Meditação é um bom negócio, mas será boa ciência?

Dossiê Questão
20 nov 2023
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Em 2019, Debra Halsch recebeu diagnóstico de mieloma múltiplo latente, um distúrbio raro do sangue e da medula óssea que pode se transformar em um tipo de câncer de sangue. Seus médicos recomendaram quimioterapia, disse, mas ela temia os efeitos colaterais desgastantes que as drogas poderiam causar em seu corpo. Em vez disso, a “life coach” de Piermont, Nova York, tentou meditação. Um amigo contou a Halsch, agora com 57 anos, sobre Joe Dispenza, que realiza retiros de meditação de uma semana que atraem regularmente milhares de pessoas e têm um preço de US$ 2.299. Halsch se inscreveu para um em Cancún, México, e logo se tornou uma devota. 

Ela agora medita por pelo menos duas horas por dia, e diz que sua saúde melhorou como resultado. Dispenza, um quiroprático que escreveu vários livros de autoajuda, disse que acredita que a mente pode curar o corpo. Afinal, ele diz que se curou em 1986, quando um caminhão o atingiu enquanto andava de bicicleta, quebrando seis vértebras. Em vez de cirurgia, Dispenza diz que passava horas, todos os dias, recriando a coluna em sua mente, visualizando-a saudável e curada.

Depois de 11 semanas, a história continua, ele estava novamente em pé. Halsch disse que acredita que pode fazer o mesmo com sua doença. “Se nossos pensamentos e emoções podem deixar nossos corpos doentes, eles também podem nos deixar saudáveis”, disse ela.

Em um e-mail para Undark, Rhadell Hovda, diretora de operações da holding de Dispenza, Encephalon, Inc., enfatizou que Dispenza não afirma que a meditação pode tratar ou curar o câncer. No entanto, ele “segue as evidências quando elas são apresentadas” e encontrou pessoas em oficinas e retiros “que alegaram ter se curado de muitas condições”.

Há mais de duas décadas, vários estudos vêm sugerindo que a meditação e a atenção plena — ou seja, estar conectado ao momento presente — podem ajudar a reduzir e melhorar o controle da dor, dando alguma credibilidade à noção de que o cérebro pode afetar o corpo. Tais resultados ajudaram o campo a se tornar uma indústria multibilionária, repleta de aplicativos de meditação, oficinas guiadas e retiros de luxo.

No entanto, o campo também enfrenta fortes críticas de psicólogos e pesquisadores que dizem que os benefícios para a saúde são exagerados e algumas das pesquisas são metodologicamente falhas. Enquanto isso, alegações de que abordagens alternativas, incluindo a meditação, podem, por si só, curar doenças graves, foram chamadas de perigosas por especialistas, que temem que uma pessoa que realmente acredite nessas abordagens abra mão de um tratamento que salva vidas.

 

Popularidade

À medida que os pesquisadores investigam o efeito da meditação em quase tudo, desde dor crônica até TDAH, função cerebral pós-AVC e regulação emocional, a prática segue popular entre convertidos e curiosos. E embora nenhuma descoberta científica sugira que a meditação possa ir tão longe a ponto de curar o câncer, alguns pesquisadores estão interessados em como o cérebro afeta o sistema imune. Na verdade, a coleta de dados para um dos maiores projetos de pesquisa sobre o assunto está sendo financiada por ninguém menos que Dispenza, que vem colaborando com cientistas da Universidade da Califórnia em San Diego, fornecendo aos cientistas acesso aos participantes de seus retiros. Estudo publicado recentemente pelo grupo descreve uma associação entre meditação e maior resiliência contra a COVID-19.

No geral, ainda há muitas incógnitas sobre como a meditação pode afetar doenças, escreveu Emily Lindsay, pesquisadora especializada nos efeitos biológicos da meditação de atenção plena na Universidade de Pittsburgh, em um e-mail para Undark. “Sabemos que afeta o estresse e, às vezes, a biologia do estresse, e sabemos que pode afetar certos processos de doenças, mas ainda há uma caixa preta no meio”. Se a colaboração de Dispenza com cientistas tradicionais lançará luz sobre essa caixa preta é uma questão em aberto, e muitos cientistas são céticos.

