O pecado original do "jornalismo" criacionista

Apocalipse Now
16 jan 2021
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eva maçã

 

Muito tem sido escrito sobre como o mundo contemporâneo vem se fragmentando em bolhas cognitivas independentes – onde a principal divergência entre diferentes grupos religiosos ou ideológicos deixa de ser como melhor interpretar os fatos, ou como melhor resolver problemas, mas sim a própria natureza dos fatos. O mal disso é que, sem um corpo comum de fatos para embasar nossas conversas, o diálogo – incluído a conversação social e o entendimento democrático – fica inviável.

Há quem veja na ciência e no jornalismo mainstream, aquele que busca comprometer-se com reportagens objetivas e apela para grandes públicos e grandes audiências, os esteios para sustentar esse corpo mínimo de fatos comuns que impede que o mundo degenere numa gritaria onde todos tentam berrar o mais ato possível e ninguém escuta.

Mas a esperança pode ser exagerada: ao longo da última semana, o Jornal da Record – segunda maior audiência em jornalismo da TV aberta brasileira, atrás apenas do Jornal Nacional, da Globo – levou ao ar uma série de “reportagens” para estabelecer as “evidências científicas” da realidade literal do relato bíblico do Livro do Gênese.

A motivação foi comercial (a TV Record está lançando uma novela baseada nos capítulos iniciais da Bíblia), mas o cerne é que o pacto fundamental entre jornalismo científico e público – de que fatos e descobertas da ciência serão apresentados do modo mais claro, honesto e preciso possível – foi quebrado, ali, de forma irremediável.

É verdade que falsos documentários sobre criacionismo ou “mistérios do passado” já eram lugar-comum em vários canais de TV antes da série do Jornal da Record, e a própria Globo, anos atrás, infligiu a seu público o infame filme da autópsia alienígena, mas esses produtos, em geral, já vêm envoltos em suas bolhas cognitivas próprias, ou são embalados como infotainment, “entretenimento com informação”, uma zona cinzenta entre realidade e faz-de-conta. Ao enxertar os “fatos” do criacionismo num telejornal que almeja retratar a realidade tal como é, a Record e seus profissionais cruzam uma linha perigosa.

 

 

Águas e abismos

Para quem espera argumentos originais ou mentiras novas, a série é quase toda uma decepção, embora haja alguns momentos de falso brilho. No geral, ela segue o bê-a-bá do negacionismo científico que já descrevi em outros artigos.

O primeiro episódio, uma espécie de vista geral do criacionismo, apela para a falsa questão da ausência de fósseis transicionais (eles não só existem aos montes, como é possível encontrar sinais de transição na anatomia de espécies atuais, como “dedos” típicos de animais terrestres embutidos nas nadadeiras de baleias) e para a confusão maliciosa entre acaso e seleção natural.

Mais divertida e original é a alegação de que o versículo bíblico “E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Gênese 1:2) é confirmada pela descoberta de moléculas de água a 12 bilhões de anos-luz da Terra. A primeira coisa a notar aí é que o fundamentalismo bíblico não é de todo avesso à leitura metafórica das Escrituras (“face das águas” é literalmente diferente de moléculas espalhadas no espaço). Ele só prefere algumas metáforas em detrimento de outras.

A segunda é que, se vamos levar a astrofísica em consideração, então a “confirmação” de Gênese 1:2 “desmente” Gênese 1:3, “E disse Deus: Haja luz; e houve luz”, porque água requer oxigênio (H2O, lembre-se), e átomos de oxigênio formam-se no interior de estrelas, e estrelas emitem luz. Logo, pela astrofísica é impossível existir água antes de existir luz.

 

Eva mitocondrial

Outro episódio lamentável da serie de, com o perdão da palavra, “reportagens” abusa do conceito de “Eva mitocondrial” para sugerir que a biologia de algum modo confirma a literalidade do segundo relato bíblico da criação. Porque são dois, produzidos por autores diferentes e com detalhes incompatíveis entre si. Há várias pistas que permitem distinguir os diferentes estilos dos autores, mas a mais evidente é que o primeiro relato chama Deus de “Deus”, e o segundo, de “Senhor Deus”.

A versão que aparece primeiro na Bíblia – mas que foi escrita depois, como uma espécie de prefácio –, é a mais poética, compreende os versos (1:1-2:4), e ali a ordem da criação é peixes, aves (quinto dia), animais terrestres (início do sexto dia) e, só depois, a Humanidade (fim do sexto dia). Já no segundo relato (2:5-2:25) o primeiro homem, Adão, é criado antes dos demais animais, e a primeira mulher, Eva, depois deles.

Nada disso deve ser problema para quem encara o texto bíblico como fonte de inspiração moral ou espiritual, ou valoriza os significados metafóricos que podem ser extraídos das narrativas míticas, mas para quem pressupõe que cada verso carrega uma correspondência literal com a verdade histórica, a situação é complicada.

