O mito do “experimento crucial”

Apocalipse Now
6 jun 2020
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boris Karloff

 

Os inúmeros problemas apontados no estudo publicado pela revista Lancet com 90 mil pacientes, e agora já retratado, sobre os benefícios (nenhum) e riscos (consideráveis) do uso de hidroxicloroquina (HCQ) no combate à COVID-19 parece ter convencido muita gente de que a busca pela resposta à questão candente, “será que a HCQ é útil e segura para ser usada na pandemia?”, voltou à estaca zero.

O que é uma conclusão, no mínimo, intrigante. Este estudo removido de The Lancet não nasce num vácuo. Já existe uma boa literatura acumulada sobre o uso de HCQ, com ou sem adjuvantes, em portadores de SARS-CoV-2, pesquisas que, no agregado, mostram uma tendência clara: quanto melhor a qualidade do trabalho, menor o efeito. E sempre há riscos.

O trabalho publicado em The Lancet era só mais um a apontar na mesma direção geral — e esse dado provavelmente explica por que a revisão da revista deixou passar tantas falhas: se alguém lhe diz que viu o Sol nascer a leste, você talvez não tenha o cuidado de perguntar se a bússola estava, afinal, bem calibrada.

Essa ideia — de que a qualidade e os méritos de um estudo muitas vezes não são analisados apenas em si, mas também contra um pano de fundo de expectativas e crenças preexistentes — pode chocar ou preocupar algumas pessoas, incluindo cientistas mais aferrados a uma postura neopositivista ou popperiana (falaremos mais sobre os neopositivistas e Popper em breve). A preocupação é compreensível: muitas vezes, o “pano de fundo” é feito de preconceitos, e em termos ideais é a qualidade objetiva da evidência e da análise, não uma voz fantasmagórica assoprando no fundo da cabeça, que deve falar mais alto quando o assunto é ciência.

Mas nem sempre o pano de fundo é feito de preconceitos ou só, ou predominantemente, de preconceitos. Quando um experimento, aparentemente muito bem conduzido, sugere que partículas viajam mais rápido do que a velocidade da luz, ou que a lei da conservação da energia pode não funcionar, é a voz assoprando no fundo da cabeça dos físicos que diz “peraí, vamos ver isso direito”. O pano de fundo é o que exige evidências extraordinárias para consolidar alegações extraordinárias e que (infelizmente) pode levar pesquisadores a baixar a guarda quando as alegações são, apenas, ordinárias.

 

 

Abstração e idealização

Há cem anos, a filosofia da ciência era dominada por um grupo que ficou conhecido como o dos positivistas lógicos (ou empiristas lógicos, ou neopositivistas). Eram pensadores fascinados pelo sucesso das ciências, principalmente da física, em resolver disputas. Chamava a atenção deles o fato de que cientistas são capazes de resolver polêmicas e formar consensos com relativa rapidez, enquanto disputas filosóficas podem durar milênios. Achavam que havia algo na capacidade científica de eliminar rapidamente ideias ruins que a filosofia poderia assimilar.

Para tentar encontrar esse “algo”, eles adotaram duas chaves. Uma foi a separação entre “contexto de descoberta” e “contexto de justificativa”. “Contexto de descoberta” seriam as circunstâncias do trabalho científico, as forças sociais e econômicas, a vida pessoal do cientista, o modo como ele tem suas ideias — se num sonho, no bar, vendo uma maçã cair ou achando um tubo de ensaio mofado no laboratório. Para os positivistas lógicos, isso tudo era legalzinho, mas irrelevante.

O “contexto de justificativa” era onde as coisas esquentavam: descrevia o processo pelo qual, uma vez formulada, a ideia ou hipótese era defendida, aceita ou descartada. Estabelecido o contexto de justificativa, entrava em ação a segunda chave, a “reconstituição racional” do processo, uma busca pelas estruturas lógicas ideais que guiavam, ou deveriam guiar, a aceitação ou rejeição de uma hipótese ou teoria: o “método científico”, ou a “teoria da confirmação de teorias” por excelência.

Nenhuma “teoria da confirmação” completa, fechada e universal jamais foi produzida (e é improvável que algum dia uma seja), mas a agitação criada pelos positivistas lógicos estimulou Karl Popper (1902-1994), que não era membro da turma mas andava por perto, a desenvolver seu famoso critério de falseabilidade e a promover o que viria a ser o coração da “filosofia da ciência na prática para cientistas”, o método hipotético-dedutivo: observa-se a natureza, formulam-se hipóteses, fazem-se deduções sobre o que deveria acontecer se a hipótese for verdadeira, verifica-se se as coisas previstas realmente acontecem. Se não acontecerem, a hipótese foi falseada e deve ser descartada. Nova hipótese. Repete.

Esse modelo é consistente com o programa neopositivista de um método científico lógico, ideal, universal e abstrato, que exclui considerações sobre o momento psicológico do pesquisador, ou seu estado prévio de crença. Além disso, fica a expectativa de que, se duas ou mais hipóteses competem para explicar um mesmo conjunto de observações, deve ser possível desenhar um experimento crucial, uma espécie de “observação tira-teima”, que será satisfeito por apenas uma das competidoras, eliminado de vez a(s) outra(s).

