Um lote de imagens relacionadas à fraude das fadas de Cottingley, de propriedade da família de uma das duas meninas responsáveis pelas fotos, produzidas no início do século passado e que mostram crianças brincando com fadas e gnomos, foi arrematado por mais de 50 mil libras (R$ 250 mil) na tarde desta quinta-feira, 11 de abril. O desempenho ficou abaixo do esperado – estimava-se que o lote traria mais de 70 mil libras (R$ 350 mil). Em outubro do ano passado, duas das fotos originais haviam sido vendidas por 20 mil libras (R$ 100 mil).
A peça principal do leilão, uma cópia da foto conhecida como “Frances e o Círculo de Fadas” feita a partir do negativo original, não foi arrematada. Seu valor era estimado em 12 mil libras (R$ 60 mil).
O caso das fadas de Cottingley é, muitas vezes, descrito como uma das maiores fraudes do século 20. Entre julho e agosto de 1917, duas primas, Elsie Wright, de 16 anos, e Frances Griffiths, de nove, supostamente fotografaram fadas – mulheres minúsculas com asas de borboleta – dançando e brincando nos arredores de Cottingley Beck, um riacho que corria perto de suas casas no vilarejo inglês de Cottingley.
Pegando emprestada a câmera fotográfica do pai de Elsie, Arthur Wright, a dupla produziu uma série de fotos de espíritos da natureza – fotos que foram aceitas como autênticas pelo escritor de romances históricos, mistérios e ficção científica Sir Arthur Conan Doyle. O autor, então uma celebridade internacional, revelou ao mundo a “prova” da existência de fadas, primeiro, num artigo publicado em 1920 (ano em que as primas obtiveram ainda mais imagens “sobrenaturais”), e depois, com mais detalhes, em um livro de 1922.
As imagens
Embora Elsie e Frances dissessem ter tirado diversas fotos, apenas cinco (duas de 1917, três de 1920) vieram a público. Doyle dizia que especialistas em fotografia haviam lhe garantido que não existia sinal de manipulação das placas fotográficas em que apareciam as imagens de fadas, nem sinal de dupla exposição. A máquina fotográfica de Arthur Wright trabalhava com chapas de vidro, não filme.
Este é um fenômeno muito comum na “autenticação” de supostos eventos paranormais: o investigador obter uma resposta, talvez até correta, mas para a pergunta errada, e com isso chegar a uma conclusão injustificada.
Porque as fotos de Cottingley, como deveria ter sido perfeitamente claro desde o início, eram fraudes. Para além do fato de haver alguns sinais de dupla exposição em uma das cinco imagens publicadas (a quinta e última), a verdade é que o truque jamais dependeu, em essência, desse tipo de manipulação. As meninas simplesmente haviam copiado e recortado desenhos de fadas de um livro infantil, e montado as cenas. Quer dizer: mesmo se os laudos obtidos por Doyle estivessem corretos, seriam irrelevantes.
A “autenticação” feita pelo famoso escritor acabou dando origem a uma polêmica em torno das imagens de Cottingley que perdurou, em certos círculos, até a confissão pública das primas (então já idosas), feita em 1983. Elsie faleceu em 1988; Frances, em 1986.
Melindrosa
Muito antes disso, é claro, a fraude já era dada como certa por praticamente todas as pessoas que tivessem dedicado mais do que alguns minutos para pensar a sério no assunto, e não estivessem comprometidas, por algum tipo de grave investimento pessoal ou emocional, com a perpetuação do mito.
Os indícios eram inúmeros. Para além da óbvia implausibilidade geral, as imagens eram por demais estáticas, as fadas que apareciam “voando” ou flutuando” tinham asas imóveis; o caráter falso e posado da fotos era por demais evidente.
Em pelo menos duas delas, salta aos olhos que as figuras “sobrenaturais” são desenhos recortados: a segunda de 1917, que mostra uma espécie de gnomo brincando na grama; e a segunda de 1920, em que uma fada, vestida como uma típica “melindrosa” dos anos 20 (teria o desenho sido copiado de uma revista de moda?), oferece a Elsie uma flor.
Até mesmo livro de onde as fadas de 1917 foram copiadas, uma obra de 1915 intitulada “Princess Mary's Gift Book”, foi identificado por investigadores, na década de 1970.
Os desenhos que viriam a inspirar o primeiro lote de “fadas de Cottingley” tinham, originalmente, ilustrado o poema infantil "A Spell for a Fairy" (“Um Feitiço para uma Fada”), uma receita em versos para invocar fadas de autoria do poeta e autor de histórias de fantasmas Alfred Noyes.
Conan Doyle
Arthur Conan Doyle tornara-se mundialmente famoso pela criação do detetive Sherlock Holmes, cuja primeira aventura havia sido publicada em 1887, trinta anos antes das fotografias de Cottingley. Quando do aparecimento das fotos, em 1920, Sir Arthur vinha, já há algum tempo, se mostrando vulnerável a supostas “evidências científicas” da realidade do paranormal e do sobrenatural.
