Novo capítulo na saga dos ultraprocessados

Artigo
16 jun 2025
latas de refrigerante

 

Que uma dieta rica em alimentos ultraprocessados é um dos fatores — entre tantos outros — capazes de aumentar o risco de diferentes doenças crônicas, todos sabemos. Contudo, como já discuti em outro momento aqui na RQC, a classificação NOVA, embora validada e reconhecida internacionalmente, apresenta uma falha na definição do que seria um alimento ultraprocessado que, a meu ver, é fundamental.

Segundo a classificação, considera-se ultraprocessado qualquer alimento que tenha passado por muitas etapas de processamento e com acréscimo de ingredientes que, na maioria das vezes, são de uso industrial (como corantes, saborizantes, entre outros).

Dentro dessa lógica, uma minhoca ácida (aquela balinha de gelatina com ácido cítrico) seria tão deletéria quanto um iogurte desnatado sabor flocos e sem açúcar, o que, obviamente, sabemos não ser o caso. Claro, alguém poderia citar a fala do professor Carlos Monteiro, criador do termo “ultraprocessado”, ao programa Roda Viva, na qual ele aponta que essa crítica é inválida, pois a comparação correta é entre as versões ultraprocessada e menos processada do mesmo tipo de alimento. Por exemplo, um pão de forma ultraprocessado não deve ser comparado a um refrigerante, mas sim a um pão de forma feito em casa.

O argumento é até certo ponto correto, mas uma análise mais crítica revela fragilidades. Nessa lógica, um refrigerante diet seria tão prejudicial quanto um refrigerante tradicional que, em alguns casos, pode fornecer até 30 gramas de açúcar por latinha. Da mesma forma, mesmo no exemplo do pão de forma, é possível argumentar que um ultraprocessado acrescido de fibras pode ser mais interessante do que a versão caseira feita com farinha branca. A principal falha da classificação é não considerar o conteúdo nutricional de cada produto.

Além disso, outro ponto passível de crítica é o fato de que a maioria dos estudos da área utiliza ferramentas limitadas, tanto por conta do efeito Hawthorne (a alteração do comportamento de um voluntário justamente por estar sendo “observado”) quanto pelo viés de memória.

Mas, se já expliquei as falhas da classificação NOVA e, aparentemente, não mudei de ideia a respeito, por que estou retomando a discussão? Simples: entre o final de abril e meados de maio, foram publicadas duas pesquisas interessantíssimas sobre o tema.

Uma delas tentou quantificar as mortes prematuras atribuíveis ao consumo de ultraprocessados e, como vocês devem ter imaginado, conquistou a atenção da imprensa, sendo noticiada com títulos como: “Consumo de ultraprocessados aumenta risco de morte prematura, diz estudo” e “Ultraprocessados matam em silêncio: cada 10% a mais na dieta acelera risco de morte precoce”.

Fazendo uma síntese preliminar deste primeiro estudo — que será abordado com maior profundidade em outra seção — trata-se de uma metanálise publicada no American Journal of Preventive Medicine. Compilou dados de oito países, somando mais de 240 mil pessoas com idades entre 30 e 69 anos, e observou que a cada aumento de 10% no consumo de alimentos ultraprocessados há uma elevação de aproximadamente 3% no risco de morte prematura.

O segundo estudo, por ser mais recente, ainda não havia recebido, nos últimos dias de maio, o devido reconhecimento. Os autores criaram um escore de consumo de ultraprocessados baseado em biomarcadores. Caso esse sistema seja replicado e validado por outros grupos, é possível que estejamos diante de uma revolução na área, uma vez que pode, ao menos, mitigar o viés de memória.

 

Ultraprocessados matam?

Responder à questão acima é o objetivo do artigo publicado no American Journal of Preventive Medicine.

