João de Deus: os muitos crimes de uma fraude espiritual

Resenha
26 out 2021
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“João de Deus – Cura e Crime” é uma série documental da Netflix sobre crimes reais, dos cineastas brasileiros Mauricio Dias e Tatiana Villela, sobre João de Deus (nome real João Teixeira de Faria). Conhecido há décadas na América do Sul, ele foi um médium prolífico que afirmou canalizar os espíritos de dezenas de médicos, figuras bíblicas (por exemplo, o rei Salomão) e outros. Faria é quiçá mais conhecido por realizar cirurgias psíquicas, afirmando tratar e eliminar tumores e doenças usando só suas mãos (ou, em alguns casos, bisturis ou fórceps) em seu complexo na pequena cidade brasileira de Abadiânia.

Prescrevendo medicamentos à base de ervas e limpezas espirituais a seu pessoal e a seguidores vestidos de branco, afirmou ter tratado milhões de pessoas desde a década de 1970. Oprah Winfrey, que nunca se envergonha de promover pseudociência e disparates vários, respaldou Faria tanto em sua revista (em 2010) como em seu programa de televisão (em 2013), em um segmento intitulado “Acredita em milagres?”. Ele e seus seguidores vendiam cristais, ervas, amuletos, “água curativa” e outros badulaques semirreligiosos típicos da “Nova Era”.

A série em quatro partes, em português, conta a história por meio de imagens de arquivo, entrevistas, recortes de jornais e algumas recriações. Os delitos a que se refere o título são acusações de abuso sexual (que envolvem mais de 300 vítimas), grande parte deles realizados sob o pretexto de toques curativos, e algumas à vista de quem estava no local (bem, não em “plena vista”, porque pedia aos presentes que inclinassem a cabeça e fechassem os olhos, para ajudar nas curas de oração).

A série demonstra como é fácil manipular pessoas e fiéis desesperados, especialmente no contexto de curas não só espirituais como físicas; nem todo mundo crê no mesmo tipo de salvação espiritual, mas os problemas de saúde são universais, e curá-los, ou, neste caso, parecer curá-los, pode ser uma experiência profundamente comovedora. O abuso realizado sob a aparência de cura espiritual não é nada novo; vide, por exemplo, o “médium psíquico acusado de exploração sexual” na edição de setembro/outubro de 2012 da revista Skeptical Inquirer. Há paralelismos com outras seitas e religiões abusivas, como as que aparecem em documentários como “Wild, Wild Country” e “Going Clear: Scientology and the Prison of Belief”.

A série revela efetivamente as pressões que João de Deus exerceu sobre a comunidade, inclusive sua própria filha, que aparece na película. Ela o acusou de agredi-la, logo se retratou (quando ele ameaçou tomar seus filhos) e depois reafirmou as acusações originais. E se João de Deus tinha controle espiritual sobre sua comunidade, também tinha fortes interesses econômicos e políticos. O Brasil rural está em grande parte empobrecido, e quando sua fama se espalhou, atraiu seguidores (muitos com dinheiro, procedentes dos EUA e da Europa). Isto provocou um boom de hotéis, restaurantes e outros negócios locais que passaram a depender dele. João de Deus converteu-se em uma mini-indústria, e havia poucos incentivos para questionar a fonte de receita local. Apesar disso, um punhado de mulheres e homens o fizeram e, finalmente, a polícia se viu obrigada a agir. Em 2018, sob uma pressão crescente, Faria se entregou às autoridades, alegando inocência, e nos anos seguintes foi sentenciado a mais de sessenta anos de prisão.

As histórias contadas pelas sobreviventes são espantosas, mas o que talvez seja ainda mais impactante sobre “João de Deus – Cura e Crime” é o que os realizadores deixam de mostrar sobre o líder. Mauricio Dias e Tatiana Villela parecem ignorar, ou não querem expôr, o fato de que João de Deus não é um curador espiritual talentoso que se aproveitou das seguidoras durante décadas. Ele também é uma fraude; não tem nenhum poder de cura, e não só não há evidência científica de que tenha curado alguém, como causou danos, quando pessoas buscaram seus serviços no lugar de buscar ajuda médica real.

Isto é importante porque a série termina com comentários introspectivos de alguns seguidores que, ainda que entredentes, reconhecem que Faria pode ser culpado de má conduta, mas se apressam a acrescentar que, apesar de tudo isso, curou e salvou milhares de pessoas. Esta tentativa pouco entusiasmada de encontrar um raio de luz redentor é equivocada e ofensiva. Para sermos claros: esta não é só a história de um predador sexual que opera sob o disfarce da religião, um curandeiro sagrado desviado pela ganância e luxúria. João de Deus não é um veículo defeituoso de milagres; é um conduto fraudulento de malícia, do princípio ao fim.

