Um fato da vida é que ideias e doutrinas sem base na realidade têm, paradoxalmente, a liberdade de basearem-se em qualquer coisa: se afirmo que porcos podem voar, sou livre para atribuir o fenômeno à física quântica, às fases da lua ou à cinética da Terra plana, tanto faz. É uma nova roupagem para a velha advertência da lógica clássica, de que absurdos, uma vez aceitos, permitem demonstrar qualquer coisa: se dois é igual a um, e eu e George Clooney somos dois, então somos um, logo sou George Clooney.
Essa liberdade fantástica de ser dois e um ao mesmo tempo é muito utilizada por defensores e praticantes de diversas terapias alternativas, quando confrontados pela ciência. A ciência é irrelevante, porque trata o mundo e as pessoas de modo atomizado e reducionista; ao mesmo tempo, a ciência prova que terapias alternativas funcionam. A ciência eurocêntrica é apenas mais um modo de saber, e nada a torna mais válida do que as tradições do Oriente; agora, veja este teste científico que mostra que tal tradição tem validade.
É difícil argumentar com um adversário que se reserva a prerrogativa de aceitar ou rejeitar premissas de acordo com a direção do vento, mas hoje eu gostaria de pegar um dos lados da contradição e tratar das pretensões de cientificidade que certas práticas alternativas assumem, até a hora em que resolvem mudar de ideia, ou que um argumentador cansa e outro entra no lugar.
Para realizar essas pretensões, tais práticas vestem uma espécie de fantasia de ciência: põem o jaleco, aprendem o jargão, prestam concurso, publicam papers. O resultado é algo como o Bizarro, personagem tragicômico das histórias em quadrinhos de Superman – uma cópia imperfeita, que almeja o status de seu modelo, mas que parece condenada a jamais entender ou capturar exatamente as qualidades essenciais do modelo original.
No Brasil, especialmente, onde essas coisas (jaleco, jargão, título, publicação) são muito mais valorizadas do que detalhes incômodos como elaborar perguntas originais, aplicar métodos de modo que realmente faça sentido ou avançar a fronteira do conhecimento humano, o mimetismo Bizarro tende a ser bem tolerado. Mas a verdade é que o disfarce não resiste a uma observação mais cuidadosa.
Por exemplo: em 2017 publicou-se, no Brasil, uma lista de metanálises – estudos que congregam os resultados de diversos trabalhos científicos sobre um mesmo assunto – que, supostamente, daria apoio à tese de homeopatia cura alguma coisa, além de saldo positivo em conta bancária. Fui conferir.
Da primeira suposta metanálise positiva, a autora do levantamento transplanta a seguinte conclusão: “Existe certa evidência de que os tratamentos homeopáticos são mais efetivos que o placebo”. Ela, oportunamente, omite o que vem logo em seguida, no paper original: "no entanto, a força dessa evidência é baixa, por causa da baixa qualidade metodológica dos testes. Estudos de alta qualidade metodológica têm maior probabilidade de ser negativos do que os estudos de menor qualidade".
A diferença que um "no entanto" faz! Curioso, fui procurar a segunda metanálise citada, onde a conclusão triunfante copiada pela autora é: "Os resultados de nossa metanálise não são compatíveis com a hipótese de que os efeitos clínicos da homeopatia são totalmente devidos ao efeito placebo". De novo, o corte acontece antes do comprometedor however: "No entanto, a evidência encontrada nesses estudos é insuficiente para demonstrar que a homeopatia seja claramente eficaz para qualquer condição clínica. Novas pesquisas em homeopatia serão válidas desde que sejam rigorosas e sistemáticas".
E haveria mais um "no entanto"? Pode apostar! Da terceira metanálise, a autora destaca: “Os resultados dos estudos randomizados disponíveis sugerem que a homeopatia individualizada tem efeito superior ao placebo”. O levantamento pró-homeopatia, caridosamente, omite a oração seguinte: "A evidência, no entanto, não é convincente, por causa de defeitos metodológicos e inconsistências". Aí eu parei porque, né, já deu.
The Science Snatchers
O mimetismo Bizarro produz o que chamo de "ciência-vagem-do-espaço". No livro de ficção científica The Body Snatchers (filmado diversas vezes), pessoas são insidiosamente substituídas por réplicas gestadas em vagens espaciais. Essas réplicas têm a aparência e as memórias do ser humano original, mas nada de sua essência: qualquer um que conheça intimamente a pessoa substituída logo se dá conta de que está lidando com um impostor.
A ciência-vagem-do-espaço é assim: tem cara de ciência, às vezes até rende um título de doutor ou uma publicação com peer-review, mas qualquer análise mais preocupada com a substância que com a aparência logo a revela pelo que realmente é: um exercício de vacuidade, desperdício de recursos e um gesto de fé.
Por causa disso, hoje em dia não dá mais para dizer que não existem estudos apontando a eficácia de coisas como homeopatia ou imposição das mãos (ou mesmo prece). Existem! Para o grande público, que só tem tempo de ver essas coisas de longe, sem muita atenção e, quase sempre, filtradas pela mídia, a vagem-do-espaço passa pela coisa real. Para quem trabalha com divulgação científica, essa condição especial cria uma camada extra de complexidade.
Atores e terapeutas
Um modo de lidar com isso é lembrar que o fato de haver um punhado de estudos dizendo que X funciona não anula o fato de que existem centenas ou milhares de estudos mostrando que X é uma besteira. O consenso da comunidade científica – formado a partir da preponderância da evidência disponível – vale mais, em princípio, do que qualquer paper ou tese individual.
