Em um dos textos mais importantes para a compreensão do papel e do perigo da irracionalidade na política, The Paranoid Style in American Politics, o historiador Richard Hofstadter oferece a seguinte lição a respeito do modus operandi comum à maioria dos criadores de teorias de conspiração: eles tendem a acumular fatos corretos, evidências sólidas e opiniões sensatas, apenas para usar esse cabedal em apoio a uma conclusão insustentável.
Referindo-se a um tratado escrito em 1797, Provas de uma Conspiração, que buscava ligar uma sociedade secreta, os lluminati da Baviera, à Revolução Francesa, Hofstadter aponta como o autor, “página após página, registra, pacientemente, os detalhes que conseguiu reunir sobre a história dos Illuminati. Então, de repente, a Revolução Francesa aconteceu, e foram os Illuminati que a causaram. O que falta não é informação verídica sobre a organização, mas um julgamento sensato sobre o que causa revoluções”.
Nas palavras de Hofstadter, o urdidor de conspirações imaginárias executa uma “cuidadosa preparação para o grande salto entre o inegável e o inacreditável”.
A defesa da presença das chamadas Práticas Integrativas e Complementares (PICs) no sistema público de saúde talvez não se encaixe muito bem no molde de uma teoria da conspiração – embora a insistência dos defensores das PICs em imputar motivos sinistros a quem contesta tais práticas sugira algo nesse sentido – mas um fenômeno muito semelhante ao “grande salto” de que fala Hofstadter certamente está lá.
Boletim produzido, no semestre passado, pelo Observatório Nacional de Saberes e Práticas Tradicionais, Integrativas e Complementares em Saúde (ObservaPICS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), traz um artigo em defesa da presença de PICs na rede pública, incluindo ataques não muito velados aos críticos da ideia. É meio cômico, aliás, ler no artigo a queixa dos autores de que quem acusa as PICs de pseudocientíficas está se escudando atrás de “jargões”, para depois vê-los jogar, sem o menor senso de ironia, um “iatrogênico” na cara do leitor.
“Iatrogênico”, para quem está se perguntando, significa, literalmente, “causado pelo médico”, e refere-se a doenças, sequelas, etc. O artigo afirma que as terapias alternativas salvam a população da dependência “de produtos e serviços de saúde caros, muitas vezes invasivos e iatrogênicos”.
Não se trata de argumento novo: em seu livro-texto Nature Cures: The History of Alternative Medicine in America, James C. Worthon mostra como a “medicina irregular” (como os tratamentos alternativos eram chamados no início do século 19) era promovida em contraste com a “medicina heroica” (ou ”homicida”, nas palavras de um médico de 1830) da época, baseada em materiais tóxicos, sangrias e outros tratamentos, muitas vezes, mais perigosos do que a doença a ser tratada.
O problema é que o argumento dos “irregulares” não mudou, mas a medicina “regular”, sim. Com a progressiva adoção de procedimentos científicos para a validação de intervenções – processo cujo início é normalmente localizado, por filósofos da ciência, na paulatina aceitação, pela comunidade médica, do trabalho de Ignaz Semmelweis (1818-1865) sobre assepsia – a medicina convencional avançou e mudou bastante.
Enquanto as práticas alternativas mantiveram-se paradas no tempo em suas concepções de vida (força vital), doença (desarmonia da força vital) e cura (reequilíbrio da força vital), a medicina convencional não só abandonou as concepções vitalistas como tomou conhecimento da existência de coisas como bactérias, vírus, vitaminas, antibióticos, DNA.
Mas, voltando: o texto no boletim argumenta que, na atenção à saúde, é preciso considerar “a cultura, os sentimentos e comportamentos, e a expressão pessoal do ser humano adoecido, por entender que este é ao mesmo tempo artífice e produto da cultura, entendida como campo de compartilhamento de conhecimentos, crenças, valores, artes, técnicas, costumes, leis, comportamentos etc.”
Mais ainda: “as PICs, quando tratam do sofrimento localizado, tendem também a estimular a pessoa cuidada a perceber tensões e conflitos relacionáveis aos sintomas físicos que apresenta, e a compreender valores, crenças e comportamentos associados a seu modo de conceber e lidar com questões que impactam a sua saúde”.
Tudo isso soa admirável, sem dúvida. Só falta é explicar como esses objetivos altamente louváveis podem ser atingidos a partir da injeção de um gás tóxico no ânus do paciente, da distribuição de bolinhas de açúcar que fingem ser medicamento, mas são só açúcar mesmo, ou da promoção das ideias pseudocientíficas, reacionárias e racistas de um guru de seita. Refiro-me, pela ordem, à ozonioterapia, à homeopatia e à antroposofia, todas PICs reconhecidas pelo SUS. Aqui, o salto não é nem do inegável para o inacreditável, mas do desejável para o indefensável.
Além desses saltos quânticos (desculpe) no vácuo da razão, a defesa ideológica das PICs se vale ainda de generalizações perigosas. A alegação de que “o adoecimento é também uma forma de exprimir, ou denunciar relações sociais hostis” pode até ser verdade em alguns casos e contextos, mas nem mesmo o mais feliz e bem-ajustado dos cidadãos é imune a todos os vírus e bactérias do planeta, ou está a salvo da loteria genética por trás de muitos tumores malignos e de várias doenças degenerativas.
Essa conversa de que a doença expressa desajustes sociais soa perigosamente próxima, aliás, da velha retórica que busca culpar a vítima por seus problemas de saúde – “foi a incapacidade de perdoar que lhe deu câncer” e coisas do tipo. Vale a pena notar, também, que toda a linha de raciocínio opera no sentido de minimizar a relevância da evidência científica.
Nunca é demais lembrar que, quando se trata de PICs em geral, quanto mais bem desenhado e executado o estudo científico, piores os resultados. O usual é que terapias alternativas reduzam-se a placebos, sempre que investigadas de modo correto e competente. Há algumas raríssimas exceções, quase sempre envolvendo fitoterapia.
O artigo até declara que “as PICs valorizam fortemente estudos científicos, baseados em metodologias de observação sistemática validadas na produção do conhecimento”, mas os atos não parecem seguir as palavras. Para ficar num só exemplo, até mesmo o Centro Nacional de Saúde Complementar e Integrativa dos Estados Unidos considera o reiki inútil, mas a prática está autorizada pelo SUS no Brasil.
Salta aos olhos, aliás, o fato de o boletim sobre PICs desse grupo da Fiocruz chamar-se EVIDÊNCIAS mas, a rigor, não apresentar nenhuma: a publicação apenas menciona uma tese de doutorado sobre auriculoterapia (variação da acupuntura aplicada apenas nas orelhas), mas sem descrição de método, aprofundamento ou discussão de resultados.
Por mais prementes que sejam os problemas (sociais, emocionais, psicológicos, etc.) que se buscam minimizar com as PICs, restam em aberto questões como: por que PICs? E por que estas, e não outras? O que, exatamente, torna ayurveda melhor do que a astrologia ou do que o diagnóstico baseado na leitura de borras de café ou folhas de chá? Ou por que qualquer "alternativa" seria preferível a uma intervenção baseada em evidências, como atividades físicas recomendadas por um profissional da área?
Em 2015, a médica homeopata alemã Natalie Grams publicou o livro Homeopathy Reconsidered: What Really Helps Patients, em que sugere que a homeopatia, se e quando ajuda o paciente, opera como uma modalidade de terapia holística, facilitada pela forma da consulta e da anamnese homeopática.
“Essa noção de uma abordagem holística distingue a homeopatia da medicina científica, que põe os sintomas físicos em primeiro plano, e da psicoterapia, que focaliza os problemas emocionais. A abordagem holística obviamente torna a homeopatia interessante para muitos pacientes”, escreve a autora. Grams reconhece, porém, que a parte física da homeopatia não passa de fantasia pseudocientífica.
É bem possível que muitas das pessoas que defendem as PICs em termos político-ideológicos – em vez de serem entusiastas desta ou daquela terapia específica – encarem todo o campo da mesma forma: como uma fonte do tipo de atenção humanizada, global, que muitas vezes falta nas consultas médicas usuais, qualidade que Grams detectou na prática homeopática.
Mas, se o problema é esse, a solução não é usar fantasia pseudocientífica para empurrar atenção psicológica e emocional, e sim incorporar a atenção psicológica e emocional aos tratamentos de eficácia comprovada. O pesquisador alemão, radicado na Inglaterra, Edzard Ernst, quando esteve no Brasil, já havia apontado que a medicina alternativa joga nos pontos cegos da medicina científica.
“Generosidade com tempo e atenção pessoal tem sido um ponto forte da medicina alternativa ao longo de toda a história”, afirma Worthon em Nature Cures. Os proponentes da “cura pela natureza” do século 19 também insistiam na importância da dieta adequada, do repouso e do exercício físico. Tudo isso já está, ou deveria estar, no repertório da medicina convencional. Nenhuma PIC é necessária.
E a promoção das PICs também tem vários pontos cegos, que são especialmente graves. O primeiro, já citado aqui, é o desprezo pela qualidade da evidência científica.
O segundo, que tem ligação estreita com o primeiro, é o fato de a defesa em bloco das PICS fazer vista grossa para os efeitos nocivos da bagagem ideológica e pseudocientífica embutida na maioria das ditas terapias alternativas. Há sistemas incorporados ao SUS que se baseiam em doutrinas que rejeitam vacinas, ou que pregam que certas doenças são causadas por comportamentos adotados em supostas “vidas passadas”.
Worthon registra a ferrenha rejeição dos “médicos irregulares” do século 19 à ideia de que doenças poderiam ter causas externas ao paciente, como micro-organismos. Os primeiros osteopatas afirmavam que a presença de germes não é causa, mas sintoma do problema de saúde, ideia que reaparece, cerca de um século mais tarde, no negacionismo pseudocientífico da relação entre HIV e aids.
Internacionalmente, há pesquisas que mostram que a adesão a PICs tende a levar ao adiamento ou abandono de tratamentos sérios para doenças graves, como o câncer. Estudo recente, realizado na Tailânda, mostra que o uso de terapias alternativas leva pacientes a adiarem o início do tratamento oncológico adequado em quase dois meses. Nesse aspecto, a alegação de que as PICs complementam, e não substituem ou interferem com as opções científicas, soa mais como sonho do que realidade.
Outro ponto cego – mencionado, com propriedade, no relatório da Alta Autoridade de Saúde da França que recomendou o fim do subsídio à homeopatia no país – é a medicalização exagerada das agruras normais da vida.
Ninguém (espera-se) vai tomar antibiótico para curar uma dor-de-cotovelo de fim de namoro, mas bolinhas homeopáticas ou gotinhas florais são outra história. No fim, uma estratégia pensada sob o pretexto de “empoderar” o paciente acaba apenas fragilizando-o ainda mais, gerando expectativas e dependências de natureza quase supersticiosa.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência