Indiferença à verdade na era dos totalitarismos customizados

Apocalipse Now
9 nov 2019
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dois touros

 

"Taurascástica" vem do grego tauros, “touro”, e éskhaton, que está na origem de expressões como “escatológico” e “escatologia”. Ela foi criada pelo especialista em retórica clássica James Fredal, num artigo publicado em 2011, para se referir "ao estudo de falar merda" ("the study of bullshit", no original).

Isso pode surpreender algumas pessoas, mas bullshit ("falação de merda") é, hoje em dia, um termo técnico usado em filosofia e comunicação. A expressão foi definida formalmente pelo filósofo Harry Frankfurt, num famoso ensaio, como o enunciado que é indiferente à verdade – algo que se diz com o objetivo primordial de produzir uma reação ou um comportamento no ouvinte. Uma pessoa que "fala merda" não quer saber, não liga, se o que diz é verdadeiro ou falso: ela dirá qualquer coisa para convencer ou impressionar quem a ouve. A bullshit pode até ser verdade, mas quem a emprega não está nem aí para isso: o que se pretende é que o destinatário/receptor vote em alguém, compre alguma coisa, indigne-se com isto ou aquilo ou abrace uma causa. 

Por essa definição, praticamente toda a política e toda a publicidade comercial são bullshit de alto teor, claro. E as pessoas que compartilham memes, links e fake news nas redes sociais e aplicativos de mensagem, só porque esses memes, links, etc. parecem reforçar algo em acreditam e de que gostariam de convencer os outros, estão bullshiting, "falando merda". 

A maioria de nós provavelmente já ouviu (ou até, já deu) a desculpa de “não importa se é verdade, é a cara dele”, depois de compartilhar alguma infâmia ou canalhice falsamente atribuída a seu vilão da vida real favorito.

Exemplo clássico (e, dados os tempos atuais, bastante inócuo) de bullshit é a velha anedota de que, enquanto os americanos gastaram milhões de dólares para inventar uma caneta esferográfica que funcionasse em gravidade zero, os russos usavam lápis no espaço: quem a emprega não está nem aí para o fato de que o conto é falso. Foi inventado por algum precursor da moderna onda do “empreendedorisimo de palco” para estimular ideias tolinhas sobre uma suposta relação entre criatividade, simplicidade e o poder do “óbvio que só os gênios veem”. 

O curioso é que a “obviedade genial”, no caso, é a de que não é uma boa ideia ter partículas de grafite, um material condutor de eletricidade, e de madeira, inflamável, flutuando ao redor de equipamento elétrico sensível num ambiente fechado.

"Profunditude", por sua vez, é minha tradução pessoal para o neologismo da língua inglesa deepity, usado pelo filósofo Daniel Dennett para se referir a frases e expressões que têm dois sentidos: um verdadeiro e banal e outro supostamente profundo, mas falso. 

Resumindo, a profunditude só é verdadeira na medida em que diz algo trivial ao ponto da irrelevância; quando se tenta ler algo de relevante nela, torna-se falsa. 

Parece complicado? Vamos a um exemplo: “amor é apenas uma palavra”. Do ponto de vista literal, trata-se de uma obviedade: “amor” é um substantivo da língua portuguesa, logo “é apenas uma palavra”. Mas o enunciado nos convida a enxergar ali algo além do óbvio gramatical. Que o amor é desimportante, ou que não é mais importante do que outras coisas que também são “apenas palavras”, como chapéu, coleóptero ou escorbuto. O que é claramente bobagem. E bobagem é apenas uma palavra, também.

Sem sentido

É de se imaginar que exista uma razoável sobreposição entre enunciados taurascásticos e profunditudes, mas um paper publicado em 2015 mostra que a produção de profunditudes é, no fim, um desperdício de recursos: bullshit não precisa fazer sentido – nem mesmo de modo óbvio e superficial – para funcionar.

O estudo, de autoria de Gordon Pennycook e colegas, usa frases reais de Deepak Chopra e frases formadas por associação aleatória de palavras retiradas do vocabulário usual encontrado nas obras de Chopra (o sistema está online aqui: wisdomofchopra.com). Os enunciados então tiveram seu grau de profundidade avaliado por voluntários, juntamente com frases-controle “normalmente consideradas profundas”, mas de enunciado claro (por exemplo, “rios cortam rochas não por meio da força, mas da persistência”).

O trabalho conclui, entre outras coisas, que a falsa profundidade do conteúdo ajuda a taurascástica a atingir seu objetivo de impressionar o ouvinte, e que há diferenças interpessoais consistentes na suscetibilidade à conversa fiada: pessoas que consideraram Chopra pouco profundo consideraram pouco profundas as frases simuladas, e vice-versa.

Esse estudo de Pennycook foi atacado por, supostamente, não levar em conta a experiência subjetiva dos ouvintes. Uma crítica publicada no mesmo periódico sugere que os enunciados gerados por simulação, mesmo tendo sido construídos como bullshit, “poderiam, a despeito disso, terem sido subjetivamente profundos e fornecido lampejos de sabedoria para os sujeitos”. 