Nos últimos 20 anos, a meditação, nos EUA, passou do hobby marginal ao mainstream. Entre 2012 e 2017, de acordo com os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), a porcentagem de adultos no país que tentou alguma modalidade triplicou, de modo que pouco mais de 14% de todos os americanos meditaram pelo menos uma vez no ano passado. A Associação Americana de Cardiologia afirma que a prática pode ajudar a reduzir o risco cardiovascular — embora observe que mais estudos são necessários — e um artigo escrito pela equipe da Mayo Clinic a endossa como uma “maneira simples e rápida de reduzir o estresse”.

Com mais usuários, vieram mais estudos. Nas últimas três décadas, os NIH financiaram mais de 1.700 pesquisas sobre meditação, a um custo de US$ 570 milhões. E esse número aumenta com o passar do tempo: em 2002, a agência dedicou US$ 5 milhões para estudar a prática. No ano passado, US$ 45 milhões.

Embora existam muitas formas diferentes de meditação, a maioria dos estudos analisou um tipo chamado meditação de atenção plena, ou “mindfulness”, que tem suas raízes na prática budista, e visa alcançar um estado de calma concentrando-se no momento presente, aceitando quaisquer pensamentos e sentimentos que surjam sem julgamento – embora as definições e abordagens variem entre os estudos.

“Os cientistas continuam a fazer descobertas significativas sobre como a meditação funciona e quem ela pode beneficiar”, escreveu J. David Creswell, professor de psicologia da Carnegie Mellon University, em um e-mail para Undark. “Nossa pesquisa mostra que muitos dos benefícios para a saúde podem ser atribuídos à meditação melhorar a forma como administramos o estresse”.

 

Bem-estar

Grande parte da pesquisa de atenção plena nas últimas duas décadas se concentrou na saúde mental e no bem-estar, e estudos sugerem que a prática pode ajudar com ambos. Uma revisão seminal avaliando o impacto da meditação “mindfulness” foi publicada em 2014. Pesquisadores da Universidade Johns Hopkins analisaram 47 ensaios clínicos randomizados envolvendo mais de 3.500 participantes e descobriram que havia evidências moderadas de que a meditação melhorou os sintomas de ansiedade, depressão e dor. Outra meta-análise, também de 2014, descobriu que intervenções baseadas em atenção plena podem reduzir a gravidade dos sintomas em pacientes que experimentam um episódio depressivo, enquanto uma revisão de 2015 descobriu que uma prática meditativa pode ajudar indivíduos saudáveis a se sentirem menos estressados em suas vidas diárias.

Os pesquisadores postularam que a meditação pode ajudar com o estresse e a ansiedade, aumentando a resiliência emocional através da prática de consciência, aceitação e não julgamento. “Quando você, de certa forma, abre e amplia sua consciência para tudo o que está ocorrendo, tudo o que você está percebendo, isso meio que nivela um pouco a experiência e permite que você fique menos apegado a esse estresse”, disse Lindsay.

Mas nem todo estudo sobre meditação encontra resultados significativos. Lydia Brown é psicóloga clínica e pesquisadora da Universidade de Melbourne, e é meditadora. Ela disse que achou a prática pessoalmente transformadora, mas quando analisou os resultados de 19 ensaios clínicos randomizados sobre como a atenção plena afeta a variabilidade da frequência cardíaca — uma variável fisiológica que é indicativa de como o corpo se recupera do estresse — descobriu que as evidências eram fracas.

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Mesmo assim, se alguém fizesse uma busca por meditação e variabilidade da frequência cardíaca, disse ela, poderia encontrar artigos declarando que a meditação pode melhorá-la. Isso pode ser problemático, acrescentou Brown, “porque você pode não estar seguindo as melhores evidências para melhorar sua saúde física ou mental”. "Eu adoraria que essa pesquisa chegasse a um resultado positivo", disse ela, mas como pesquisadora, teve que seguir os dados.