 

Problemas

A despeito da popularidade perene da atitude lógico-positivista, com “upgrades” popperianos, entre praticantes das ciências físicas e biológicas, o pessoal de humanas meio que decidiu, lá por 1960, que o neopositivismo já tinha dado tudo o que tinha de dar. Havia bons motivos: além da busca por um método científico ideal e universal só levar a becos sem saída, investigações cada vez mais incisivas sobre história da ciência mostravam como o “contexto de descoberta” é, na verdade, profundamente relevante.

Com as viradas sociológica e pós-moderna na reflexão sobre ciência que vieram logo em seguida, dar porrada nos neopositivistas tornou-se uma espécie de esporte universal. Entre os sociólogos da ciência, principalmente, parecia quase falta de educação apresentar uma tese ou livro que não tivesse pelo menos um parágrafo apontando a idiotice dos positivistas lógicos, aqueles bobões, rá-rá-rá.

Mas o mundo gira e o tempo passa. Quando os excessos do “programa forte” da sociologia da ciência — que, basicamente, tentou reduzir todos os problemas do “contexto de justificativa” a questiúnculas dentro do “contexto de descoberta” — e do pós-modernismo ficaram claros, várias contribuições preciosas dos neopositivistas voltaram a ser apreciadas (embora sacaneá-los continue a ser de rigueur em certos círculos acadêmicos menos bem informados).

Se eles estavam exagerando em suas expectativas otimistas sobre o que se pode dizer de relevante sobre a prática científica, uma vez abstraídos os elementos sociais e humanos, o fato é que inúmeras de suas abstrações operam muito bem como ferramentas de análise e clarificação — desde que devidamente temperadas e calibradas por uma dose saudável de contato com a realidade da rua e do laboratório.

Dois pontos reforçados pelos empiristas lógicos, verificação empírica e confirmação experimental, por exemplo, nunca deixaram de ser problemas filosóficos centrais e preocupações fundamentais na prática científica. E é bem difícil encontrar uma boa discussão filosófica sobre o que significa “explicar cientificamente” alguma coisa que não parta do trabalho do último grande empirista lógico, Carl Hempel (1905-1997).

 

 

Ardil e dúvida

A ideia, na verdade uma simplificação grosseira de certo pensamento neopositivista, de que a única forma de realmente dirimir uma disputa científica é por meio de um experimento crucial, despreza o caráter social e consensual da ciência: não é irrazoável que, mesmo na ausência de um resultado cabal e cristalino, a comunidade de especialistas, de posse de uma certa massa de dados, chegue a uma conclusão firme o suficiente para embasar ação efetiva ou alocação de recursos. Essa conclusão será provisória e pode até estar errada, mas isso se aplica a toda a ciência — até mesmo aos resultados de experimentos cruciais.

A demanda pelo experimento crucial, mesmo quando o consenso dos especialistas já está formado ou bem encaminhado, pode ser legítima, mas também pode ser apenas um ardil para gerar uma percepção social artificial de dúvida, criando uma falsa dicotomia entre "certeza absoluta" e "vale tudo". As coisas nunca são assim na vida, e muito menos na ciência.

Em 1969, um executivo de marketing da fabricante de cigarros americana Brown & Williamson, empresa que chegou a ser responsável por marcas como Lucky Strike e Pall Mall, produziu um dos documentos mais infames da história da comunicação da ciência. Hoje em dia, esse memorando faz parte do acervo histórico da Universidade da Califórnia, e pode ser lido aqui. Há vários trechos relevantes, mas destaco os seguintes:

“Defino nosso consumidor com o o público em geral, nosso produto como dúvida, nossa mensagem como verdade (…) Dúvida é nosso produto porque representa a melhor forma de competir com o ‘corpo de fatos’ que existe na mente do público (…) Dúvida também é o limite de nosso ‘produto’. Infelizmente, não podemos nos opor diretamente às forças anti-cigarro e dizer que cigarros contribuem para a saúde. Não temos nenhuma informação que apoie esse alegação”.

 

Essas palavras foram escritas, e a estratégia traçada, mais de uma década depois de consolidado o consenso científico de que fumaça de cigarro causa câncer de pulmão.

A rigor, a questão do uso da HCQ contra COVID-19 nunca requereu um experimento crucial, e a tentativa de enquadrar o estudo retratado de The Lancet nesse papel foi mais um caso de loucura coletiva (ou malícia) do que qualquer outra coisa. Dado o histórico de fracasso das cloroquinas contra outras viroses, a plausibilidade inicial do tratamento já era muito baixa. E os resultados acumulados até agora, mesmo descartando-se o que Lancet publicou e retratou, vão na mesma direção.

Assim como o pessoal da Brown & Williamson em 1969, insinuar falsas dúvidas “é o limite do produto” dos mascates de hidroxicloroquina.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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