Navalhas do pensamento

Apocalipse Now
26 mar 2023
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espadas

 

Semear confusão é a atividade-fim de inúmeros negócios com alto potencial de lucro, do marketing político ao curandeirismo. O princípio geral é construir cenários onde a vítima (o paciente, o cliente, o eleitor) fique com a razão imobilizada e acabe tendo de decidir com base em alguma heurística familiar, algum viés cognitivo – como o viés de confirmação ou a validação subjetiva – que sirva aos interesses do semeador da vez.

A atividade de plantar confusão é facilitada pelo fato de que, na ecologia mental da Humanidade, já predomina confusão de uma variedade natural, silvestre, que ajuda a camuflar a que é deliberadamente cultivada. A vida cotidiana é confusa em si: somos, todos os dias, a toda hora, chamados a tomar decisões sem tempo suficiente para considerar racionalmente os fatos relevantes, muitas vezes sem acesso a parte significativa dos fatos relevantes. Escolhemos restaurantes sem saber se o pessoal da cozinha lava as mãos.

Seguimos vieses, heurísticas e intuições porque, em geral, não dá para fazer melhor. Mas isso não quer dizer que não podemos olhar com cuidado para a qualidade dos vieses, heurísticas e intuições que acessamos no dia a dia. Na internet é possível encontrar diversas listas de “navalhas filosóficas” que se propõem a agilizar o pensamento crítico, ajudando a cortar fora parte da confusão que polui a paisagem.

Abaixo, vão algumas das minhas favoritas – sempre lembrando que esses “atalhos mentais” não passam de truques úteis para navegar impasses em condições de tempo escasso ou informação insuficiente. Não são “leis da lógica”, regras inflexíveis, argumentos irrefutáveis e, muito menos, princípios infalíveis. Use com responsabilidade e moderação.

 

Navalha de Copérnico

Derivada do chamado Princípio Copernicano, generalizado a partir da constatação de que o planeta Terra não ocupa um lugar privilegiado no Universo. É a ideia de que, na ausência de evidências extraordinárias, é errado presumir que uma situação seja especial, única, exclusiva, sem precedentes – extraordinária, enfim.

A despeito do que o dono do número desconhecido que apareceu do nada no seu Zap diz, você muito provavelmente não ganhou uma loteria de bitcoin, não deu sorte de encontrar o terapeuta misterioso que cura câncer harmonizando os chacras e o pastor da sua igreja quase com certeza não é Jesus reencarnado. A sósia da Scarlett Johanson que se apresenta como bilionária no Tinder também talvez não seja quem diz, e nem esteja assim tão apaixonada por você. Coisas ordinárias e normais são, por definição, mais ordinárias e normais do que o incrível, o fantástico, o espetacular. Quando ouvir um galope ao longe, pense em cavalos, não zebras.

 

Navalha de Hume

É uma versão mais específica, ou caso particular, da Navalha de Copérnico. Vem da observação do filósofo escocês David Hume (1711–1776) de que só é racional aceitar o relato de ocorrência de um milagre se o evento descrito for mais provável do que as testemunhas estarem enganadas ou mentindo. Esta navalha combate o viés de credulidade, a tendência natural de todos nós de aceitar como verdadeiro tudo o que nos dizem, mesmo as alegações mais extraordinárias. Ela tem dois gumes: um chama atenção para a possibilidade de nosso informante ser sincero e honesto, mas estar errado – a pessoa enganou-se, iludiu-se ou foi iludida por alguém. O outro, para o risco de estarem deliberadamente mentindo para nós.

Na maioria das vezes, no entanto, esse juiz moral, que muitos consideram incômodo de fazer, é desnecessário. Basta pesar o que é dito e a evidência disponível, contra o que sabemos sobre como mundo funciona, além da experiência histórica: enganos (honestos ou deliberados) acontecem o tempo todo, eventos extraordinários são raros. Às vezes a Navalha de Hume aparece sob a forma alternativa de Navalha de Sagan (em homenagem ao astrônomo Carl Sagan): “alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”.

 

Navalha de Hitchens

Popularizada pelo jornalista britânico Christopher Hitchens (1949-2011), é uma versão ainda mais aguda da Navalha de Hume; um corolário da Navalha de Sagan. A ideia geral pode ser encontrada num antigo provérbio latino, quod gratis asseritur, gratis negatur: o que se pode afirmar gratuitamente, pode-se negar gratuitamente. Ou: quem não oferece boas razões para que aceitemos o que nos diz não tem direito de nos cobrar boas razões quando rejeitamos sua afirmação, tratamo-la como irrelevante ou a ignoramos.

Funciona como um corolário do princípio mais amplo de que o ônus da prova cabe a quem afirma: se alguém diz que existe um porco voador, é responsabilidade dessa pessoa, caso deseje ser levada a sério, apresentar o animal, e não tarefa dos céticos sair testando todos os suínos do Universo para, enfim, provar que a alegação é falsa.

 

Navalha de Churchill

Esta lâmina em particular está, de certa forma, implícita na combinação das anteriores. Ela nos lembra de o que parece bom demais para ser verdade tende a não ser verdade. Dou a ela o nome do primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965) porque o registro mais antigo da expressão “bom demais para ser verdade”, ao menos entre os encontrados pelo “Dicionário de Provérbios Modernos” da Universidade Yale, vem de um livro publicado por Churchill, ainda no início da carreira política, em 1908.

Aqui cabem curas alternativas, golpistas do Tinder, políticos nigerianos exilados, vendedores de bilhete premiado, teólogos da prosperidade e aquele seu ex-colega de faculdade que oferece um investimento “por fora” prometendo pagar juros de 10% ao mês, e em dólar. Formulação alternativa, Navalha de São Tomé: quando a esmola é muita, até santo deve desconfiar.

 

Navalha de Hanlon (ou Heinlein)

Em 1941, a revista de ficção científica americana “Astounding Science Fiction” publicou o conto Logic of Empire, de Robert Heinlein (1907-1988), onde um personagem acusa outro de cometer o erro de “atribuir à vilania condições que simplesmente resultam de idiotice”. Levemente reformulado, o princípio acabou ficando conhecido como Navalha de Heinlein (ou “de Hanlon”, em homenagem a Robert J. Hanlon, que enunciou o mesmo pensamento anos mais tarde, de forma independente): “Nunca atribua à malícia o que pode ser adequadamente explicado por incompetência”. É um bom princípio para evitar cair em espirais de paranoia e conspiração, mas não nos esqueçamos de que o advérbio adequadamente está aí por um motivo.

 

Navalha de Ockham

Deixei por último a mais famosa de todas as “navalhas” heurísticas – aquela que deu origem a todas as demais. Leva o nome do monge franciscano britânico William de Ockham (1285-1349), que a usava com frequência em seus debates teológicos (Ockham era um teólogo com um pé no empirismo. Um argumento seu era que, como a Deus tudo é possível, a única forma de saber se uma coisa existe mesmo, ou não, é por meio da experiência). A formulação mais comum da Navalha assevera que “dada uma série de explicações igualmente satisfatórias para um mesmo fenômeno, a mais simples deve ser preferida” ou, abreviadamente, “a explicação mais simples tem mais chance de estar certa”.

É muito importante nunca perder de vista o que a versão estendida diz com todas as letras e se embaça na abreviada – a exigência de que as explicações em disputa sejam “igualmente satisfatórias”, além da distinção entre “ser preferida” e “estar certa”. Crucialmente, ambas as fórmulas deixam de fora o que se entende por “simplicidade”.

No contexto original de Ockham, “simples” quer dizer “com menos elementos”. A ideia é que, se uma determinada hipótese A (“o frade William sentia com fome”) basta para explicar o evento B (“o frade William comeu a torta”), hipóteses extras (“o frade William estava possuído pelo Demônio”, por exemplo) são ociosas. Ockham escreveu que não se deve presumir como evidente nada que não seja evidente “em si, por experiência ou pela autoridade da Palavra”. Descontando a cláusula religiosa e trocando “experiência” por “experimentos científicos válidos”, temos aí um bom princípio.

Dentro da metodologia científica contemporânea, a Navalha de Ockham lembra que multiplicar entes hipotéticos para explicar um fenômeno tende a agravar, mais do que resolver, o problema: fome é um fato fisiológico estabelecido, conhecido e compreendido. Possessão demoníaca e demônios em geral, nem tanto. Cada nova entidade hipotética evocada para elucidar um fenômeno misterioso agrega um mistério extra, que requer sua própria explicação e justificativa. Não é difícil a bola de neve acabar engolindo quem a botou para rolar de início.

Trazendo a lição para as confusões do cotidiano, a Navalha de Ockham sugere questionar: quantas coisas estranhas teriam de existir, quantos eventos improváveis precisariam ter acontecido, para que a alegação que me fazem agora pudesse ser verdade? Se o efeito placebo e erros metodológicos bastam para explicar os resultados aparentemente positivos de testes de terapias alternativas, postular energias vitais, meridianos, vibrações etéreas, grandes conspirações da indústria farmacêutica etc. é não só desnecessário como introduz complicações supérfluas.

 

Cuidado

Lembre-se de que essas navalhas todas são regras práticas, aproximações heurísticas, cuja utilidade depende de contextos específicos e pode variar muito. Não substituem a avaliação da totalidade da evidência ou uma investigação completa, caso seja possível e o assunto pareça grave o bastante para merecer o esforço. Mal aplicada, por exemplo, a Navalha de Copérnico pode fazer com que emergências reais sejam ignoradas. Todas são vulneráveis a erros de probabilidade condicional, onde um evento é tratado como improvável ou extraordinário quando as circunstâncias específicas indicam o oposto (ou vice-versa).

De qualquer maneira, se usadas com os devidos cuidados, essas navalhas podem cortar fora muito da confusão artificial que tenta se aproveitar da falta de tempo e de informação completa que embaraça muitas de nossas decisões diárias.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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