 

Decepção

Resultados conflitantes não são um problema novo na pesquisa de meditação. A meta-análise de 2014, por exemplo, na verdade teve resultados um pouco decepcionantes para quem esperava efeitos significativos, disse Elena Salmoirago-Blotcher, professora associada de medicina, psiquiatria e epidemiologia da Brown University School of Medicine. Embora a revisão, que foi notável por ser publicada em uma revista médica altamente conceituada, tenha encontrado melhorias moderadas na ansiedade, depressão e dor, houve poucas evidências de efeitos sobre o estresse e sobre a qualidade de vida relacionada à saúde mental.

Outros pesquisadores chamam a atenção para a baixa qualidade dos métodos de pesquisa no campo. Em um artigo de 2017, quinze psicólogos e cientistas cognitivos pediram aos leitores que "prestassem atenção no hype" em torno da pesquisa de meditação, observando que muitos estudos não tinham um grupo de controle ativo para fazer uma comparação válida, e eram inconsistentes em como definiam "mindfulness".

Outra questão no campo, disse Salmoirago-Blotcher, é algo chamado viés de fidelidade do pesquisador: quando os autores do estudo são também os próprios criadores ou promotores da intervenção, seu investimento pessoal pode distorcer os resultados do estudo. E estudos que recrutam pessoas que já são meditadores veteranos — como os que participam das oficinas de Dispenza — podem chegar a resultados distorcidos. “As pessoas que meditam tendem a ter comportamentos mais saudáveis, tendem a fumar menos, tendem a se exercitar mais, geralmente têm mais estudo e também têm um status socioeconômico mais alto”, disse Salmoirago-Blotcher. “Então, há muito do que chamamos de fatores de confusão lá”.

A autorregulação adquirida com a atenção plena pode levar a melhores escolhas de vida, como comer melhor ou escolher exercitar-se, mas as pessoas que meditam têm menos ataques cardíacos? Ninguém estudou isso ainda, disse Salmoirago-Blotcher, acrescentando que até mesmo a Associação Americana de Cardiologia tem sido cautelosa em como descreve os benefícios da meditação, escrevendo o seguinte em uma declaração de 2017: “No geral, os estudos de meditação sugerem um possível benefício no risco cardiovascular, embora a qualidade geral e, em alguns casos, a quantidade de dados dos estudos sejam modestas”.

 

Ansiedade

O que parece claro, disse Salmoirago-Blotcher, é que a meditação parece ter alguns efeitos positivos na depressão e na ansiedade. Se e como tais benefícios podem se manifestar fisiologicamente, no entanto, permanece mais obscuro. Em pacientes com câncer, por exemplo, a meditação pode ajudar com angústia, qualidade de vida e sono. Mas Salmoirago-Blotcher diz que não viu nada que sugira que isso afeta células cancerosas. "Acho que ainda não há nada absolutamente comprovado", disse ela.

Não existe estudo mostrando que a meditação pode curar uma doença como o câncer, e alguns pesquisadores, incluindo Salmoirago-Blotcher, destacam enfaticamente essa falta de evidências. Atualmente, cada vez mais pesquisas concentram-se no efeito da atenção plena nos sistemas nervoso central e imune.

Um trabalho de 2016, por exemplo, descobriu que as práticas de atenção plena podem estar associadas a mudanças na atividade do sistema imune, já que os meditadores mostraram melhorias nos marcadores relacionados ao estresse, como inflamação e envelhecimento das células imunes. E um estudo de 2019 descobriu que a atenção plena pode ter levado a uma redução na produção de moléculas pró-inflamatórias e ser associada a uma restauração mais rápida da função imune em mulheres submetidas a tratamentos de câncer de mama.

Há alguma lógica, sugerem os pesquisadores, por trás da ideia de que uma prática regular de meditação pode ajudar a impulsionar o sistema imune. Como a atenção plena parece ajudar na forma como o corpo gerencia o estresse, e porque o estresse pode afetar a imunidade, a teoria diz que a meditação pode ajudar a aumentar as defesas do corpo.