Trata-se do estudo "Premature Mortality Attributable to Ultraprocessed Food Consumption in 8 Countries", metanálise que buscou estimar a relação dose-resposta entre alimentos ultraprocessados e a mortalidade, além do número de casos de diferentes doenças e condições que podem ser atribuídos a esses alimentos, em oito países: dois classificados como de baixo consumo de ultraprocessados (Colômbia e Brasil), dois intermediário (Chile e México) e quatro alto consumo (Austrália, Canadá, Reino Unido e EUA).

Ao todo, dez estudos foram inicialmente considerados, mas apenas sete apresentaram todas as informações necessárias para a análise.

Entre os 239.982 participantes incluídos na análise, foram registradas 14.779 mortes. O risco relativo combinado estimado indicou que, a cada aumento de 10% na presença de ultraprocessados na ingestão energética total, há um aumento de 2,7% no risco de mortalidade por todas as causas.

A contribuição média dos alimentos ultraprocessados para a ingestão energética total variou substancialmente entre os países analisados. Enquanto alguns apresentaram consumo inferior a 20%, como a Colômbia (15%) e o Brasil (17,4%), outros exibiram padrões significativamente mais elevados, com valores que variaram de 37,5% (Austrália) até 54,5% (Estados Unidos).

Quanto ao número absoluto de mortes prematuras atribuíveis a ultraprocessados, observou-se, mais uma vez, grande variação: de 1.874 no Chile a 124.107 nos Estados Unidos. No caso do Brasil, o número estimado foi de 25.296.

Com base nesses achados, os autores concluem que a adesão a um padrão alimentar ultraprocessado representa uma preocupação relevante de saúde pública, tanto em países de renda média quanto em países de renda alta.

Entre as limitações reconhecidas pelos próprios autores destaca-se o número relativamente pequeno de estudos disponíveis. Ademais, embora os modelos tenham sido ajustados para potenciais fatores de confusão, permanece a possibilidade de variáveis não mensuradas terem afetado os resultados.

Além dessas, cabe lembrar que os estudos incluídos são observacionais, o que impossibilita estabelecer relações de causa e efeito. Ademais, a estimativa do consumo de ultraprocessados foi realizada com base em ferramentas como questionários de frequência alimentar e recordatórios de 24 horas que, embora sejam instrumentos validados, estão sujeitos a vieses.

Deve-se ainda considerar que os padrões alimentares autodeclarados nessas pesquisas provavelmente não se mantêm estáveis ao longo do tempo, o que pode comprometer a acurácia das estimativas de exposição e, por consequência, dos riscos atribuídos.

Por fim — e talvez esta seja a limitação mais grave —, os autores consideraram como nível seguro de ingestão de ultraprocessados o valor de 0%. Ou seja, qualquer contribuição calórica desses alimentos já representaria um aumento no risco de mortalidade por todas as causas. É verdade que, em análises desse tipo, parte-se do princípio da prevenção primária, segundo o qual se assume que a exposição, em qualquer nível, não oferece benefício. Contudo, essa abordagem apresenta limitações importantes.

Por exemplo, ela falha ao considerar alimentos ultraprocessados com baixíssimo teor calórico, como gelatinas diet, ou mesmo nulo, como os refrigerantes dietéticos. Claro, pode-se argumentar — com razão — que o modelo leva em conta apenas a ingestão calórica, portanto, o impacto desses produtos seria desprezível. Isso é de fato válido para a gelatina, mas não elimina necessariamente a inconsistência conceitual no caso do refrigerante diet.

Isso nos leva, então, a uma segunda crítica: ao basear-se exclusivamente na contribuição energética, o modelo agrupa alimentos com perfis nutricionais profundamente distintos, mas com igual valor calórico.

Um YoPRO de coco com batata doce, por exemplo, contém as mesmas 157,5 kcal que cerca de 28,6 g de Kinder Ovo (uma unidade e meia). Ainda que seja evidente a inferioridade nutricional do segundo — considerando seu teor mais elevado de açúcar, gordura saturada e densidade calórica —, ambos representariam 7,88% da ingestão calórica diária numa dieta de 2.000 kcal. Ou seja, se alguém consome uma bebida proteica pronta ou um Kinder Ovo, além de um pão integral no café da manhã, já estaria, teoricamente, com 2,7% a mais de risco de morrer.

Brincadeiras à parte, já que o estudo não avalia o impacto individual dos alimentos e a porcentagem encontrada é uma média epidemiológica, e não direcionada à situação específica de um indivíduo, acredito que esse exemplo ilustra perfeitamente como a metodologia, por não conseguir mensurar o consumo cotidiano de ultraprocessados com o uso de biomarcadores diretos que quantifiquem de fato a exposição, pode gerar resultados impressionantes, mas falhos.

Isso nos mantém, portanto, em um cenário teórico que parece fazer sentido mas que é atravessado por uma série de fatores que afetam diretamente os desfechos, como sedentarismo, IMC elevado, tabagismo e estresse, entre outros.

Curiosamente, sempre acreditei que ficaríamos presos a essa dualidade: de um lado, novos estudos observacionais afirmando que qualquer consumo de ultraprocessados faz mal; de outro, os “chatos” (como eu) argumentando que a presença eventual desses alimentos não compromete, por si só, a qualidade da dieta. No entanto, talvez estejamos prestes a testemunhar uma nova linha de pesquisa que poderá encerrar essa discussão — ou, ao menos, colocá-la em novos termos.

 

O novo estudo

Foi publicado no periódico PLOS Medicine artigo intitulado “Identification and validation of poly-metabolite scores for diets high in ultra-processed food: An observational study and post-hoc randomized controlled crossover-feeding trial”.

Esta pesquisa teve dois objetivos principais: (1) identificar metabólitos associados à ingestão de alimentos ultraprocessados ao longo de 12 meses, a fim de desenvolver um sistema de “pontuação” capaz de estimar, em condições reais de vida, o consumo desse tipo de alimento a partir dos resultados de exames de sangue e urina; e (2) testar, em um ensaio clínico randomizado, controlado e cruzado, se esses escores são capazes de distinguir, para um mesmo indivíduo, diferenças entre dietas contendo 0% e 80% da energia proveniente de alimentos ultraprocessados.

Ao analisar a correlação entre metabólitos e ingestão de ultraprocessados, constatou-se que, no sangue, 191 dos 952 metabólitos avaliados apresentaram correlação estatisticamente significativa. Desses, 56 eram lipídios, 33, aminoácidos, e havia também aditivos e outras moléculas sintéticas.

Nas amostras de urina de 24 horas, 293 dos 1.044 metabólitos mostraram correlação significativa; na urina da primeira micção, foram 237 dos 1.043, também após correção. Destaca-se que 212 correlações foram comuns aos dois tipos de amostra urinária.

Ao todo, 470 metabólitos foram detectados tanto no soro quanto na urina.

Para a criação dos escores que classificariam a dieta como "rica ou não em ultraprocessados", foram selecionados cinco metabólitos para o soro, doze para a urina de 24 horas e nove para a urina da primeira micção. As análises demonstraram que esses escores permitiram uma discriminação moderada entre os participantes com maior e menor consumo desses produtos.

Por fim, ao aplicar os escores no ensaio clínico cruzado, foram recrutados 20 adultos saudáveis (idade média de 31 anos; IMC entre 22 e 33,6 kg/m²), que seguiram, por duas semanas, dietas compostas por 80% e 0% de alimentos ultraprocessados (UPFs). Os níveis de metabólitos foram comparados após cada fase, com o uso de amostras de sangue, urina de 24 horas e primeira micção. Como resultado, observou-se que os níveis variaram substancialmente, dentro do mesmo indivíduo, entre as fases da dieta com 80% e 0% de energia proveniente de UPFs.

Em contraste com o desempenho coletivo dos escores, apenas alguns metabólitos individuais incluídos nesses escores apresentaram diferenças consistentes entre as fases da dieta, dentro dos próprios indivíduos, sugerindo que o escore polimetabólito pode ser uma medida mais robusta da ingestão de ultraprocessados do que qualquer metabólito isolado.