Não está claro por que os cineastas tomaram este caminho. Ou sabiam das acusações de fraude dos céticos contra Faria (à parte das acusações de abuso, e anteriores a elas por décadas) e escolheram de maneira pouco ética não incluí-las, ou não as conheciam e são simplesmente culpados de uma investigação descuidada e/ou apresentação enviesada. Suspeito que a resposta é de que ou os cineastas são verdadeiros crentes nos milagres de João de Deus, ou reconhecem que muitas das vítimas que entrevistaram o são (isto se depreende de vários dos comentários), e é provável que grande parte de sua audiência também o seja. Isto os coloca num incômodo dilema ético e editorial; ao menos alguns provavelmente criticariam a série por refutar milagres em que creem sinceramente, mesmo quando o denunciam como um predador sexual.

Dado que “João de Deus – Cura e Crime” não poderia se dar ao trabalho de explicar, e muito menos desacreditar, os métodos e afirmações de Faria, proporcionarei um breve resumo aqui. O fato de que as “cirurgias” ocorriam sem anestesia ou sem dores severas é considerado milagroso, mas é completamente explicável. Contrariamente às alegações, muitas de suas vítimas/pacientes informaram de fato terem sentido alguma dor e incômodo (ao menos um paciente entrevistado na televisão descreveu um “dor insuportável”), mas menos que esperavam com base, em parte, na quantidade de sangue que viram. Mas esta é uma questão simples de anatomia; quando se faz uma pequena incisão com uma navalha ou um bisturi, a dor será mínima, muito menor que em outros tipos de lesões, como as lacerações. Além disso, lesões em algumas partes do corpo sem muitas terminações nervosas sangram profusamente (como o couro cabeludo), mas são relativamente indolores.

Claro, ainda há explicações psicológicas, como o efeito placebo (que lhe digam que não sentirá dor pode fazer com que registre pouca ou nenhuma dor) e simplesmente estar em um “estado elevado” por encontrar-se na presença e “curado” por um curandeiro famoso provavelmente desviará sua atenção da dor. E também há influências sociais. Seus pacientes, assim como os receptores das curas por fé na igreja e na televisão, estão muito conscientes de que são observados e têm incentivos para seguir com o jogo e suportar qualquer mal-estar e dor, da mesma maneira que os participantes nos programas de hipnose no palco seguem os sinais do líder.

São apresentadas afirmações, sem provas, de que as incisões e “cirurgias” que Faria realizou em seu complexo rural não infeccionaram, o que poderia ser algo notável, se real. Mas como ocorre com a maioria dos casos de cura pela fé, há pouco ou nenhum acompanhamento posterior, e quando há, deve ser realizado por investigadores céticos (que estão notoriamente ausentes nesta série documental). Os curandeiros focam na atuação no momento, as curas sensacionais na frente de testemunhas e câmeras, que acontecem como algo aparentemente inexplicável e milagroso. Os médicos, por outro lado, focam no resultado: o tratamento realmente ajudou o paciente, curou o câncer, extirpou o tumor ou o trauma? Esta não é uma pergunta que possa ser respondida no momento, nem sequer nas horas ou dias posteriores. Acompanhar se as pessoas realmente se curaram (ou verificar as taxas de infecção pós-operatória) pode levar semanas ou meses de trabalho diligente, algo que João de Deus e outros curandeiros por fé não têm nenhum incentivo para fazer. Ironicamente, são os médicos convencionais, não os curandeiros religiosos, que tratam os pacientes como pessoas, no lugar de objetos publicitários.

Faria também realizou uma versão de um truque de feira de variedades chamado de “Blockhead”, em que objetos como pinças são aparentemente inseridos a profundidades perigosamente impossíveis no crânio dos pacientes, às vezes extraindo pedaços de carne que, segundo o curandeiro, estavam doentes. As técnicas da cirurgia psíquica estão bem documentadas nestas páginas e no livro "The Faith Healers", de James Randi, entre outras obras, e envolvem pouco mais que alguns truques de prestidigitação, ajudados, em grande medida, por um ardoroso desejo de acreditar. (Randi apareceu em um episódio de 2005 do programa “ABC News Primetime” para falar sobre João de Deus e, como de costume, teve menos de um minuto para refutar uma miríade de afirmações).

“João de Deus – Cura e Crime” é um olhar medíocre e inadequado sobre a vida e os crimes de João Teixeira de Faria. Oferece uma ideia de como um predador em série pode ter êxito durante tanto tempo, mas não se atreve a tirar o bode da sala. É alentador que finalmente se tenha aplicado certa medida de justiça a este curandeiro de fé fraudulento, mas as vítimas de João de Deus, que se contam em milhares, não centenas, merecem coisa melhor.

 

Benjamin Radford é pesquisador científico do paranormal, integrante do Committee for Skeptical Inquiry, editoradjunto de The Skeptical Inquirer e autor, coautor, colaborador ou editor de vinte livros e mais de mil artigos sobre ceticismo, pensamento crítico e alfabetização científica. Esta resenha foi publicada originalmente na revista Pensar 

 

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