 

Imunidade

“Se você olhar através dos grandes estudos da função do sistema imune em geral, as meta-análises sugerem que a meditação é benéfica para a função do sistema imune”, disse Melissa Rosenkranz, professora de psiquiatria da Faculdade de Medicina e Saúde Pública da Universidade de Wisconsin. “E isso quase certamente tem algo a ver com seus efeitos na angústia”.

Se as respostas de estresse do corpo forem ativadas de vez em quando, tudo bem, disse Liudmila Gamaiunova, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Ciências Sociais das Religiões da Universidade de Lausanne, na Suíça. “Mas se isso acontecer com frequência, ou se chegarmos a esse estado crônico, é claro que isso tem um efeito no sistema imune”.

O estresse crônico tem sido ligado a condições como doenças cardíacas e diabetes (a ciência sobre qualquer conexão com o câncer é muito menos clara), mas a questão de como exatamente essas doenças se manifestam através do estresse está longe de ser resolvida. Uma teoria é que, quando o corpo tem uma resposta aguda ao estresse, os hormônios norepinefrina, epinefrina e corticosterona garantem que as células imunes estejam adequadamente distribuídas por todo o corpo.

Eles também regulam a inflamação e, embora isso possa ser útil às vezes, a inflamação crônica tem sido associada a algumas doenças, incluindo artrite reumatoide e Alzheimer. Esse estado de inflamação crônica pode impedir que o sistema imune funcione de forma eficiente, disse David Victorson, professor de Ciências Sociais Médicas da Faculdade de Medicina Feinberg da Universidade Northwestern. Ele comparou o sistema imune a um disco rígido em um computador, e a inflamação a ter muitas abas abertas na área de trabalho de uma só vez.

Com todos esses programas em execução em segundo plano, o disco rígido não pode funcionar de forma eficiente, disse ele. “Quando o volume é reduzido nessas outras áreas, libera-se mais espaço para o sistema imune funcionar corretamente, como precisa”.

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Alguns estudos da última década sugeriram que a meditação pode ajudar a regular certos mecanismos corporais que influenciam a inflamação. E a meditação parece fazer isso, disse Rosenkranz, mudando a lente através da qual você experimenta o mundo e sua reação aos eventos nele.

“Um estado de sofrimento psicológico comunica algo a que seu sistema imune responde”, disse ela. “Quando você muda a maneira como está filtrando o ambiente e o que isso significa para você, como entidade, isso realmente tem um efeito profundo no seu corpo”.

Reduzir o estresse também pode reduzir a secreção de cortisol, um hormônio que suprime a inflamação, regula a pressão arterial e regula o sistema imune. Mas elevações crônicas podem levar o sistema imune a se tornar resistente a ele, comprometendo a resposta imune, mostram pesquisas.

 

Inflamação

“Esses sistemas fisiológicos de estresse não evoluíram para serem ativados cronicamente. Eles evoluíram para responder a estressores pontuais e depois desligar”, disse Robin Nusslock, professor de psicologia e diretor do Laboratório de Neurociência Afetiva e Clínica da Northwestern University. Mas, agora, “temos a capacidade de ativar a mesma fisiologia do estresse de uma zebra fugindo de um tigre pensando no imposto de renda”.

“O melhor alvo para o efeito da meditação no sistema imune envolveria atenuar a inflamação”, disse Nusslock. “E a inflamação é o solo comum que fertiliza muitos problemas de saúde mental e física”.

O que quer que se pense sobre Dispenza — e as opiniões entre os especialistas são mistas — alguns pesquisadores veem seus retiros de meditação como uma oportunidade de estudo.

Afinal, eles podem atrair até 2.500 pessoas cada — um terreno fértil para encontrar voluntários que possam participar de estudos intensivos. Cientistas da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) estão atualmente conduzindo cerca de uma dúzia de estudos investigando como a meditação afeta o corpo, tanto fisiológica quanto mentalmente.

