Estrangulamento põe critérios de financiamento da ciência sob pressão

Questão de Fato
10 ago 2022
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Com o desprezo do atual governo pela ciência e o consequente corte de recursos para pesquisas, a disputa pelas migalhas que sobram para a área se torna cada vez mais acirrada. É nesse contexto que os critérios para decidir quais projetos serão contemplados pelas agências de fomento crescem em importância. O maior peso dado a uns sobre outros pode gerar injustiças, favorecendo pesquisadores consagrados ou mais bem integrados em grandes grupos, em detrimento dos mais jovens ou que trabalham isolados ou em pequenas equipes.

Um dos critérios que mais pode gerar distorções e desigualdades é o índice h, que avalia a produção e a importância de um cientista por meio do número de artigos publicados e citações acumuladas. A bióloga Francisca Soares de Araújo, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais da Universidade Federal do Ceará (UFC), sabe bem como isso funciona.

Ela teve uma experiência que dá vislumbre de como o uso do índice h, sem levar em conta outros indicadores e parâmetros da atuação de um cientista, pode dificultar a obtenção de financiamento. “Acabo de receber um parecer sobre uma proposta minha submetida à chamada CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] para uma bolsa no exterior”, conta. “Embora dois dos três consultores ad hoc tenham feito boas recomendações, chama a atenção avaliação de um deles, que atribuiu conceito ruim a um dos itens”.

De acordo com o parecer desse consultor, o solicitante (Francisca) é um pesquisador sênior, titulado em 1998, “com modesta contribuição internacional (h = 12, 543 citações) considerando o tempo de titulação”. Ele acrescenta que, nos últimos cinco anos, ela publicou 19 artigos, na maioria em revistas de pouca circulação internacional. “Não considero o perfil de produção científica competitivo frente à demanda qualificada”, concluiu. 

Francisca contesta o critério. “Infelizmente, muitos que se dizem pesquisadores no Brasil estão medindo a qualidade cientifica dos seus pares pelo índice h”, lamenta. “Se a pessoa estiver dentro de um grande grupo de pesquisa, terá um alto índice h”, independentemente de sua contribuição real para cada estudo.

O físico Fabio Furlan Ferreira, pró-reitor adjunto de Pesquisa da Universidade Federal do ABC (UFABC), lembra que a destinação verbas para a pesquisa científica ocorre, principalmente, por meio de editais públicos, lançados por agências de fomento, tanto no âmbito nacional quanto no estadual.

Ele explica que há vários tipos de editais, como aqueles destinados a um único pesquisador ou a grupos. “A análise de mérito das propostas leva em conta diversos critérios, como originalidade e relevância do projeto de pesquisa, fundamentação científica e os métodos empregados e o grau de inovação da proposta, dentre outros”.

Com relação ao pesquisador proponente, leva-se em conta a qualidade, regularidade e importância de sua produção científica, a experiência e competência na liderança de projetos de pesquisa, a atuação internacional e participação em redes mundiais de colaboração, e a formação de recursos humanos, principalmente em nível de pós-graduação. “De certa forma, quando ‘grandes projetos’ são lançados, certamente o ‘peso do currículo’ do pesquisador é levado em consideração”, diz Ferreira.

Nesse caso, se for levado em conta apenas o número de publicações, um cientista que conseguiu um alto índice h por ter “pego carona” em um grande grupo de pesquisa poderia ter uma avaliação melhor do que outro que publica pouco, mas é o primeiro autor, por exemplo. “Mas nem sempre a alta produtividade de traduz em ‘alta qualidade’ ou até mesmo em ‘alto impacto’”, alerta Ferreira.

Ele lembra que existe a prática de “salami science”, em que pesquisas que poderiam levar mais tempo a serem realizadas e, com isso, trazer um resultado de maior impacto, são “fatiadas” para aumentar o número de publicações do pesquisador, que nem sempre está preocupado com a qualidade do trabalho. “Com isso, pode-se notar uma certa desigualdade se o único (ou um dos únicos) critério a ser avaliado for o número de publicações”, explica.

É por isso, diz ele, que o mérito científico deve considerar outros parâmetros que não somente o índice h. “Esse é um típico exemplo de onde a taxonomia CRediT (Contributor Roles Taxonomy), que é usada para representar funções normalmente desempenhadas por contribuidores para resultados de pesquisa, pode indicar claramente a contribuição desse pesquisador no trabalho”, explica. “Se ele não tiver, por exemplo, participado da concepção, execução, análise dos dados e discussão da pesquisa, sua contribuição deveria ter um peso menor para critérios de avaliação de seu mérito científico”.

