Prisioneiros de crenças infundadas
As pseudociências ou falsas ciências, ou seja, aquelas disciplinas que se fazem passar por ciências, restringem os níveis de liberdade das pessoas que nelas acreditam. Assim, a astrologia, que não é uma ciência, está baseada em duas hipóteses básicas: 1) que a data e hora do nascimento de uma pessoa determina sua personalidade e seu futuro, e 2) que os planetas influenciam nosso caráter e nossos atos. A astrologia é essencialmente determinista, isto é, se seus princípios estivessem certos, nosso futuro estaria determinado pela posição dos planetas na hora do nascimento, cerceando nossos níveis de liberdade. Seríamos meros marionetes sujeitos aos “caprichos” dos planetas.
Os astrólogos têm “estratégias” para enfrentar perguntas complicadas e inventaram um slogan que diz: “os astros impelem, mas não compelem”, acreditando que este frágil argumento os exime de cair no determinismo. Mas não é assim. A conclusão mais próxima da realidade é que, se o nosso futuro depende da posição de Saturno, de Marte e dos demais planetas na hora do nascimento, a astrologia é determinista, e não podemos fazer nada para evitar um futuro que já está lançado. Se aceitamos a astrologia, estamos reconhecendo — conscientemente ou não — que nossos níveis de liberdade foram consideravelmente diminuídos.
O mesmo ocorre com o tarô, que alguns até o chamam de “tarô científico”. Se as cartas dizem o que vai nos acontecer, deveríamos concluir que em um novo jogo apareceriam as mesmas cartas de antes, o que é difícil de ocorrer. Se as cartas tivessem saído de uma outra forma no novo jogo, então o nosso futuro teria mudado? Dessa maneira, é suspeito que um baralho de cartas, seja o tarô, o espanhol ou de qualquer outro tipo, possa prever o que irá nos acontecer. Se o primeiro jogo contradiz o segundo ou o terceiro, não podemos confiar nessa “técnica de adivinhação”. Ficaríamos outra vez sujeitos a um determinismo que paradoxalmente muda a cada novo jogo. Então qual é o verdadeiro?
Por trás de toda essa parafernália de adivinhações, está o que conhecemos pelo nome de “pensamento mágico”, que nada mais é que um pensamento irracional, esotérico, em conflito com o conhecimento científico atual.
Acontece algo semelhante com as predições feitas por videntes e adivinhos: como poderíamos fazer para evitar a predição de um acidente? Se é inevitável que o acidente aconteça, não poderíamos evitá-lo e seríamos – mais uma vez – vítimas de um determinismo supostamente infalível. Não teríamos nenhuma possibilidade de contorná-lo. E se ele não acontece, então a previsão não teria nenhuma validade.
Há centenas de predições que não se cumpriram. O que aconteceu então? O vidente previu algo que não aconteceu, o que indica que nosso futuro não está determinado. Ao menos, é isso o que sugere uma análise detalhada de todas as predições supostamente infalíveis que não se cumpriram: que a Argentina ganharia a Guerra das Malvinas, que o Papa João Paulo II sofreria um outro atentado depois do de 1981, que a dívida externa argentina estaria saldada em 1994, como afirmou Horangel, e tantas outras predições.
Gurus e outros “mestres”
As livrarias estão cheias de textos em que os gurus, sejam eles religiosos ou dedicados à consultoria, dizem, com um ar de pseudoprofundidade, o que temos que fazer ou como temos que viver.
Alguns do primeiro tipo, como Jim Jones, o que perpetrou o massacre da Guiana e conseguiu o suicídio e assassinato de 900 pessoas em 1978, são realmente perigosos. As pessoas que acreditavam nele não eram necessariamente “doentes” ou “loucas”. Mas foram submetidas a um processo evidente de manipulação. Algo semelhante aconteceu com a seita Heaven’s Gate (Porta do Paraíso), que, devido aos ensinamentos de seu líder, Marshall Applewhite, fez com que 39 pessoas se suicidassem em 1997 pensando que uma espaçonave extraterrestre, que ele dizia que passava junto com o cometa Hale-Bopp, os levaria para um lugar onde supostamente estariam melhores.
Ao assistirmos aos vídeos deixados pelos seguidores de Applewhite, vemos que essas pessoas estavam contentes, felizes por passarem para o outro “plano”. Entregaram todos seus pertences e permitiram a sua castração. A questão é: essas pessoas eram livres? Tinham capacidade de avaliar de forma crítica e consciente o que estavam a ponto de fazer?
O que acontece ao redor dos gurus como Sai Baba e outros é comum em vários cultos: isolamento do sujeito em relação ao mundo exterior, controle da conduta, manipulação do pensamento e do comportamento, persuasão coercitiva. Ou seja, restrição dos níveis de liberdade do indivíduo. A submissão às regras de um “escolhido”, que se intromete frequentemente em nossa vida privada nos aconselhando sobre espiritualidade, sexo, vida conjugal, premiando nosso comportamento servil e castigando as condutas “inapropriadas” é um exemplo claro da paulatina perfuração mental para que nosso pensamento crítico desapareça, e sejamos transformados em meros autômatos, carentes de independência.
Os gurus que se dedicam à consultoria para empresas também fazem algo parecido, ainda que camuflados de uma suposta “teoria científica” e armados de um histórico acadêmico: manipulam os funcionários e, com retórica rebuscada, deixam bem claro o que têm e o que não têm que fazer. Participei de vários seminários ou workshops desse tipo, mas me lembro de um em especial:
Um profissional, senhor experiente, nos falava com uma voz firme e pausada sobre como eram surpreendentes a Internet e o mundo das comunicações modernas, onde podíamos, de forma instantânea, saber que, em Bangladesh, as crianças morriam de fome. Então lhe perguntei se o fato de saber “instantaneamente” poderia solucionar a situação dessas crianças. A resposta foi: “aqui não falamos sobre política”.
Realmente edificante.
A mecânica dos líderes é criar uma aura que combine carisma, firmeza, afeto, tolerância e sabedoria. Ou seja, uma espécie de ser humano quase divino que possui uma verdade “revelada”, insuperável, indiscutível, à qual os adeptos ou os membros do grupo devem se submeter, sem duvidar. Porque para esses cultos, duvidar é perigoso, assim como para os governos, para os partidos políticos, para as autoridades de uma empresa, ou para qualquer outra organização monolítica.
Mas a dúvida pode ser incômoda inclusive para as pessoas em geral. Uma das coisas mais intoleráveis para o ser humano é a incerteza, seja em relação ao presente ou ao futuro.
A busca de proteção e paternalismo
Os seres humanos podem buscar proteção e paternalismo aqui, na Terra, mas também nos Céus. Assim, as religiões chamadas monoteístas, como o cristianismo, o judaísmo ou o islamismo, têm como figura máxima e inegável um deus ao qual atribuem três características: onipotente, onisciente e benevolente. Isto é, um ser que tudo pode, que tudo sabe, que ama a todos e quer o bem para toda a humanidade. A julgar como anda o mundo, não está fácil combinar logicamente as três características. Estamos mencionando o “problema do mal”, inexplicável se insistirmos num deus benevolente.
As religiões conhecidas como “tradicionais” têm como base fundamental um dogma, ou seja, uma doutrina indiscutível, imodificável, resistente aos argumentos racionais e à evidência contrária, que permanece imutável por séculos e séculos. Está gravada nos textos sagrados, como a Bíblia, o Corão ou a Torá.
Permanecendo imutável eternamente, são letras mortas no sentido de que se mantêm indiferentes às mudanças ocorridas no mundo desde que foram escritas. Contêm regras morais de conduta, tais como os 10 mandamentos e outras, espalhadas em suas páginas. Sem exceção, a desobediência a essas regras ou mandamentos trará como consequência o castigo divino. Desta forma, nos encontramos com a noção do “pecado”, que é o que cometemos ao desobedecer ou violar a lei divina.
É evidente que ao longo da história as religiões e os seres humanos que ocuparam seus cargos hierárquicos se preocuparam em infundir sentimentos aversivos nas pessoas: culpa, temor, medo do castigo, fanatismo, todos os quais nos tiram níveis de liberdade. Como indivíduos livres, devemos agir de acordo com convicções próprias, e não impostas compulsivamente por nenhuma instituição. Algo que as religiões se encarregaram de proibir ou, no melhor dos casos, advertir contra, com ameaças sobre as consequências de agir em desacordo com os ensinamentos divinos (o inferno, o castigo eterno, etc.). Portanto, seguir a palavra dos textos sagrados é restringir nossa liberdade de pensamento e de ação.
É notável que nos dias de hoje nenhum dos “sete pecados capitais” –luxúria, gula, avareza, preguiça, ira, inveja e soberba – seja considerado crime pela lei moderna. E é contraditório que a ira seja um pecado, já que, no Antigo Testamento, encontramos um deus essencialmente vingativo, perverso, disposto a lançar sua fúria contra todo aquele que o desobedeça, até o ponto de ordenar que Abraão assassine seu próprio filho para “testá-lo”. Ou seja, até onde iria a lealdade de Abraão em relação a deus? Chegaria a matar seu filho?
Se, em vez de deus, o personagem fosse um mafioso dos anos 20 em Chicago, que ameaçava o filho de um cliente que estava lhe devendo, a história seria mais “razoável”, mas essencialmente, igual.