A ideia geral seria a de que pessoas inteligentes e capazes de reflexão profunda teriam se esforçado mais para encontrar significado nos enunciados e, portanto, o uso das frases sem sentido para gerar um indicador de suscetibilidade a bullshit (um dos objetivos do estudo original) seria metodologicamente inadequado.

labirinto

 

A tréplica de Pennycook tem o título antológico de “It’s still bullshit” (“É merda mesmo assim”) e apresenta evidências de que, na verdade, pensadores mais criteriosos são capazes de reconhecer a taurascástica pelo que realmente é. Estudo posterior, independente, reforçou a correlação entre inteligência e a capacidade de separar enunciados realmente profundos de bullshit.

Além disso, o grupo de Pennycook lembra que a definição de bullshit dada por Frankfurt trata, especificamente, do estado mental do emissor – no caso, sua indiferença a questões de verdade ou mentira. Uma máquina gerando frases ao acaso obviamente não liga para verdade ou mentira. Logo, produz bullshitipso facto, não importa a leitura que o receptor faça.

Taurascástica de saturação

O interesse na pesquisa sobre bullshit, em anos recentes, expandiu-se para além da groselha pseudoquântica, pseudoprofunda e de autoajuda. Numa reflexão sobre a campanha do Brexit e declarações do presidente americano Donald Trump, o filósofo Quassim Cassam definiu “despreocupação epistêmica” como um tipo de postura epistemológica – um modo de olhar para o mundo, mais especificamente para a natureza do conhecimento – que “consiste uma despreocupada indiferença a respeito de se as próprias crenças têm alguma base na realidade ou são apoiadas em evidência adequada”. Cassam nota que “o principal produto intelectual da despreocupação epistêmica é bullshit, no sentido de Frankfurt”.

Harry Frankfurt escreveu, em seu clássico, que “a produção de bullshit é estimulada sempre que as oportunidades ou obrigações de uma pessoa para falar sobre algum tópico excede seu conhecimento dos fatos relevantes ao tópico (...) casos semelhantes emergem da convicção generalizada de que é responsabilidade de um cidadão, numa democracia, ter opiniões sobre tudo...”. Mais adiante, complementa: “a falta de qualquer conexão significativa entre as opiniões de alguém e seu entendimento da realidade será ainda mais grave, desnecessário dizer, para alguém que acredita ser sua responsabilidade, como um agente moral consciencioso, avaliar eventos e condições em todas as partes do mundo”. 

Crédulos cínicos

Esse material data de 1986. Para mim, ao menos, é bem difícil reler a passagem, hoje, e não pensar em Twitter ou Facebook, dois fóruns em que as pessoas se veem constantemente levadas a pensar que têm “obrigações ou oportunidades”, ou a responsabilidade cidadã, de “ter opiniões sobre tudo”. 

Um artigo publicado ano passado sugere, de fato, que a situação atual, trazida pelo ecossistema das redes sociais, é muito pior do que qualquer coisa que Harry Frankfurt poderia ter previsto. Os autores apontam que “alegações seguidas de ‘fake’ news, mentiras repetidas e bullshit endêmica reduzem realidades complexas e diversas a alegações perigosamente vazias e desprovidas de sentido”, o que tende a instilar um sendo de despreocupação epistêmica no público: “o indiferente acha que buscar os fatos e as soluções reais para problemas complexos é inconveniente”, perguntando-se: “por que me dar ao trabalho, se tudo é mentira?”

Os autores temem que o elo natural entre verdade e confiança – onde a verdade é pré-requisito necessário para a construção de confiança – esteja se perdendo. Tudo isso, claro, remete aos comentários de Hannah Arendt sobre a relação entre poder totalitário, verdade e mentira em sua obra “As Origens do Totalitarismo”.

“A política totalitária usa e abusa de seus elementos político-ideológicos até que a base na realidade factual (...) tenha, fundamentalmente, desaparecido” , escreve ela. E, mais adiante: “Uma mistura de credulidade e cinismo tem sido uma característica notável da mentalidade de turba antes que se tornasse um fenômeno cotidiano das massas. Num mundo incompreensível, em constante mudança, mas massas chegaram a um ponto em que iriam, ao mesmo tempo, acreditar em tudo e em nada, imaginar que tudo é possível e nada é verdade”. 

Nessas condições, o líder totalitário que mente num dia e é desmentido no dia seguinte não perde a confiança do povo, pelo contrário.  As massas dirão que “sabiam o tempo todo que a alegação era mentirosa, e admirarão a esperteza de seus líderes (...) a mistura de credulidade e cinismo é prevalente em todos os níveis de movimentos totalitários”. 

Quando escreveu isso, há quase 70 anos, Arendt tinha em mente Hitler, Stálin e um ecossistema de comunicação dominado por rádio, jornais impressos e cinema. Hoje em dia, talvez não valha mais a pena falar em “turba”, ou “massas” de alcance nacional, mas em “tribos” polarizadas, “massas” customizadas ou, com o perdão do oximoro, atomizadas. O império da taurascástica pode, muito bem, estar abrindo as portas para uma era de tribos, internamente totalitárias, que dividem um mesmo território físico e virtual.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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