O mundo é outro, distinto daquele a que estávamos acostumados. Olhamos ao nosso redor e percebemos que estamos vivendo um momento único, difícil e completamente novo. O novo coronavírus (SARS-CoV2, causador da doença respiratória COVID-19) impôs mudanças drásticas, restrições, medidas de higiene e isolamento social. No momento em que escrevo (22/03 às 19h30), no mundo todo, são 335.403 casos confirmados, com 223.156 casos ativos, 97.636 casos recuperados e 14.611 mortes. No Brasil, são 1.546 casos confirmados e 25 mortes (para o monitoramento da propagação do coronavírus em tempo real no mundo todo, siga mapa interativo – rastreador da COVID-19) .
Se não bastassem todas as implicações deste tsunami global, estamos diante de outra epidemia de grandes proporções: a da desinformação, que ganhou força devastadora nas redes sociais. Neste momento, devemos nos unir e elevar o tom, porque a voz da Ciência tem de ser ouvida no enfrentamento da desinformação e dos boatos e opiniões absurdas sobre temas capitais, tratados sem o menor compromisso com a verdade.
Ninguém está imune ao novo vírus: nem crianças, nem jovens, adultos ou idosos. Da mesma maneira, não estamos protegidos desta nova epidemia da desinformação. É uma situação complexa, que expõe a nossa vulnerabilidade em aspectos fundamentais, sociais e de saúde pública.
Um dos assuntos mais discutidos no momento está relacionado aos possíveis tratamentos para a doença. Tem circulado a (des)informação de que os medicamentos que contêm os princípios ativos cloroquina e hidroxicloroquina (um análogo simples da cloroquina) são úteis para a profilaxia, tratamento ou cura da infecção causada pelo novo coronavírus.
Cloroquina
Apesar dos resultados promissores descritos por alguns estudos na literatura científica, não há evidências ou dados conclusivos que comprovem a eficácia do uso desses medicamentos para o tratamento do novo coronavírus.
Os resultados disponíveis ainda são preliminares e questionáveis, e, portanto, devem ser ampliados, permitindo ampla discussão sobre vários aspectos que precisam ser corretamente considerados. Não existem recomendações de agências reguladoras no mundo para o uso destes medicamentos para a COVID-19. Este é também o caso no Brasil: não há recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a sua utilização em pacientes infectados ou mesmo como forma de prevenção à contaminação pelo novo coronavírus.
Deve ficar claro que, para a inclusão de novas indicações terapêuticas em medicamentos, é indispensável conduzir estudos clínicos em uma amostra representativa de seres humanos, demonstrando não somente a eficácia, mas também a segurança do uso pretendido. Novos e melhores testes estão em andamento, e é preciso aguardar os resultados clínicos e analisá-los, com critérios científicos bem estabelecidos, para subsidiar a nossa interpretação e compreensão dos fatos. Por essa razão, nada justifica a correria desenfreada pela compra destes medicamentos.
Além da simples perda de tempo e dinheiro, tais ações prejudicam as pessoas que realmente precisam dos medicamentos para os tratamentos ativos indicados. O problema foi agravado por declarações desastrosas de alguns governantes, citando estes medicamentos como solução para a pandemia sem, contudo, apresentar dados científicos e comprovação clínica. A falsa esperança levou ao esgotamento dos medicamentos em diversas farmácias.
Mais cedo, foram anunciadas oficialmente, na Nigéria, as primeiras mortes por intoxicação por cloroquina, como consequência do uso indevido para o coronavírus. Contrapondo-se ao surto de falta de bom senso geral, a Anvisa tomou uma decisão correta, em 20/03, ao incluir a hidroxicloroquina e a cloroquina na categoria dos medicamentos de controle especial. Esses medicamentos somente poderão ser entregues mediante receita branca especial, em duas vias.