Diversos biógrafos atribuem a conversão final do autor ao espiritismo à perda de amigos e parentes na 1ª Guerra Mundial (1914-1918) e na pandemia de gripe que se seguiu.
Pelo menos um biógrafo, Andrew Lycett, especula que a facilidade com que Doyle se deixou levar pela história das primas Elsie e Frances pode ter sido causada pela vontade de acreditar que as alucinações do pai, o pintor e ilustrador Charles Altamont Doyle – que sofria de alcoolismo e depressão, e que acabou morrendo num hospício – refletiam não um distúrbio mental mas, sim, uma sensibilidade especial ou mediunidade.
A verdade? Que verdade?
Um mistério que perdura até hoje é o do papel dos pais de Elsie e de Frances na perpetração da fraude. A versão oficial é de que Arthur Wright, ele próprio um fotógrafo amador, nunca levou as imagens a sério; de fato, as fotos de 1917 permaneceram engavetadas até 1919, exatamente porque Wright estava convencido de que se tratavam apenas de uma brincadeira infantil.
Ainda de acordo com o relato oficial, as imagens só se tornaram públicas depois que sua mulher, Polly, deixou-se influenciar pela teosofia, uma crença esotérica que inclui espíritos e fadas, e decidiu mostrou as fotos aos colegas de crença. Com a aceitação das fotos entre os amigos teosofistas de Polly e, depois, por uma celebridade como Doyle, Elsie e Frances teriam se intimidado e perdido a coragem de confessar a brincadeira – postura que mantiveram por quase 70 anos.
Mas uma reportagem publicada em 2017 – no centenário das imagens – pela revista Fortean Times sugere que o adulto Arthur Wright, que afinal tinha experiência com truques fotográficos, teria sido o verdadeiro artífice da fraude, obtendo diversas vantagens financeiras, incluindo sucessivos pagamentos pela autorização de publicação das fotos e chegando a um dote de 100 libras (em dinheiro de hoje, mais de R$ 20 mil) para a filha, pago por Doyle.
Embora haja evidência independente de que o segundo lote de fotos foi tirado em 1920, a data de 1917 para as primeiras imagens depende apenas da palavra da família Wright. Arthur poderia tê-las produzido em 1918 ou 19, após Polly se envolver com teosofia, talvez para impressionar os amigos da esposa – e então as coisas saíram de controle.
Lições
O caso das fadas de Cottingley é didático por diversas razões. Além de ser um perfeito exemplar de procedimento investigativo torto, que se fixa em mecanismos de fraude ou engano desnecessariamente complexos (dupla exposição, trucagem de laboratório) quando um muito mais simples (recortes de cartolina) estava à mão, ele também ajuda a pôr em foco uma série de outras questões que seguem relevantes no século 21.
Havia o desejo de Doyle de validar a própria fé e, talvez, de exonerar tanto o pai quanto a si mesmo da pecha de doente mental – o medo de que a loucura passasse “pelo sangue” era palpável na Era Vitoriana, e Doyle, formado em Medicina, havia trabalhado com casos de sífilis hereditária.
O autor, desde o princípio, tratou as duas hipóteses que poderiam explicar as imagens – fraude ou a descoberta de uma ordem mágica de seres vivos habitando o planeta Terra – como igualmente cabíveis, o que é um óbvio contrassenso: pessoas mentem, se enganam e pregam peças umas nas outras o tempo todo; já o colapso da compreensão humana das leis da natureza é algo muito mais raro. Testemunhos sobre o caráter e a "decência" da família Wright foram considerados até mais importantes do que a evidência física.
Havia também a idealização da infância: meninas “de boa família” não mentem! E a questão de classe e de preconceito de classe: os Wright eram “gente de bem”, uma família inglesa “simples”, sólida e honesta de classe média. E “gente simples de bem” não mente. Se mentir, não tem malícia suficiente para enganar seus “superiores” sociais e intelectuais.
Ou, ao menos, era o que imaginavam os ingleses na virada do século 19 para o 20. E o que muitos – ingleses ou não – imaginam até hoje.
Também põe em evidência a chamada falácia da proporcionalidade, a ideia de que grandes consequência requerem grandes causas, ou grandes motivos. A motivação original por trás das fotos pode ter sido simplesmente pregar uma peça num grupo de amigos, ou rir um pouco às custas de gente presunçosa que acha que todo pequeno-burguês honesto é também ingênuo e tapado.
E chama atenção para o fato, hoje mais importante do que nunca, de que mentiras escapam de controle: geram bolas de neve que acabam por tornar qualquer desmentido posterior muito custoso, embaraçoso ou, até mesmo, inútil.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência