A vaidade de Bolsonaro vale quantas vidas?

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27 mar 2020
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 Isac Nóbrega/PR

A esperança de que o Ministério da Saúde (MS) conseguiria preservar algum resquício de sobriedade técnica e brio científico face à pandemia atual de COVID-19, mesmo em meio à dantesca barragem de obscurantismo e irresponsabilidade que emana do gabinete presidencial, cai por terra com a publicação da Nota Informativa 5/2020, que instrui sobre o uso de cloroquina (CQ) e hidroxicloroquina (HCQ) no sistema público de saúde brasileiro, como parte do combate ao vírus SARS-CoV2, causador da doença.

Inexiste base científica, justificativa racional (ou “técnica”) para o uso desses medicamentos no contexto da pandemia. No que pode ser interpretado como ironia involuntária, sinal de desespero ou um gesto velado de revolta de burocratas forçados, pela chefia, a redigir barbaridades, as referências bibliográficas da nota são dominadas por artigos que ou advertem que a CQ e a HCQ muito provavelmente não passam de falsas esperanças no caso da COVID-19 (Touret & Lambarellie, 2020), ou que mostram que a literatura favorável a tal uso é precária e carece de mérito científico (Riera & Pacheco, 2020).

Outra referência dada é uma manifestação oficial do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, a respeito da pandemia, em que ele faz a seguinte exortação: “Pedimos a pessoas e países que se abstenham de usar terapias cuja eficácia no tratamento da COVID-19 não foi demonstrada”, porque “a história da Medicina está repleta de exemplos de drogas que funcionaram no papel, num tubo de ensaio, e não funcionaram em seres humanos ou se mostraram, de fato, nocivas”.

Sério: uma nota do MS que instrui sobre o uso de CQ e HCQ no SUS, para o combate à COVID-19, cita, como parte de sua justificativa, uma revisão sistemática que conclui que o “uso de rotina para esta situação não pode ser  recomendado”, e uma manifestação da OMS que adverte que coisas como a CQ e a HCQ – “terapias cuja eficácia no tratamento da COVID-19 não foi demonstrada” – não devem ser usadas. É confiar demais no princípio de que ninguém lê nota de rodapé.

Para encontrar resultados favoráveis à aplicação desses fármacos na pandemia, a Nota Informativa 5/2020 tem de apelar para o estudo francês de Gautret et. al., cuja indigência metodológica (incluindo indícios fortes de má-fé) já foi apontada por especialistas de todo o mundo (por exemplo, aquiaquiaqui e aqui).

A própria revisão de Riera e Pacheco, citada na bibliografia da Nota Informativa, afirma que o estudo de Gautret et. al. peca por falta de rigor metodológico e apresenta risco sério de viés – em outras palavras, de ter produzido o resultado que os autores gostariam de ver, não o que corresponde à realidade.

Além disso, o principal autor do artigo em questão, o médico e microbiologista francês Didier Raoult, tem uma longa história de acusações de violação ética e fraude em pesquisa – por um período, ele chegou a ser proibido de submeter trabalhos científicos aos periódicos da Associação de Microbiologia dos Estados Unidos. 

Um dos trabalhos citados na Nota Informativa, o de Touret e Lambarellie, pede que se aguardem os resultados dos estudos chineses com CQ e HCQ antes de se tentar algo mais ousado com essas drogas, no cenário da pandemia. Bom, um trabalho chinês saiu dias antes da publicação da Nota Informativa, com o veredito: HCQ é inútil para COVID-19. Esse resultado, curiosamente, não aparece na bibliografia do Ministério da Saúde.

Resumindo: o Ministério da Saúde está recomendando um curso de tratamento, mas baseando-se em um estudo sem valor e em alguns outros que dizem que o tratamento não deve ser recomendado. Se a Nota Informativa dissesse que a base da recomendação é a vontade do ministro de agradar o presidente, danem-se a ciência e a saúde do povo, o resultado seria menos patético e mais honesto.

Tanto a CQ quanto a HCQ são usadas há décadas no tratamento da malária, e também no alívio dos sintomas de pacientes com doenças autoimunes. A divulgação exagerada e irresponsável dos resultados de Gautret et. al. causou escassez do medicamento no mercado, prejudicando pacientes de lúpus e artrite reumatoide, que realmente precisam dos fármacos.

A CQ e a HCQ têm alta toxicidade: podem causar problemas graves de saúde e, até, matar. Sua aplicação a pacientes que já se encontram debilitados – a Nota Informativa fala em “tratamento de formas graves de COVID-19” – é irresponsável. A Nota Informativa tenta contornar isso indicando que os pacientes devem ser submetidos a eletrocardiogramas antes de receber CQ ou HCQ, mas a precaução, além de frágil, colide com a carência de recursos com que o SUS é forçado a lidar.

Não há, infelizmente, outro modo de definir a situação: com a cumplicidade do Ministério da Saúde, vidas estão sendo postas em risco para satisfazer a vaidade do Presidente da República.

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

 

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