Além disso, em um subgrupo composto por quatro participantes, no qual se compararam os escores entre dietas contendo 0%, 30% e 80% da energia proveniente de UPFs, com diferentes proporções calóricas de carboidratos e gorduras, constatou-se que o escore polimetabólito da urina de 24 horas aumentou de forma progressiva, dentro dos próprios indivíduos, à medida que aumentava a proporção de energia proveniente de alimentos ultraprocessados. Para o sangue e a urina da primeira micção, os escores permaneceram semelhantes nas dietas com baixo teor de UPFs (0% e 30% de energia), mas aumentaram significativamente nas fases com alta ingestão desses produtos.

Esses achados sugerem que os perfis metabolômicos refletem padrões alimentares caracterizados não apenas por alta ingestão de UPFs, mas também por uma concomitante baixa ingestão de alimentos in natura, como frutas e vegetais frescos. No conjunto de amostras de soro, três metabólitos da classe das vitaminas apresentaram correlação negativa com o consumo de UPFs, sendo que dois deles estavam associados à adesão a padrões alimentares saudáveis.

Apesar dos avanços, os autores ressaltam que esses achados representam uma base inicial, sendo necessário aprimorar os escores à medida que conjuntos de dados mais amplos e diversos se tornem disponíveis.

Como é habitual em estudos observacionais e ensaios clínicos de pequena escala, a pesquisa apresenta limitações importantes. Os dados de consumo alimentar foram obtidos por meio de recordatórios alimentares online, sem validação por outros métodos objetivos, o que introduz a possibilidade de erro de medida e subestimação ou superestimação da ingestão real.

Além disso, embora um modelo estatístico tenha sido empregado para testar a robustez dos metabólitos selecionados em diferentes subconjuntos amostrais, é necessário reconhecer que o ensaio clínico contou com um número reduzido de participantes. O baixo poder estatístico pode afetar a precisão e a generabilidade dos resultados.

Entretanto, talvez a limitação mais significativa — e, em minha avaliação, a mais relevante — seja a ausência de um ponto de corte amplamente aceito para definir o que constitui uma “dieta rica” em alimentos ultraprocessados. Ainda que o estudo adote 0% de energia proveniente de ultraprocessados como referência para a dieta ideal, essa é uma construção teórica e não reflete um consenso científico. No presente trabalho, observou-se uma diferença apenas moderada entre os participantes acima e abaixo do percentil 75: enquanto 75% dos indivíduos consumiam menos de 58,2% da energia diária a partir de ultraprocessados, 25% ultrapassavam esse valor.

De forma inusitada — e em contraste com minha postura geralmente cética diante de novos achados —, este é um dos raros casos em que me vejo moderadamente otimista. Reconheço que ainda há um caminho considerável a ser percorrido, e que a eficácia dos escores poderá ser questionada ou até refutada por estudos subsequentes.

Ainda assim, os resultados podem representar um avanço promissor rumo à superação das ferramentas subjetivas tradicionalmente utilizadas em estudos dietéticos. A possibilidade de contar com medidas objetivas sinaliza uma alternativa concreta para mitigar os numerosos vieses que há décadas desafiam a precisão das avaliações nutricionais.

 

Mauro Proença é nutricionista 

 

REFERÊNCIAS

NILSON, E. et al. Premature Mortality Attributable to Ultraprocessed Food Consumption in 8 Countries. American Journal of Preventive Medicine, Volume 68, Issue 6, 1091 - 1099. Disponível em: https://www.ajpmonline.org/article/S0749-3797(25)00072-8/fulltext.

ABAR, L. et al. Identification and validation of poly-metabolite scores for diets high in ultra-processed food: An observational study and post-hoc randomized controlled crossover-feeding trial. PLoS Med 22(5): e1004560. Disponível em: https://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.1004560.

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