No Brasil, alguns laboratórios comercializam o difosfato de cloroquina e o sulfato de hidroxicloroquina. Mas é imprescindível lembrar que as únicas indicações aprovadas para uso em seres humanos são para o tratamento de:
A automedicação pode representar um grave risco à saúde das pessoas. As manifestações tóxicas da cloroquina estão relacionadas com efeitos cardiovasculares (hipotensão, vasodilatação, supressão da função miocárdica, arritmias cardíacas, parada cardíaca) e do sistema nervoso central (confusão, convulsões e coma). As doses terapêuticas usadas no tratamento oral podem causar, entre outros efeitos colaterais, cefaleia, irritação do trato gastrointestinal, tontura, distúrbios visuais, urticária. Doses diárias altas podem resultar em retinopatia e problemas auditivos irreversíveis.
O tratamento prolongado com altas doses pode causar, entre outros problemas, miopia tóxica, cardiopatia e neuropatia periférica, visão borrada, confusão, convulsões, erupções e queloides na pele, e embranquecimento dos fios do cabelo. Em casos raros, podem ocorrer problemas graves no sangue. A cloroquina é um fármaco que apresenta estreita margem de segurança, e uma dose única de 30 mg/kg (30 miligramas por quilo de massa corporal, ou cerca de 2 gramas para uma pessoa de 70 quilos) pode ser fatal.
Além disso, há o problema das interações medicamentosas, comum a maioria dos princípios ativos que são administrados oralmente. A cloroquina interage no organismo humano com uma variedade de fármacos, podendo:
Embora o perfil de segurança da hidroxicloroquina seja relativamente superior ao da cloroquina, o seu uso está igualmente sujeito a várias das interações medicamentosas descritas para a cloroquina. A cloroquina e a hidroxicloroquina apresentam sérios efeitos adversos que podem ser experimentados pelas pessoas que optaram pela automedicação contra a COVID-19. É uma condição que poderia ser evitada, mas que tem potencial para representar o desenho de uma nova e indesejável condição, a da epidemia de intoxicações.
Somando-se a todos os problemas mencionados anteriormente, é preciso observar que a cloroquina exibe uma farmacocinética – o modo como se comporta no corpo humano, incluindo os processos de absorção, distribuição, metabolismo e eliminação – complexa. Os níveis do fármaco no sangue são determinados pela velocidade de distribuição (após entrar na via sistêmica, o princípio ativo é distribuído pelos diversos tecidos), e não pela de eliminação (os fármacos são eliminados do organismo humano tanto em sua forma intacta, sem sofrer biotransformações, quanto modificada quimicamente pelo metabolismo).
Há uma extensa ligação com os tecidos, o que requer uma dose de ataque para obter concentrações plasmáticas eficazes. A meia-vida da cloroquina no corpo aumenta aos poucos, à medida que os níveis plasmáticos declinam. A meia-vida terminal varia de 30 a 60 dias, e vestígios do fármaco podem ser encontrados na urina durante anos após o uso terapêutico.
Deve-se ressaltar que algumas outras dezenas de princípios ativos também estão sendo avaliadas no mundo todo para o tratamento da COVID-19. Se os resultados dos estudos em andamento com a cloroquina e hidroxicloroquina forem positivos e resultarem numa indicação para o novo coronavírus, outra questão ganhará grande importância: a produção em larga escala dos medicamentos para o tratamento de centenas de milhares de pessoas.
Laboratórios especializados em medicamentos genéricos nos Estados Unidos, como a Teva e a Mylan, já anunciaram o aumento da produção, o que parece uma medida prudente. No Brasil, a Cristália, que produz o difosfato de cloroquina, e a Apsen, que produz o sulfato de hidroxicloroquina, poderiam se mobilizar no mesmo sentido.
Ao fim e ao cabo, é necessário oferecermos as pessoas os melhores esclarecimentos para que elas sejam capazes de tomar decisões informadas, ou seja, de não comprar medicamentos sem a devida orientação e prescrição médica, e de não tomar nenhum medicamento por conta própria na esperança de um efeito profilático, de um possível tratamento ou mesmo cura para o novo coronavírus.
É sempre importante seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), das Agências Reguladoras e do Ministério da Saúde, porque proteger a vida humana deve sempre estar acima de qualquer outro interesse.
Adriano D. Andricopulo é professor titular da USP, especialista em Química Medicinal, Fármacos e Medicamentos e diretor-executivo da Academia de Ciências do Estado de São Paulo