Na pesquisa acadêmica, às vezes pode levar cinco anos para recrutar 150 pessoas para um estudo, disse Hemal Patel, professor de anestesiologia da UCSD e um dos dois principais colaboradores dos estudos com voluntários fornecidos por Dispenza. Esses desafios não são um problema quando Dispenza tem um retiro, disse ele. “Nós escreveríamos um estudo, solicitaríamos participantes, conseguiríamos 800, 900 pessoas se voluntariando”, disse Patel.

Os voluntários usaram coberturas na cabeça para rastrear a atividade elétrica do cérebro, usaram dispositivos para coletar dados de sono e frequência cardíaca, doaram células do interior da boca para verificar o DNA e enviaram amostras de fezes para medir mudanças no microbioma. A ideia é ver o que acontece com seus corpos após sete dias de prática meditativa, se é que alguma coisa de fato ocorre.

 

Retiro

Em um e-mail para Undark, Patel observou que a meditação realizada nos retiros de Dispenza não é considerada atenção plena, e incorpora elementos de diferentes tipos de práticas. “O objetivo de nossa pesquisa é definir exatamente o que é esse novo tipo de retiro [meditação].”

Os conjuntos amostrais de Dispenza são únicos, pois os recrutas permanecem no mesmo ambiente, controlando algumas das variáveis que podem confundir os resultados. No entanto, ainda há limitações para esse tipo de trabalho, incluindo o viés de auto-seleção.

A população de discípulos de Dispenza pode muito bem estar preparada para acreditar que a meditação funciona, então um efeito placebo pode entrar em jogo, disse David Vago, pesquisador de meditação e professor da Universidade da Virgínia que não está envolvido na pesquisa da UCSD. “O viés de auto-seleção é certamente um problema”, escreveu Vago em um e-mail. “Uma vantagem do estudo são os controles internos que eles tinham com os participantes que estavam no mesmo ambiente, mas não receberam treinamento de meditação”.

Um dos estudos da UCSD, por exemplo, espera examinar os estados emocionais de gêmeos quando um está meditando e o outro, não. A primeira pesquisa publicada investigou se o tipo de meditação praticada nos retiros de Dispenza poderia ser usado para melhorar a resiliência ao vírus da COVID-19. Nesse artigo, que foi publicado na revista Brain, Behavior, & Immunity – Health, os pesquisadores avaliaram quase 3.000 pessoas que participaram de um retiro. Eles perguntaram quantos receberam um diagnóstico de COVID-19 e com que rapidez seus sintomas se resolveram.

 

 

Vírus

Os pesquisadores da UCSD descobriram que quanto mais tempo de prática regular de meditação as pessoas tinham, menor a probabilidade de relatarem testes positivos para o vírus. E entre os infectados, meditadores relataram menos sintomas e recuperação muito mais rápida do que aqueles que tinham menos ou nenhuma prática meditativa.

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Estudos que dependem do autorrelato são vistos como menos confiáveis, mas o trabalho dos pesquisadores da UCSD também utilizou outras medidas mais objetivas para testar se a meditação pode melhorar os resultados de saúde.

A hipótese original do grupo era de que a meditação poderia aumentar a resiliência da saúde por causa da liberação de fatores biológicos, como proteínas ou metabólitos, na corrente sanguínea. Coletaram amostras de sangue dos participantes do retiro antes do início da pandemia e, em seguida, decidiram mudar seu foco especificamente para o SARS-CoV-2. Para identificar quais podem ser esses fatores, os cientistas da UCSD criaram um pseudovírus para representar o SARS-CoV-2, carregando a proteína spike característica para que pudesse entrar em uma célula usando o mesmo mecanismo que o vírus real.

Embora o pseudovírus não contenha nenhum material genético do SARS-CoV-2, ele incluiu o que é chamado de gene de “proteína repórter”, que expressa uma cor vermelha fluorescente. Dessa forma, os pesquisadores poderiam ver se e quando o vírus entrou em uma célula. Os cientistas então tiraram sangue de cerca de 100 pessoas em um retiro de meditação de Joe Dispenza — algumas que eram meditadores experientes, alguns que eram novatos e alguns que não meditavam nada — e depois adicionaram plasma destilado dessas amostras de sangue em culturas de células pulmonares humanas. Quando expuseram essas células ao pseudovírus, descobriram que quase não havia partículas virais dentro das células pulmonares inoculadas com o plasma de meditadores experientes.