Mas, enfim, “Eva mitocondrial”:  a mitocôndria é estrutura responsável por gerar energia no interior das células humanas e de outros seres vivos. Mitocôndrias têm DNA próprio, distinto do que reside no núcleo celular, e que só passa pela linhagem materna. O DNA das suas mitocôndrias veio da sua mãe, que o recebeu da mãe dela, que o recebeu da sua bisavó, e assim por diante. 

A “Eva mitocondrial” é simplesmente a mulher que está na ponta mais recente da linhagem de mitocôndrias hoje presente em todos os seres humanos. Isso representa não a primeira mulher do mundo, mas uma mulher que teve filhas que tiveram filhas que tiveram filhas... enquanto outras linhagens mitocondriais eram extintas, quando as mulheres que as carregavam morriam sem deixar descendentes do sexo feminino.

Estima-se que a “Eva mitocondrial” viveu há cerca de 150 mil anos. Ela não era a única mulher de sua época: foi apenas a mulher cujas filhas tiveram filhas que tiveram filhas e mais filhas e netas e bisnetas, até aos dias de hoje, sem que a linhagem feminina fosse interrompida. O título de “Eva mitocondrial” muda de dona com o passar do tempo: quando a nossa “Eva mitocondrial” estava viva, milhares de anos atrás, a população da Terra naquela época tinha a sua própria Eva mitocondrial, que havia vivido, provavelmente, milhares de anos antes. Cada uma das várias “Evas mitocondriais” que surgiram ao longo da história (mais exatamente, da pré-história) são ancestrais comuns da Humanidade atual por via materna, mas apenas a ancestral comum mais recente leva o título.

Exatamente por dar margem a confusão (sincera ou de má-fé) com crenças religiosas, a expressão “Eva mitocondrial” foi muito criticada quando introduzida no jargão científico, nos anos 1980.

 

 

Dilúvio

O episódio da série de “reportagens” sobre a exatidão histórico-científica da Bíblia feito para dar conta da Arca e Noé está programado para ir ao ar na segunda-feira, 18, e preciso entregar esta crônica no domingo, 17, então não tenho como comentar diretamente o que será exibido, mas dado o nível geral da série, não espero surpresas ou argumentos novos. Então, apresento a seguir o que a ciência diz – realmente – sobre a hipótese de um dilúvio universal.

 

noah ark

 

O Dilúvio bíblico é um "fanfic" baseado na história, inserida no Épico de Gilgamesh, de Utnaphistim, o homem que sobreviveu ao dilúvio universal provocado pelos deuses e que acabou premiado com a imortalidade. Só para pôr as datas em perspectiva: há versões preservadas do Épico de Gilgamesh que datam de cerca de quatro mil anos atrás. O Livro do Gênese começou a ser composto mais de mil anos depois.

A narrativa bíblica, tal como aparece no capítulo 7 do Gênese, é, assim como o relato da Criação, na verdade uma mistura de versões conflitantes: numa delas, Noé leva um par de cada espécie de animal para a Arca (7:8-9); em outra, ele leva um par de cada espécie "impura", e sete pares de espécies "puras" (7:2), aparentemente para ter uma sobra para realizar sacrifícios.

Também há o problema da duração do dilúvio: o verso 17 diz que foram 40 dias, mas o verso 24 diz que foram 150 dias. De acordo com Robert Alter, autor da tradução comentada The Five Books of Moses, o editor original do texto tentou harmonizar as duas versões, "mas tensões permanecem". Uma interpretação comum da questão 40/150 é a de que teria chovido por 40 dias, mas as águas teriam levado outros 150 (ou 110?) para baixar.

De novo, para quem está concentrado no sentido geral do texto, esses detalhes têm tanta importância quanto a que damos ao ver, num filme, um ator abrir uma porta usando meias brancas e, na cena seguinte, entrar na sala de meias azuis. Para a leitura literal, no entanto, o problema é imenso.

Defensores da veracidade literal do mito de Noé costumam usar duas linhas de argumentação, com poucas variações: uma é afirmar que o registro geológico e fóssil é compatível com a narrativa bíblica (fundamentalistas americanos adoram apontar para o Grande Canyon do Arizona); outra, a de que mitos sobre dilúvios existem por toda parte, em culturas que até pouco tempo atrás nunca haviam tido contato, e uma grande cheia universal seria a melhor explicação para isso.

 

Geologia já!

O apelo à geologia é o mais constrangedor. A ideia, em linhas gerais, é de que todo o registro fóssil, assim como todas as camadas subterrâneas de rochas sedimentares da crosta terrestre teriam sido depositados ao longo dos 150 dias do dilúvio. Começando pelos fósseis: se todas as criaturas foram fossilizadas num mesmo evento, por que nunca vemos elefantes e dinossauros, ou trilobitas e abelhas, juntos, nas mesmas camadas?

