Porcos são de Marte? Crendices e consequências

Apocalipse Now
25 fev 2019
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Ilustração do modelo ptolomaico do sistema solar

Astrólogos ocidentais vêm avisando já há alguns meses que 2019 é um ano regido pelo planeta Marte. Especialistas no assunto,  ouvidos pela revista Bons Fluidos (edição 234), afirmam que se trata de um período de “vontade de resolver as coisas, impulsividade, imediatismo” e “energia guerreira”, mas que as coisas poderão “demorar para acontecer”.

Já a astrologia chinesa nos diz que o ano lunar, iniciado em fevereiro, é o Ano do Porco. Especialistas no assunto, ouvidos pela revista Bons Fluidos (edição 235) afirmam que se trata de um período em que é importante saber “recuar com sabedoria” ao mesmo tempo em que se age “corajosamente com rigor”. Também ajuda ter consciência de que “tudo se processa no momento certo e com medida adequada”. 

As análises apresentadas nos parágrafos acima não chegam a se contradizer mutuamente apenas porque, em si mesmas, quando lidas com alguma atenção, já não comunicam nada: dizer a uma pessoa que ela pode ser impulsiva, mas que as coisas talvez demorem, ou que é preciso ter coragem, mas saber recuar, é como dizer que ela vai precisar de um agasalho – mas só se não fizer calor. Ou, então, se fizer frio.

Dizer tudo sem realmente afirmar nada é o principal segredo do sucesso (e o menor dos pecados) dessas superstições. Problemas – muitas vezes graves – surgem quando cometem a temeridade de afirmar coisas, e são levadas a sério. A astrologia chinesa, por exemplo, já foi implicada na queda da natalidade no Japão, e até mesmo num aumento de casos suspeitos de infanticídio de meninas, em períodos considerados astrologicamente pouco auspiciosos.

Em setembro de 1966, o jornal japonês Japan Times noticiou uma queda de 27% na taxa de natalidade no país, aparentemente porque aquele era um ano do “Cavalo de Fogo” (além do ciclo de 12 anos dos animais, a astrologia chinesa tem um ciclo paralelo de cinco elementos), e meninas nascidas sob essa configuração são consideradas “difíceis para arranjar marido”. A solução encontrada por muitos casais foi evitar filhos no ano ruim: a taxa de natalidade em 1967 deu um salto de 42% em relação a 66.

Evitar filhos ou, até, matar filhas. Artigo publicado por um pediatra japonês em 1975 apontava uma elevação na taxa de mortalidade de meninas recém-nascidas – mas não de meninos – por violência ou acidente, em 1966. A superstição envolvendo a má sorte de meninas nascidas num ano do Cavalo de Fogo (o próximo será 2026) é tão antiga e marcante que há relatos de suicídios de mulheres nascidas nesses anos – principalmente em 1906 –, induzidos pelo estigma.

Estudo publicado em 2012 aponta que tanto homens quanto mulheres nascidos no Japão em 1966 encontraram mais dificuldade em se casar do que os nascidos em outros anos, mas não fica claro se por causa do preconceito ou se pelo simples fato de que a geração de 66 já havia começado menor.

Esses podem parecer problemas distantes, de uma cultura diversa da nossa, mas aqui no Brasil já são conhecidos casos de partos cesarianos induzidos por conveniência astrológica; a Revista de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo – não, note-se, a Bons Fluidos – já publicou artigo sobre as “vantagens” da “astrologia empresarial”, inclusive na seleção de funcionários e na escolha de investimentos. E, aparentemente, entre a juventude hipster recém-encantada com a astrologia, “zodiac-shaming”, o ato de discriminar pessoas por causa do mapa astral, já virou um problema.

Como o professor Marcelo Knobel e eu já apontamos neste artigo, crenças infundadas como a astrologia parecem curiosas, charmosas e inócuas, até o momento em que alguém as leva a sério o suficiente para permitir que afetem sua vida ou a das pessoas ao redor.

A maioria das pessoas tende a acreditar numa espécie de barreira final de racionalidade instintiva, algo que impede que doutrinas sem sentido causem dano grave. O senso-comum é que é “normal”, por exemplo, achar que o pensamento positivo altera a realidade, mas que pular do décimo andar desejando, como o máximo de otimismo, criar asas e sair voando já é “coisa de maluco”.

O problema, claro, é que a maluquice já está implícita no “normal”, e que os controles psicológicos que impedem que uma coisa evolua para a outra são muito mais permeáveis do que se imagina. De meninas japonesas estigmatizadas a virginianos discriminados no mercado de trabalho, é muita gente que sofre por causa de – literalmente – bobagem.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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