Houve alguma evidência de infecção nas células pulmonares tratadas com plasma nos meditadores novatos, e nas células pulmonares tratadas com plasma de não meditadores, o vírus parecia ter infectado as células sem restrições. “Mostramos que o sangue de um meditador, após o evento de uma semana, foi capaz de impedir que o vírus falso entrasse nas células pulmonares”, disse Patel. A pergunta, então, era "como?".

Depois de testar mais o plasma dos participantes, a equipe da UCSD descobriu que o sangue dos meditadores tinha níveis elevados de uma proteína específica chamada SERPINA5, que inibe um tipo de enzima que o vírus utiliza para infectar uma célula. Em outras palavras, essa proteína — que parecia estar aumentada na corrente sanguínea de meditadores experientes durante esse tipo de prática meditativa — parecia dar às pessoas uma dose extra de proteção contra infecção.

“O que eu acho que está acontecendo é que quando você entra nesse estado mental elevado e emocional durante a meditação, você está liberando coisas de seus neurônios em seu cérebro. E então, em última análise, esses neurônios, o que quer que esteja sendo liberado, têm que filtrar e, eventualmente, acabam no sangue”, disse Patel.

 

Crítica

Amesh Adalja, médico de doenças infecciosas e estudioso sênior do Johns Hopkins Center for Health Security, disse que não acredita que o estudo tenha respondido a essa pergunta. “Este estudo não lhe dá informações suficientes para dizer que é algo mais do que uma hipótese que precisa ser testada de uma maneira mais rigorosa”, disse Adalja. Embora observando as limitações do estudo, ele acrescentou: “há plausibilidade biológica no sentido de que a meditação diminui o estresse, e sabemos que as respostas ao estresse influenciam a suscetibilidade a doenças infecciosas”.

Entre outras coisas, acrescentou Adalja, a equipe da UCSD não controlou variáveis de confusão que poderiam ter afetado seus resultados no estudo do plasma sanguíneo, como hábitos pessoais, idade ou estilo de vida, ou se um participante do estudo tinha uma condição de saúde imunocomprometida. Ao não levar em conta o estado de saúde individual de cada participante, disse Adalja, os pesquisadores da UCSD não podem afirmar que o resultado que obtiveram foi causado pela meditação, porque pode ter sido influenciado por alguma outra variável.

Em teoria, Adalja apontou, pode ser que as pessoas que meditam também possam dormir oito horas por noite, por exemplo, e então talvez estejam se beneficiando do sono e não da meditação. “A meditação pode ser apenas um marcador para algum outro comportamento saudável, ou algum outro fenômeno biológico que a acompanha”.

Patel rejeita as críticas de Adalja, dizendo que seu estudo testou apenas sangue de indivíduos sem doença crônica ou terminal autorreferida, para que não houvesse condições de confusão influenciando os resultados. Ele também observou que a parte de questionário do estudo controlou variáveis de confusão, e que uma análise multivariada foi realizada para abordar fatores de confusão específicos. “Nossos ensaios biológicos controlaram todas as questões que Amesh diz que não controlamos”, disse ele. “Fomos muito cuidadosos ao fazer isso”.

Patel também argumentou que os resultados de sua equipe identificaram algo específico sobre meditação. O grupo que não meditou, disse ele, passou seus dias no mesmo resort que os meditadores, durante os mesmos eventos, mas em vez de meditar, desfrutou de um tempo relaxante longe do trabalho no resort, em um ambiente que também se esperaria redução do estresse. Mas o efeito protetor só foi observado nos indivíduos que meditavam, sugerindo a Patel que era a meditação — e não a mera redução do estresse — que importava.

 

Pseudociência

Discordâncias sobre metodologias e resultados à parte, o envolvimento de Dispenza, que foi incluído como coautor do estudo recentemente publicado — e pode voltar a ser listado em futuras publicações — também causou desconforto. “Sempre me preocupei com a pseudociência em torno da meditação, e Joe Dispenza certamente levantou algumas bandeiras vermelhas para mim, pessoalmente”, disse Vago, que é um dos coautores do artigo “Mind the Hype”, de 2018.

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Vago cita a linguagem de Dispenza em suas oficinas e vídeos, que ele diz que pode ser exagerada, com pouca ou nenhuma ciência por trás de certas afirmações. O podcast Conspirituality relata um caso em que, em um retiro, Dispenza fez uma mulher subir ao palco dizer que estava tendo problemas para engravidar porque temia ter esperado muito tempo e agora se sentia culpada. Dispenza disse a ela que a culpa está armazenada no mesmo centro de seu útero, e que ela poderia curar a infertilidade com pensamentos. “Ele é carismático e fala sobre curar pessoas de condições crônicas de saúde e de distúrbios genéticos raros com uma sessão de meditação”, disse Vago. “Essas palavras são suficientes para eu ser cético em relação a qualquer outra coisa que ele alegue”.

Dispenza tem sido uma figura popular na comunidade de ioga, meditação e autotransformação desde que apareceu no documentário de 2004 “What the Bleep Do We Know” [“Quem Somos Nós?”, no Brasil], que se concentra na conexão entre física quântica e consciência. Hoje, tem 2,8 milhões de seguidores no Instagram, onde publica citações inspiradoras e promove seus ensinamentos. Mas os críticos discordam da maneira como Dispenza infunde conceitos científicos em suas palestras e livros, para fazer parecer que há evidências científicas por trás de suas teorias.

“Acho que é a ciência que desmistifica o místico”, disse Dispenza ao podcaster Aubrey Marcus em dezembro de 2020. “E se você puder combinar um pouco de física quântica com um pouco de neurociência com neuroendocrinologia com psiconeuroimunologia, a conexão mente-corpo, epigenética, todas essas ciências apontam o dedo para a possibilidade”.

Julian Walker, autor e coapresentador de Conspirituality, não compra essa história. “Esse é o lance com a pseudociência da Nova Era”, disse. “As alegações são tão exageradas e ousadas que, se qualquer uma delas fosse verdadeira, mesmo da menor maneira, seria uma mudança gigantesca em termos de como entendemos o próprio fenômeno da vida”.

Por sua vez, Patel diz que ele e seu coautor principal projetaram todos os estudos da UCSD, e que têm total autonomia sobre como são feitos e implementados. “Isso é algo em que estava muito inflexível, para ter certeza de que estamos fazendo ciência crítica e imparcial”, disse Patel.

Nas contribuições do autor do artigo sobre COVID-19, no entanto, Dispenza é creditado por ajudar a conceber e projetar o estudo. Dispenza esteve envolvido em reuniões mensais com os cientistas, onde ele, de acordo com Hovda, “faz sugestões para aprimorar a pesquisa”. Em seu e-mail para Undark, Hovda também disse que Dispenza não fez contribuições monetárias diretas para os estudos, mas apoiou a pesquisa por meio de doações indiretas. Isso incluiu pagar free-lancers para coletar os dados, um processo que envolveu o uso de 18 máquinas de EEG compradas a um custo de US$ 20.000 cada.

Apesar da relutância que alguns pesquisadores de meditação podem sentir ao ouvir que Dispenza está envolvido, Vago disse que respeita o trabalho anterior de Patel e achou seus últimos resultados fascinantes. “Eu nem estava familiarizado com esses dados específicos, que o vírus falso que eles criaram e como descobriram que o sangue dos meditadores, após um evento de uma semana, foi capaz de impedir que o vírus que eles criaram entrasse nas células pulmonares. Isso é muito impressionante”, disse.

Ele observou que é convincente ver que a experiência de meditação dos sujeitos da pesquisa se correlacionou com as descobertas, em vez de algo mais objetivo.

 “Acho que meu maior problema é realmente como Joe se vende na internet, porque isso se apresenta como pseudociência, e algumas das alegações que ele faz são pseudocientíficas”. Mas na pesquisa que Patel está fazendo “tudo parece bastante legítimo”, disse Vago.

