Um efeito colateral positivo da cloroquina?

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15 ago 2020
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pílulas brancas

Nos últimos meses, diante do contexto da pandemia de COVID-19, temos assistido a um circo estabelecido no Brasil com relação aos supostos medicamentos para tratar a doença. Todo esse show vem sendo registrado na Revista Questão de Ciência. Veja, por exemplo, o estabelecimento de protocolo de uso de cloroquina ou hidroxicloroquia pelo Ministério da Saúde (MS); os kits de medicamentos defendidos como uma boa estratégia para o combate à doença; e aplicação de terapias alternativas, como a homeopatia, como intervenção para aumentar a imunidade da população.

O problema é que todas essas ações não são baseadas em evidências confiáveis, conforme reconhece a Associação Brasileira de Infectologia (ABI) e a Associação Médica Brasileira (AMB). É notável que mesmo a AMB, favorável ao governo e ao uso do fármaco, aponta a ausência de mérito científico devidamente estabelecido (veja aqui e aqui). É interessante também notar que a falta de evidências adequadas não é novidade nem para quem defende esses tratamentos, uma vez que o próprio documento que institui o protocolo de aplicação, emitido pelo MS, reconhece o fato.

A boa notícia é que uma parte da população, aquela signatária da ideia de que políticas públicas precisam se basear em evidências, entende que houve uma má condução da crise, por parte do Estado, a partir da destinação de recursos para aquisição ou implantação desses tratamentos.

Porém, o que se apresenta de curioso, e é algo que temos percebido de forma recorrente, é a existência de um recorte interessante desse mesmo grupo de signatários que, ao mesmo tempo em que compreende a falta de evidências para cloroquina, recomenda ou se submete a inúmeros tratamentos, ditos “complementares” ou “alternativos”, cuja base de evidência é igualmente escassa. Não é um contrassenso?

 

Alfabetização científica

Um dos fatores que pode estar por trás dessa dicotomia é o bem conhecido baixo nível de alfabetização científica da nossa sociedade. Embora não se tenha um consenso sobre a lista de habilidades exigidas para um cidadão ser considerado alfabetizado cientificamente, espera-se um domínio mínimo do conhecimento científico a fim de, primeiramente, compreender o mundo que nos cerca, para, em seguida, ter condições de tomar decisões conscientes sobre diversos processos da vida diária: qual é o equipamento mais eficiente para uma função; qual é a forma correta de usar um aparelho recém-comprado; qual é a confiabilidade ou veracidade de informações vinculadas a um “produto milagroso” encontrado na internet; e, claro, qual é o melhor tratamento médico disponível para determinada doença.

Uma instituição não-governamental no Reino Unido, chamada Wellcome, publicou em 2019 dados referentes a uma pesquisa mundial sobre a percepção da ciência. Foram entrevistadas mais de 140 mil pessoas em mais de 140 países, de abril a dezembro de 2018. Dentre os resultados obtidos, 57% dos respondentes julgaram não saber avaliar seu conhecimento sobre ciência ou, quando avaliaram, enquadraram-no como pequeno ou nulo. Em termos de América do Sul, esse número atinge 62%.

O dado ecoa outro, anterior: em 2014, foi divulgado resultado de pesquisa que sondou o chamado “Índice de Letramento Científico” no Brasil. Foram aplicados questionários em diversas regiões metropolitanas do país, para 2.002 pessoas. Numa escala de quatro níveis de letramento, 64% dos entrevistados foram enquadrados nos dois níveis mais baixos, indicados como “letramento não científico” e “letramento rudimentar”.

No caso da pesquisa em questão, para se ter ideia do impacto prático desse resultado, um índice de letramento baixo indica que a população tem dificuldades para tarefas simples, que poderiam ser feitas com um mínimo de conhecimento científico. Por exemplo: não conseguem seguir um manual de instruções ou uma receita médica, ler adequadamente um exame de sangue e nem mesmo estimar o tempo de viagem, ou consumo de combustível, entre duas cidades. Imagine, então, a dificuldade para ler um gráfico numa matéria de jornal ou, como nosso foco aqui, decidir conscientemente sobre a qualidade das evidências em favor de um tratamento de saúde.

Todos esses dados ajudam a montar um quadro preocupante sobre qual será o comportamento das pessoas frente a uma situação de crise, como a que vivemos, em que a ciência é essencial no enfrentamento do problema. A jornalista especializada em ciências e saúde Ruth Helena Bellinghini aborda justamente a falta de alfabetização em saúde como uma problemática central da atualidade, o que tem toda relação com alfabetização e conhecimento científico.

 

Dar o exemplo

Outro fator relacionado a essa problemática cai no colo do poder público: ora, como queremos que a população seja crítica e atenta às evidências, quando o próprio sistema público de saúde nacional não o faz? Afinal, o SUS fornece suporte, desde 2006, ao que chama de Programa Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). Neste momento, inclusive, encontra-se em tramitação, no Congresso Nacional, um projeto para transformar isso em lei.

O mau exemplo pode ser extrapolado até para o cenário internacional: a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta para o perigo da utilização de tratamentos para a COVID-19 que não tenham sido investigados de modo robusto, enquanto reconhece que "a medicina tradicional, complementar e alternativa" tem muitos benefícios.

Em relação às supostas evidências em favor de várias das PICs citadas, muitas delas já foram investigadas seriamente, sem sucesso. Aqui na Revista Questão de Ciência, o tema das práticas alternativas é recorrente, e você pode encontrar boas avaliações, por exemplo, sobre homeopatia, medicina tradicional chinesa e ozonioterapia.

Além das “evidências” propostas, as argumentações comumente usadas para tentar justificar o investimento nesses tratamentos já foram alvos de discussão nesta revista, mostrando-se bastante questionáveis. Vale destacar, brevemente, dois dos mais comuns:

"Essas práticas devem ser reconhecidas porque são oriundas de conhecimento tradicional/milenar".

A armadilha, aqui, mora no fato de que nem todo conhecimento tradicional ou milenar está correto à luz de evidências produzidas pela ciência moderna. Caso contrário, estaríamos apegados, até hoje, à ideia de que a Terra é o centro do Universo, e que tudo ao nosso redor é formado por quatro elementos: terra, água, ar e fogo (ou cinco, na tradição chinesa: água, madeira, fogo, metal e terra). Junte-se a isso o fato de muitas das práticas complementares só terem surgido em tempos recentes, e não sobra nada sólido para sustentar a argumentação proposta.

"Mas há diversos relatos de pessoas que melhoraram ao fazerem os tratamentos".

E também existem relatos de pessoas que se submeteram a diversos tratamentos alternativos e não colheram frutos positivos. É por esta razão que a investigação de eficácia de um tratamento deve ser feita por meios adequados, e não baseadas em relatos ou rumores frutos de experiência pessoal. Ao mesmo tempo, o argumento ainda perde força por existirem inúmeros fatores que podem fazer com que o indivíduo melhore depois de uma intervenção qualquer.

 

Efeito colateral desejado

Mas nem tudo é negativo. Várias sociedades médicas e científicas, além de divulgadores de ciência independentes, mobilizaram-se para conscientizar a população sobre a ineficiência dos tratamentos propagandeados para COVID-19. Isso mostra que a ciência de qualidade ainda tem voz. Estamos no caminho, embora ele seja longo e contenha obstáculos.

Assim, talvez um dos efeitos colaterais do circo da cloroquina, aliado ao contínuo trabalho de divulgação da ciência e da medicina baseada em evidências, seja o maior preparo da população para avaliar, com espírito crítico e atenção, as evidências de vários tratamentos de saúde oferecidos em nosso país. E, então, talvez possamos fomentar o “exemplo reverso”, ou seja, a sociedade civil servindo de referência para que o poder público passe a ouvir a ciência na hora de tomar decisões envolvendo políticas públicas.

 

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia

Bruno Menezes Galindro é biólogo, com doutorado em Engenharia Ambiental, pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, ministrando aulas de Biologia e Metodologia de Pesquisa, além de participar de projetos de pesquisa e divulgação científica na área ambiental

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