Isso não quer dizer que a ciência seja uma ortodoxia estática. Isso quer dizer que alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias. Afirmações sobre como a natureza funciona têm o que poderíamos chamar de profundidade epistêmica: as leis da biologia têm raízes profundas nas da química, que têm raízes profundas nas da física. Se buscamos postular que um fenômeno biológico, como a cura de uma doença, tem causas que contradizem princípios da química (como no caso da homeopatia) ou da física (reiki e outras terapias ditas “energéticas”) bem estabelecidos, o ônus da prova que recai sobre nós é enorme, realmente extraordinário.
Outro jeito é explicar por que a ciência-vagem não é ciência de verdade. Para nossa imorredoura alegria, a maior parte dos "estudos" que parecem validar terapias alternativas é negligente em pelo menos uma de três maneiras. Conhecendo as negligências, não é difícil pegar o fio da meada e achar o erro. São elas:
Tomar o exploratório por confirmatório: um "estudo exploratório" tem como objetivo apontar rumos para pesquisa – é o equivalente de dizer "ei, pessoal, parece que tem algo interessante aqui". É como jogar uma rede no mar só para ver o que ela traz. Um trabalho assim apenas sugere o fenômeno; estudos confirmatórios, mais rigorosos, depois são necessários para ver se o que veio na rede é peixe ou pneu velho. A pesquisa em medicina alternativa é feita quase que 100% de estudos exploratórios que se revelam becos sem saída.
Pseudo-controles: o padrão-ouro de evidência, em pesquisa médica, é o representado por estudos clínicos duplo-cegos, randomizados e controlados por placebo. Isso quer dizer que você trabalha com dois grupos, selecionados ao acaso ("randomizado") dentro da população de interesse; um deles é o grupo que vai receber o tratamento em teste e o outro, um produto inerte ("placebo"). Também quer dizer que nem os voluntários, nem as pessoas encarregadas de administrar o tratamento/placebo sabem qual grupo é qual ("duplo-cego").
Há várias razões, tanto na medicina alternativa quanto da tradicional, que muitas vezes impedem que esse design seja implementado de modo completo. Mas pelo menos a presença de um grupo de controle é, geralmente, necessária para que o trabalho tenha um verniz mínimo de credibilidade. Praticantes de terapias alternativas, no entanto, são hábeis em tornar os controles, na prática, irrelevantes: transformá-los em varsões-Bizarro.
Estudo recente sobre reiki, realizado no Brasil, por exemplo, expôs o grupo de tratamento a "terapeutas" formados e com anos de experiência na prática; e o grupo de controle, a pessoas sem nenhuma familiaridade com o reiki e sem experiência terapêutica. O grupo de tratamento terminou se sentindo melhor, o que foi interpretado como um sucesso do reiki.
Uma interpretação mais lúcida seria a de que um placebo aplicado por profissionais é mais eficaz do que um aplicado por amadores: o controle usado foi absolutamente inadequado. Anos antes, na Inglaterra, um estudo semelhante, sobre "terapia espiritual", havia usado terapeutas reais e atores treinados para se comportar como terapeutas reais – incluindo o modo de abordar o paciente, mostrar simpatia, na linguagem corporal, etc. Esse trabalho britânico, muito melhor desenhado, apontou que a interação com os atores era mais terapêutica que a com os terapeutas “de verdade”.
A diferença entre profissionais e amadores é relevante porque nem todos os placebos são criados iguais. Sabe-se, por exemplo, que uma pílula cara de açúcar causa mais "benefícios" do que uma barata, e placebos performáticos (como acupuntura) têm impacto maior. Estudo publicado no British Medical Journal em 2008 já apontava que o efeito placebo é aditivo: "Os fatores que contribuem para o efeito placebo podem ser progressivamente combinados, de um modo que se assemelha a uma escala graduada de aumento da dose", diz o trabalho. "O componente mais robusto é a relação paciente-terapeuta".
Ou seja, uma pessoa com experiência em deixar o paciente à vontade e que domina o mise-en-scène da prática terá um efeito “terapêutico” superior ao da pessoa que caiu na história de paraquedas, independentemente da validade concreta da prática em questão.
Comparação A+B versus A: Muitos estudos sobre terapias alternativas comparam os resultados obtidos por pacientes que seguem um curso de tratamento tradicional (A) com os que seguem um tratamento tradicional acompanhado de uma terapia alternativa (A+B), e concluem que o grupo A+B se saiu melhor. Dado o caráter aditivo do efeito placebo, no entanto, esse tipo de resultado não prova nada: a simples presença de "B", qualquer que seja "B", já deveria produzir algum benefício, por puro condicionamento ou conforto psicológico.
Essas não são as únicas manobras usadas, mas aprender a reconhecê-las pode ajudar a avaliar melhor os papers que seus amigos entusiastas da homeopatia ou dos florais de Bach andam mandando pelo WhatsApp.
Leia também:
Terapias alternativas como (quase) teorias da conspiração
Ah sim: outra característica muito comum a esses estudos é baixo poder estatístico. “Poder”, aqui, é um termo técnico, diretamente proporcional ao número de indivíduos que tomou parte no teste, e que se refere à capacidade da pesquisa de detectar algum efeito real. Um resultado positivo num estudo de baixo poder tem boa chance de ser um efeito irreal, uma ilusão gerada por coincidências, decorrentes do fato de a amostra ser pequena.
A publicação de um artigo com revisão pelos pares marca a estreia pública, e não a consagração, de uma ideia. Consagração, se vier, será fruto de reproduções independentes do resultado, do embate com os fatos da natureza e com as objeções dos demais especialistas. O que costuma acontecer, no mundo das terapias alternativas, é a mesma ideia “estrear” e “reestrear” um sem-número de vezes – porque cada lançamento, aparentemente espetacular, termina em voo de galinha.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência