Quase tudo é possível, nem tudo é verdade

12 dez 2020
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Alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias” é talvez o maior clichê do movimento cético, empatado com “correlação não implica causação”. Muita gente, porém — de filósofos sérios a charlatões cínicos —, disputa essa ideia, principalmente porque “extraordinário” parece um conceito vago demais, talvez até subjetivo. Uma demonstração de equilíbrio e agilidade que é extraordinária para mim pode ser tediosa rotina para um artista de circo.

Por isso, há quem desconfie que “extraordinário” é algo que o cético malandro saca do bolso toda vez que resolve implicar com alguma coisa.

À primeira vista, parece uma objeção que tem lá seu mérito. E não há como negar que às vezes o rótulo é mesmo mal aplicado. Mas basta um pouco mais de reflexão para perceber que, se o conceito não é perfeitamente bem definido, não é arbitrário, também. Um exemplo: se a palavra de meu amigo é boa suficiente para eu acreditar quando ele me diz que tomou um ônibus, por que não seria quando ele me diz que foi abduzido por um disco voador? Mas o fato é que qualquer um, cético ou não, tende a aceitar o passeio de ônibus sem piscar, mas a surpreender-se com a abdução — e pedir mais detalhes. Por quê?

Ora, porque andar de ônibus é um evento comum, corriqueiro, ordinário. E alguém ser capturado por alienígenas é algo que, se de fato acontece, é extremamente incomum — EXTRAordinário. A frequência com que o evento ocorre, ou imaginamos que ocorra, é, portanto, um indicador. Mas não é o único: podemos refinar isso introduzindo os conceitos de possível, plausível e provável.

 

 

Possível

“Possível” é uma categoria ao mesmo tempo simples e enganosa — de fato, enganosa por causa de sua própria simplicidade. Indo direto ao ponto, tudo o que não é proibido pelas leis da lógica, tudo que não implique uma contradição cabal e insanável, é possível. Mesmo coisas que violem as leis da física talvez sejam, em tese, possíveis, se, por exemplo, nossa compreensão dessas leis for incompleta ou inadequada.

Isso faz com que o universo das coisas impossíveis seja infinito e, também, muito limitado.

Infinito porque é extremamente fácil multiplicar contradições ad nauseam, como bípedes de quatro patas, triângulos quadrados, números ímpares divisíveis por dois e coisas assim. Antes que alguém pergunte, “infinito limitado” não é uma dessas contradições: o número de pontos dentro de um círculo é infinito, mas limitado pelas bordas da figura.

A infinidade de impossibilidades é limitada por ser, exceto em condições muito específicas, extremamente desinteressante: é uma caixa repleta de brinquedos com que ninguém quer brincar. Para que serviria um triângulo quadrado, afinal, ou um múltiplo ímpar de dez?

O universo das coisas possíveis também é infinito, e é por isso que nos engana: tendemos a imaginá-lo como diminuto. Confrontada com a pergunta, “mas isso não seria possível?”, uma pessoa criativa logo imagina um cenário rocambolesco em que, sim, 99% dos climatologistas do mundo estão mancomunados para acabar com a indústria petrolífera, ou a Nasa forjou o pouso do módulo Águia na Lua.

O julgamento de possibilidade é insuficiente. Se o simples fato de algo ser possível faz com que pareça também razoável, é porque provavelmente estamos confundindo o possível com o plausível.

 

 

Plausível

Imagine que você é uma pessoa que gosta muito de séries de TV, mora sozinha e não tem filhos. Um belo dia, ao chegar em casa, ouve um som que lembra o choro de uma criança vindo do outro lado da porta. Qual a primeira ideia que lhe vem à cabeça — “Alguém arrombou meu apartamento, largou um bebê para trás e trancou a porta ao sair!”, ou “Putz, acho que esqueci a televisão ligada quando saí”?

Ambas as hipóteses são, em princípio, possíveis, e até que você entre no apartamento e veja qual a situação real com seus próprios olhos, a escolha entre elas representa um juízo de plausibilidade (que, imagino, deve pender a favor da TV ligada). Decidimos o que nos parece mais ou menos plausível com base em nosso conhecimento de fundo, em nossa experiência de vida — enfim, em todo o cabedal de informação pré-existente que trazemos para a análise da situação. Quanto menos uma hipótese contradisser o que já sabemos a respeito do mundo e o que nos acostumamos a esperar dele, mais plausível ela é.

Julgamentos de plausibilidade estão entre os mais vulneráveis a vieses cognitivos e preconceitos de todo tipo (um condutor machista pode achar mais plausível que o motorista ruim à frente seja uma mulher; uma pessoa muito religiosa pode achar um milagre de cura mais plausível do que uma remissão espontânea). Por isso, há quem considere esses juízos irremediavelmente comprometidos por subjetividade, e sem lugar em avaliações que se pretendem científicas.

Mas como o exemplo do bebê chorando (e o da abdução alienígena) sugere, existem julgamentos de plausibilidade com boas bases objetivas. Nesse caso específico, que bases são essas? Cito uma: simplicidade. Quantos eventos diferentes precisariam ter acontecido para que houvesse um bebê real no apartamento, incluindo o arrombamento da porta? Já para esquecer a TV ligada, basta um: esquecer a TV ligada.

Juízos de plausibilidade não precisam ser baseados apenas na vivência individual ou de pequenos grupos (família, igreja). Podem (e devem) ser temperados pelo melhor conhecimento acumulado pela Humanidade — pela ciência, enfim.