 

Lucros

E isso se soma a um corpo crescente de pesquisas mostrando o impacto da meditação na imunidade, desde seu efeito em marcadores inflamatórios como citocinas até seu efeito em partes do DNA, como telômeros em cromossomos. Vago está atualmente envolvido em um estudo na Universidade Vanderbilt, onde foi o ex-diretor de pesquisa do Centro Osher de Medicina Integrativa, em que analisam os efeitos da meditação e do trabalho respiratório no sistema glinfático, que elimina os dejetos do sistema nervoso central.

À medida que prosseguem os estudos sobre o impacto da mente no corpo através da meditação, os negócios não mostram sinais de desaceleração. Um relatório de análise de mercado de 2022 da Data Bridge Market Research prevê que o mercado global de meditação crescerá de US$ 5,3 bilhões, em 2022, para uma estimativa de US$ 20,5 bilhões até 2029.

Embora Salmoirago-Blotcher tenha encontrado valor pessoal na meditação, ela adverte contra retiros caros que visam pessoas que enfrentam crises pessoais. “Essas pessoas criam esses programas maravilhosos para onde as pessoas desesperadas vão — porque não têm para onde ir, certo?”, disse. Retiros que podem custar milhares de dólares, diz Salmoirago-Blotcher, são “muito contrários ao espírito de como essas práticas foram geradas, que é a prática da generosidade”.

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Walker, do podcast Conspirituality, é ainda mais contundente, chamando aqueles que vendem a atenção plena como uma panaceia de nada menos do que modernos curandeiros da fé. “Para mim, não é diferente do curandeiro da fé que vem pela cidade, monta a grande tenda, diz às pessoas para trazerem seus familiares doentes e deficientes e que, através do Espírito Santo, elas serão curadas”, disse ele.

Como Salmoirago-Blotcher, Walker é um meditador de longa data, mas disse que a prática é poderosa por causa de seus efeitos mais sutis e cotidianos, incluindo ajudar as pessoas a gerenciar melhor o estresse, se tornarem mais conscientes de seus corpos e se conectarem com as emoções — não porque isso traz milagres”.

O Conspirituality apresentou recentemente uma entrevista com uma mulher cujo marido estava passando por quimioterapia para tratar o câncer de pâncreas quando começou a participar dos retiros de Joe Dispenza e quase decidiu interromper seus tratamentos. Embora ele tenha continuado com a quimioterapia — e tenha morrido de sua doença aos 45 anos —, sua esposa estava assustada, disse o podcast, pela forma como as crenças pseudocientíficas podem afetar desfechos de saúde.

Em seu e-mail para Undark, Hovda afirmou que Dispenza não recomenda que os indivíduos que lidam com uma doença descontinuem seus planos de tratamento atuais. “Há muitas opções que as pessoas têm durante um processo de tratamento e cura”, escreveu ela, “e essas opções evoluem com o tempo, bem como como a forma como a doença progride. A meditação e a autorregulação são caminhos que precisam de mais exploração, e representam uma modalidade que estamos pesquisando e que deve ser considerada em conjunto com as abordagens tradicionais, para ajudar ainda mais o corpo a retornar à homeostase”.

Resta saber se os resultados dos outros estudos em andamento da UCSD mostrarão efeitos significativos. E embora a pesquisa tenha descoberto que a meditação pode melhorar alguns desfechos de saúde — como a diminuição da pressão arterial e os biomarcadores do estresse —, seu efeito nos mecanismos biológicos subjacentes à saúde humana é menos claro. Sabe-se que faz algum bem em algumas situações, mas ainda não está claro quais situações e como.

Quanto a Halsch, ela atribui sua melhora de saúde, em parte, à prática meditativa. “Acredito, de coração e alma, que é porque estou em ordem, meditando todos os dias”, disse ela, “recebendo curas, participando de curas — e comendo uma dieta à base de plantas”.

 

Caren Chesler é uma jornalista da Costa de Jersey cujo trabalho apareceu no The New York Times, The Washington Post, Smithsonian e Wired. Este artigo foi publicado originalmente em Undark.

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