Ozônio e alvejante não curam COVID-19

Questão de Fato
29 abr 2020
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nuvem ozônio

 

Uma clínica anos Estados Unidos foi proibida, na última quinta-feira, 23 de abril, de oferecer ozonioterapia para combater a COVID-19, em meio a uma ampla ofensiva lançada pelo governo norte-americano para coibir a expansão do charlatanismo médico em meio à pandemia. Segundo o jornal USA Today, “o procurador-geral William Barr ordenou que todos os 94 procuradores federais dos Estados Unidos reprimam duramente as atividades criminosas voltadas a explorar a pandemia para ganho financeiro”.

Mais um menos uma semana antes da ação americana, um projeto de lei começava a tramitar na Câmara Federal brasileira autorizando o uso do ozônio contra o coronavírus.

Ozonionterapia, isto é, o uso do gás ozônio para fins terapêuticos — seja por inalação, infusão no sangue (num procedimento chamado auto-hometerapia, condenado pela Anvisa) ou injeção anal — é uma modalidade de medicina “alternativa” inútil e perigosa. De acordo com uma norma publicada pela FDA, órgão do governo dos Estados Unidos que regulamenta o mercado de medicamentos e tratamentos de saúde, “o ozônio é um gás tóxico sem nenhuma aplicação médica conhecida”.

No Brasil, até mesmo o Conselho Federal de Medicina, notório por sua permissividade (ele não apenas acolhe a homeopatia de braços abertos, como até libera o uso de cloroquina contra coronavírus), vê a prática com sérias ressalvas, autorizando-a apenas em contexto experimental.

No entanto, segundo seus entusiastas (em geral, gente que tem máquina de ozônio no consultório e contas a pagar), a ozonioterapia poderia ser usada tratar problemas ósseos, câncer e até mais de 250 outras doenças. Com tamanha “eficácia”, o que é um virusinho extra?

O problema, como já deve estar claro, é que a eficácia não existe, é apenas ilusória. Além do parecer da FDA, existem diversas outras análises (por exemplo, aqui) que mostram que o ozônio — gás corrosivo, formado por três átomos do elemento químico oxigênio (em vez dos dois que compõem o oxigênio normal que respiramos) — não é útil para qualquer coisa além de desinfetar ambientes, purificar água e, talvez como antisséptico, na pele: por ser corrosivo, o ozônio realmente mata microrganismos mas, assim como cloro, sabão, álcool gel ou detergente, seu uso deve ser externo. Inserir ozônio no corpo humano para matar vírus faz tanto sentido quanto o “conselho”desastrado do presidente Donald Trump, de beber ou injetar detergente.

No compêndio “Alternative Medicine”, o médico alemão especializado em terapias alternativas Edzard Ernst conclui que, em todas as dimensões analisadas — plausibilidade, segurança, eficácia, custo, equilíbrio risco/benefício — o perfil da ozonioterapia, para qualquer condição de saúde, é negativo: ela não deve ser usada. Ponto.

 

Solução Mineral

A avaliação de Ernst antecede a sugestão de uso da ozonioterapia contra COVID-19, mas como a lógica dos proponentes, neste caso, segue a invocada nas instâncias anteriores (a do potencial oxidante/germicida do gás), não há motivo para esperar uma conclusão diferente. Voltando à normativa da FDA, “para ser eficaz como germicida, o ozônio deve estar presente numa concentração muito maior do que a tolerada, com segurança, por seres humanos ou animais”.

Falando na FDA: a pedido da agência, a Justiça dos Estados Unidos proibiu uma igreja de vender a chamada “solução mineral milagrosa” (MMS), na verdade um alvejante industrial, como “cura” para a COVID-19. Assim como a ozonioterapia, a MMS é promovida por entusiastas como uma panaceia — um remédio aplicável a toda e qualquer condição de saúde.

Só esse tipo de alegação exagerada já deveria acender sinais de alerta: a intuição de que doenças em geral fluem de uma causa única e, portanto, são tratáveis por estratégia única, é uma das formas mais antigas de superstição.

O que muda, nas diferentes épocas e culturas, é só a roupagem que a combinação supersticiosa de causa universal/remédio geral veste: pode ser espíritos e exorcismos, pecados e penitências, humores e purgantes, energias negativas e positivas, oxidantes e suplementos de vitamina, transgênicos e orgânicos, etc. 

Uma das descobertas mais importantes da história da ciência é a de que essa intuição universalizante é falsa. Diferentes doenças têm diferentes causas, e requerem tratamentos diversos.

 

Ônus da prova

No momento, uma busca na plataforma de artigos médicos PubMed pelas palavras-chave “ozone”e “COVID-19” traz apenas quatro artigos. Dois deles tratam do impacto das medidas de isolamento social na poluição atmosférica (o ozônio, quando presente na baixa atmosfera, é um importante poluente, produzido pela interação da fumaça dos automóveis com a radiação solar). Um menciona o gás no contexto da desinfecção dos quartos de hospital e da purificação do ar. Resta somente um que trata do uso terapêutico do ozônio no contexto da pandemia.

Esse artigo, publicado num periódico espanhol, apenas especula que a ozonioterapia pode, talvez, ser útil como “adjuvante” no tratamento da doença causada pelo novo coronavírus. “Adjuvante” é outra daquelas palavras que acendem sinais de alerta em quem tem alguma experiência com o mundo das terapias alternativas. Basicamente, qualquer coisa pode ser um “adjuvante” no tratamento de qualquer outra coisa: canja de galinha é um ótimo “adjuvante” para gripe, por exemplo.

Questões semânticas à parte, o artigo é especulativo e não traz evidência experimental.

Nestes tempos pandêmicos, tem-se tornado comum ouvir, até mesmo da boca de profissionais de saúde, o argumento de que, na ausência de prova cabal de insegurança ou ineficácia, qualquer proposta terapêutica merece consideração.

Trata-se de uma perigosa inversão do ônus da prova: quem propõe o tratamento é que deve comprovar segurança e eficácia, não o contrário. Como bem aponta artigo recente publicado na revista Science, os problemas e perigos que o processo científico normal foi criado para combater e evitar — incluindo o risco de curas que são muito piores do que a doença — não deixam de existir só porque a Humanidade está com pressa.

 

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência, e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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