A avaliação da consistência com as leis da natureza e com fatos científicos bem estabelecidos é o tribunal decisivo para conceder a uma hipótese alguma plausibilidade mínima: hipóteses que implicam negações da conservação da energia, da lei da gravidade, do heliocentrismo ou, para trazer a questão mais para perto, os resultados de testes clínicos bem conduzidos, devem ser consideradas altamente implausíveis.

 

Provável

Nem tudo que é possível é plausível, e nem tudo que é plausível é provável. Probabilidade é conceito complicado — assim como “tempo”, todo mundo sabe o que probabilidade é, até a hora em que se pede uma definição clara, e aí começamos a gaguejar —, mas no geral pode-se dizer que a ideia de probabilidade abarca uma medida de frequência (retomando um tema que já apareceu lá em cima) e uma de estado de crença.

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Frequência é a face mais objetiva: consideramos mais prováveis as coisas que vemos acontecer mais vezes. Se eu lhe digo que um carro de marca italiana acaba de virar a esquina na Avenida Paulista, você talvez imagine que é mais provável que fosse um Fiat do que uma Ferrari, porque Fiats passam pela Paulista com maior frequência do que Ferraris.

Mas repare que essa constatação objetiva de frequência reflete-se num estado subjetivo de crença: como Fiats são mais comuns (fato objetivo) você acredita (estado subjetivo) que foi um Fiat que virou a esquina. Mas e se eu acrescentar que o carro era vermelho, baixo, esportivo e tinha um cavalo empinado desenhado no para-choque?

Probabilidades subjetivas — nossas intuições e juízos a respeito do que é mais ou menos provável — são constantemente atualizadas de acordo com novas informações e evidências. Assim, dado um universo de possibilidades que, frente ao conhecimento de fundo, à experiência de vida e às leis da natureza, são todas igualmente plausíveis, a mais provável será a que tiver mais apoio na evidência disponível.

 

 

Evidência

O último elo na cadeia, a evidência, muitas vezes é tratado como suficiente em si — autoexplicativo. A evidência é a evidência, incontroversa, fala por si mesma. E às vezes é mesmo assim: ver uma bola que, sob iluminação natural, é vermelha é evidência de que a bola é vermelha, ponto. Mas, por trás desse salto, existe uma lógica, as razões que nos levam a considerar a evidência pertinente ao caso. Se lhe disser que a bola vermelha é evidência de que a Terra é plana, você tem todo o direito de me pedir explicações.

Considerações sobre a relevância de cada peça de evidência levam-nos de volta aos campos da plausibilidade e da probabilidade. Alguém aqui pode ficar preocupado com o risco de a empreitada toda ser circular: sabemos que o céu é azul porque olhamos para ele, e sabemos que podemos confiar em nossos olhos porque, quando olhamos para o céu, ele é azul — mas não é o caso.

A circularidade é evitada quando as considerações de plausibilidade e probabilidade da hipótese têm bases empíricas independentes das que entram em jogo na avaliação da evidência.

Soa complicado, mas não é. Sabemos que a Terra gira em torno do Sol por causa de observações feitas por telescópios, e sabemos que podemos confiar nos telescópios por causa das leis ópticas de refração e reflexão da luz, que não têm nada a ver com o movimento da Terra. As bases, portanto, são independentes e a lógica que torna a evidência pertinente à hipótese não é circular.

Mas, já que estamos falando de círculos, voltemos ao início: “Alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias” pode ser traduzido assim: para aumentar o estado subjetivo de crença em hipóteses de baixíssima plausibilidade, precisamos de evidências que tenham plausibilidade, probabilidade e relevância extremas.

Para dar um exemplo concreto, vamos imaginar um paciente que atribui o fato de ter sofrido apenas sintomas leves de COVID-19 ao “kit preventivo” preconizado pelo Ministério da Saúde (cuja absoluta implausibilidade  já foi discutida aqui). A hipótese é de que o kit salvou o paciente de complicações; a evidência é o paciente ter usado o kit, e não ter sofrido complicações.

Temos o paciente saudável diante de nós, com ótimos resultados em todos os exames. Temos testemunhas confiáveis dizendo que ele tomou todos os remédios do kit, seguindo as instruções do Ministério da Saúde à risca. Nesse aspecto, a evidência é mais do que plausível e provável, é um fato certo e consumado.

Mas e a relevância? Aí o argumento desmorona: não só a imensa maioria das pessoas que contrai COVID-19 se recupera sem sofrer grandes complicações, não importa o que tenham tomado (retornando mais uma vez ao início, correlação não é causa), como qualquer atribuição de benefício ao kit contradiz os resultados de testes clínicos bem conduzidos, o que torna a suposta conexão lógica entre evidência e hipótese ainda menos plausível do que já era. Veredicto: a evidência é real mas inválida, porque irrelevante e porque sua conexão com a hipótese é implausível.

Na maior parte do tempo, conduzimos juízos assim em bem menos tempo do que o que você levou para ler este artigo. São mecanismos automáticos, inconscientes, forjados pela evolução e pela experiência, cheios de atalhos e saltos intuitivos que funcionam muito bem — até que não.

Num mundo saturado de discursos persuasivos baseados em mentiras deslavadas e meias-verdades, cada vez mais vale a pena tentar processar o que nos chega com forte apelo emocional de modo mais deliberado e consciente. Melhor gastar energia antes, pensando direito, do que desperdiçá-la depois, lutando por causas indignas.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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