo causado pela liberação desenfreada de “um sentimento pânico de perigo real e imediato a um estilo de vida valorizado ou privilegiado”. Nesse sentido, DNA demoníaco e deuses alienígenas são apenas novos mitos, criados e evocados para escorar velhas realidades que as mitologias vencidas e o senso comum não sustentam mais.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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