Além disso: se toda a matéria fóssil de origem animal que existe hoje nos continentes, incluindo os minúsculos fósseis de animais marinhos achados na terra firme, realmente tivesse estado viva ao mesmo tempo, antes do Dilúvio toda a Terra teria de estar coberta por uma camada de vida animal de quase dois metros de altura.

Os fósseis deveriam ainda estar empilhados não por antiguidade, como estão, mas por flutuabilidade, já que os que boiam melhor deveriam ter ficado por cima. Falando em flutuabilidade, há criacionistas que citam fósseis de criaturas marinhas encontrados em altas montanhas, nos continentes, como sinal de que essas montanhas, um dia, estiveram debaixo d’água. O que é até verdade, mas não do jeito que os literalistas pensam.

Isso acontece porque a crosta terrestre é dinâmica. A Cordilheira do Himalaia é feita de material que estava debaixo do oceano e veio à tona quanto a Índia colidiu com a Ásia, 50 milhões de anos atrás.

Já os diferentes estratos geológicos também deixam evidente que não foram depositados todos ao mesmo tempo. Há, por todo o mundo, rochas sedimentares que mostram sinais claros de terem estado expostas ao ar, ao Sol, à passagem de seres vivos por longos milênios antes de serem cobertas por mais rochas sedimentares, e assim por diante. O que é incompatível com o cronograma de um evento único de sedimentação, que teria durado poucos meses.

A questão do suposto mito universal parece mais sutil, mas não é: o fato é que, ao longo de toda a história (e, podemos supor, pré-história) a maioria das comunidades humanas buscou viver perto de fontes de água, como rios e lagos. Água não só é essencial para matar a sede mas, assim que a civilização começa a surgir, para irrigar plantações e abastecer vilas e cidades. Povos que moram perto de da água correm o risco de ser vítimas de enchentes. Grandes enchentes entram para a história. E viram mitos.

Então, não é que existe um mito universal do Dilúvio: há vários mitos locais. Cada povo que depende de água para existir tem uma boa chance de criar o seu.

 

Abraão

A série do Jornal da Record volta e meia se refere a “arqueologia bíblica”, insinuando que descobertas arqueológicas feitas no Oriente Médio, principalmente na antiga Mesopotâmia, corroboram o relato. É difícil saber até que ponto cada um dos arqueólogos entrevistados está comprometido com essa ideia ou foi citado fora de contexto, mas algumas das principais evidências apresentadas são o fato de “Abraão” ser um nome que realmente aparece em registros mesopotâmicos antigos e o de que os babilônios erguiam torres, os zigurates.

 

Mal comparando, isso é mais ou menos como dizer que, do fato de “Parker” ser um nome usado nos Estados Unidos dos séculos 20 e 21, e do fato de que realmente há bilionários que investem em naves espaciais, podemos deduzir que os filmes dos Vingadores são narrativas plausíveis.

babel

Curiosamente, uma das fases da próxima novela da Record chama-se “Ur dos Caldeus”, expressão que é um dos maiores sinais de anacronismo do Gênese. Segundo a tradição, o livro teria sido escrito por Moisés (que, se existiu, teria vivido por volta de 1500 AEC). Ur seria a cidade de origem do patriarca Abraão.

No tempo em que o Levante se encontrava dividido em dois reinos, Judá e Israel, por volta de 800 AEC, o povo caldeu já era conhecido, mas só atingiu proeminência na região duzentos anos depois, quando dominou a Babilônia. Nos tempos de Abraão (por volta de 2000 AEC) e mais tarde, de Moisés, ninguém tinha ouvido falar neles. Atribuir a expressão "Ur dos Caldeus" a algum contemporâneo de Abraão ou de Moisés é uma gafe comparável a atribuir a Pero Vaz de Caminha um texto no qual o porto de chegada de Cabral é chamado de "Porto Seguro, no estado da Bahia".

Detalhes como este, entre outros, sugerem que o Gênese começou a ser composto – montado, escrito e reescrito a partir de tradições orais e de textos mais antigos tanto de Judá quanto de Israel – em Judá, talvez no século anterior ao reinado de Josias (640–609 AEC), num processo de bricolagem e edição que se estendeu até depois do fim do exilio dos judeus na Babilônia e da restauração do Templo, chegando a sua forma atual por volta de 450 AEC.

O Livro do Gênese começa com a criação do Universo a partir do nada e termina com um funeral – a mumificação de José no Egito (50:26). Visto dessa forma, é como uma metáfora da vida: o Universo não existe para nós enquanto nós mesmos não existimos, e deixamos de existir para ele quando morremos.

Diversas denominações cristãs, como as Igrejas Católica e Anglicana, convivem pacificamente com o fato de que Gênese não é um livro de história ou de ciências, mas um relato mitológico e, para os fiéis, uma fonte de ensinamento moral. Seria de se esperar que o principal programa jornalístico de uma rede de TV aberta tivesse o mesmo tipo de apreço pela realidade – ainda mais quando diz estar comunicando ciência.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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