Para a geóloga Ariadne Marra de Souza, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), os critérios usados hoje pelas agências de fomento federais e estaduais para a distribuição de recursos para pesquisa não são ruins, mas estão longe do ideal. “Já existe uma tendência consolidada de que os recursos sejam direcionados para pesquisadores de renome e, agora, com o estrangulamento, isso ficou ainda mais marcante, com inexistência de verba para maior parte dos projetos”, explica.

 

Bola de neve

Ela acrescenta que o apelo a índices bibliométricos está aprofundando e intensificando desigualdades e injustiças na distribuição de recursos. “Na verdade é um efeito ‘bola de neve’”, diz. “Sem financiamento é difícil fazer pesquisa, sem pesquisa não é possível publicar e, sem publicação, não há financiamento”.

O médico e doutor em Ciências Biológicas (Fisiologia) Egberto Gaspar de Moura, assessor da presidência da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), diz que nenhum critério é 100% eficiente. “Há sempre um viés, quer baseado na história pregressa do proponente, que pode não se manter no futuro, quer no produtivismo, que é sempre enviesado e que está atrelado ao mercado editorial, sem uma relação nítida com a relevância da pesquisa”, explica. “Apesar dos problemas, mesmo os piores critérios são imensamente melhores do que não ter nenhum critério”.

Ele concorda, no entanto, com a visão de outros colegas que o apelo a índices bibliométricos está gerando desigualdades e injustiças na distribuição de recursos. “Eles servem perfeitamente à política de lucro do mercado editorial”, critica. “Mas, por si sós, já deixaram há muito tempo de ser o critério ideal para a contratação de novos pesquisadores e para o financiamento da pesquisa. No Brasil, algumas agências ainda o usam quase que exclusivamente, no entanto, pela sua simplicidade para avaliação de grandes números, como é o caso da Capes”.

Por essas razões, muitos cientistas têm sugestões para mudar e aperfeiçoar a forma como é feita hoje avaliação dos pesquisadores que buscam financiamento. “O peso maior deveria estar no mérito dos projetos apresentados, sem desconsiderar o currículo, inclusive com maior rotatividade entre os cientistas, a fim de que mais trabalhos fossem contemplados”, defende Ariadne. “E diversas atividades apresentadas nos currículos, que são negligenciadas, também deveriam ser consideradas”.

“Ter muitos papers – principalmente no intenso comércio de publicações que existe hoje – não pode ser parâmetro para balizar qual o melhor projeto a ser financiado”, acrescenta ela. “Como exemplo podemos citar Darwin, que revolucionou a ciência com uma única publicação”.

Moura, por sua vez, defende o uso de critérios que sejam os mais objetivos possíveis, mas que permitam a avaliação dos saltos qualitativos, que podem ser conseguidos com inovações, que nem sempre são óbvias para a maioria dos cientistas e acadêmicos. “Isso se consegue, em parte, selecionando uma boa equipe de avaliadores experientes, que não se deixem levar pelo ‘mesmismo’ ou por critérios meramente quantitativos”, acrescenta.

 

Problema menor

Há ainda quem considere o debate de critérios de financiamento uma discussão secundária frente à destruição da pesquisa promovida pelo atual governo. “Em breve, as igrejas e a Idade Média estarão de volta se houver reeleição do presidente atual”, diz, por exemplo, o biólogo e doutor em Oceanologia Roberto Campos Villaça, da Universidade Federal Fluminense (UFF). “No governo atual, a pesquisa, como sabemos, é ignorada. Então, do nosso ponto de vista como cientistas, estamos vivendo um colapso de grande parte dos centros de pesquisa e a destruição da formação de novos pesquisadores, o que vai jogando o país para um atraso inacreditável”.

Ele não vê os critérios de produtividade como o maior problema atual da ciência no Brasil. “Estamos lutando contra o negacionismo, o desmonte de órgãos ligados à pesquisa, como o Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade], por exemplo”, “Sem falar, no avanço de setores das igrejas querendo influenciar políticas públicas de saúde, o que repercute em diversas pesquisas. Enfim, a meu ver não é possível analisar bem critérios no momento, já que mesmo laboratórios importantes do país estão à míngua”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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