A busca do paternalismo através da religião, ou seja, a necessidade de ter um pai onipresente que nos protegerá e cuidará, mas em troca fará exigências contra a natureza humana, irremediavelmente nos tira a liberdade. Claro, a noção do pecado está tão imersa na cultura que até quando nos casamos, uma das premissas que são lidas em voz alta é que devemos prometer ser fieis. Quanta hipocrisia! Basta dar uma olhada no mundo complexo das relações interpessoais para perceber que as mulheres e os homens saem e dormem uns com os outros sendo solteiros, casados, estando ou não comprometidos.
Por isso, há uma sanha especialmente perversa em relação ao sexo e à sexualidade por parte das religiões. Como diz o ator Al Pacino ao interpretar o demônio no filme “O Advogado do Diabo”:
“O que Deus diz? Olhe, mas não toque. Toque, mas não prove. Prove, mas não engula”.
Claro, vemos no mundo real algo completamente diferente: a maioria das pessoas, crentes ou não, olham, tocam, provam e engolem, como é esperado que o façam. Assim, é criada uma moral dupla perniciosa, onde as pessoas se acostumam a esconder seus sentimentos e seus desejos, enquanto se empenham em mostrar uma imagem imaculada e dão conselhos, julgam as ações dos outros. De maneira que podemos estabelecer um tipo de lei:
Lei da razão hipocrisia-liberdade: quanto maior o nível de hipocrisia, menor o nível de liberdade.
É uma cadeia complexa, mas toda a hipocrisia institucionalizada terminará em uma restrição dos níveis de liberdade.
Papel do pensamento mágico na obstrução da liberdade
O pensamento mágico, como coluna vertebral da superstição, das cabalas, das adivinhações e das pseudociências (da astrologia até ao charlatanismo na política e na economia) se transforma em uma obstrução para a liberdade, um tipo de corrente que nos amarra ao irracional, ao esotérico e às verdades “reveladas”. Segui-lo à risca pode custar vidas, não somente daquelas pessoas que se submetem a tratamentos ou terapias “alternativas” sem eficácia alguma, mas de qualquer cidadão que esteja sujeito a um governo totalitário ou populista, que incentive o fanatismo ou a perseguição de quem pensa diferente, com base em teorias infundadas como fez o nazismo em relação à “raça superior”.
Crer à risca nas pseudociências, nas possessões diabólicas, nos exorcismos, em rituais, em remédios secretos “infalíveis”, nos afasta da realidade. Os charlatões sabem disso, e portanto recorrem ao desespero ou à ignorância das pessoas frente a uma doença ou a uma situação difícil.
Eles sabem que as pessoas que estão passando por algum problema grave são mais fáceis de convencer, por meio de alguma promessa mágica. Se a solução parece fácil demais, se não tem que fazer nada para se curar, se o tratamento é apresentado como inócuo, indolor e sem efeitos colaterais, é preciso desconfiar. E o pior é que há charlatões com diploma, que são os mais perigosos.
Talvez o leitor tenha ouvido falar de tratamentos para deixar de fumar ou emagrecer com laser, e terapias de “rejuvenescimento” oferecidas por médicos com diplomas universitários. Sem exageros, podemos afirmar que estes profissionais trabalham com licença para matar, ou pelo menos com permissão, em forma de diploma, para nos arrancar muito dinheiro em troca de resultados frustrantes.
Deveríamos dizer o mesmo das promessas de políticos, economistas, ministros e outros funcionários:
Aquilo que soa fácil e maravilhoso deseja atingir o sentimento antes da razão.
Assim, em plena campanha eleitoral, nos dirão firmemente que a solução para o problema da poluição ambiental está logo ali na esquina, e que farão um trabalho necessário durante sua gestão para que a poluição diminua. Depois das eleições, veremos as promessas reduzidas a pó. Isso já aconteceu na Argentina em relação à “limpeza” do rio Riachuelo, do qual se poderia beber água em mil dias!
Por essas razões, é certo que o pensamento mágico é um atentado contra nossos níveis de liberdade. Portanto, quanto mais longe estivermos dele, menos probabilidade teremos de viver em cativeiro, presos a ideias irracionais e propostas irrealizáveis. Ou seja, seremos mais livres para estar atentos à realidade e para solucionar nossos problemas tomando decisões acertadas.
Alejandro Borgo é jornalista, escritor e pesquisador da pseudociência e pensamento crítico. Atualmente é Diretor do Center for Inquiry (CFI) na Argentina. Dirigiu Pensar, revista ibero-americana para ciência e razão, publicada pelo Committee for Skeptical Inquiry e El Ojo Escéptico, publicado pelo Centro Argentino de Pesquisa e Rejeição à Pseudociência (CAIRP). Ele escreveu 3 livros relacionados a pseudociência e pensamento crítico. Participou como colunista em vários programas de rádio e televisão e em congressos nacionais e internacionais sobre ceticismo, filosofia e livre pensamento.
O original deste artigo está disponível em nossa seção especial em espanhol.