Quando questionados sobre nossa principal característica como seres humanos, uma resposta tradicional envolve a racionalidade que nos distanciaria das outras formas de vida e explicaria os avanços promovidos pelos seres humanos, garantindo também expectativas confiáveis de progresso. No entanto, essa pretensão de sermos “animais racionais”, ou “criaturas especiais” agraciadas com “discernimento” e “sensatez”, encontra dificuldades de se manter quando observamos o nosso cotidiano e a nossa História. Temos dificuldades em avaliar circunstâncias simples, compreender riscos básicos ou pensar em termos de um prazo mais longo. Racionalidade e irracionalidade se misturam em nossas ações, juntamente com dificuldades de regulação de nossos comportamentos. Emoções e os sentimentos trazem mais um elemento de complexidade para o cenário, o que nos leva a ter mais dúvidas sobre a “razão”. Tudo isso traz implicações para a nossa convivência e para a saúde, além das constantes tensões na nossa relação com o meio ambiente.
A historiadora Barbara Tuchman (1912-1989) listou uma série de enganos e “limitações da racionalidade” envolvidos em episódios históricos num livro com o descritivo título de A Marcha da Insensatez (1984). Tuchman descreve como líderes políticos e militares, tomando decisões questionáveis, impactaram a vida de milhares de pessoas, que muitas vezes apoiaram suas decisões. São ações pautadas não apenas por visões limitadas dos cenários e perspectivas, mas também contraditórias e irrefletidas. Uma citação do livro contempla bem as expectativas da autora sobre a racionalidade humana, principalmente dentro dos contextos políticos:
“A ausência de pensamento inteligente no exercício do poder é outro dado universal, que levanta a questão de a que ponto, nos Estados modernos, há algo na vida política e burocrática que reduz o funcionamento do intelecto em favor de ‘manejar as alavancas’ sem considerar as expectativas racionais. Isso parece ser uma prospectiva que se mantém”.
Racionalizações, sentimentos, ódios, raiva, medos, egoísmos, entre outros traços fundamentalmente humanos, contribuíram para a efetivação de péssimas decisões identificadas, por muitos em algum momento, como “racionais”. Parece difícil que as expectativas de racionalidade se mantenham quando acompanhamos esses relatos. Nesse contexto, estudos contemporâneos sobre a cognição humana têm compreendido e problematizado as limitações da racionalidade, que podem nos ajudar a compreender melhor a “insensatez” cotidiana e histórica. Tais investigações buscam entender como operam em conjunto a atenção, a percepção, a memória, o raciocínio, a capacidade de resposta a problemas e outras tarefas ligadas ao pensamento, dentro de contextos que envolvem a cognição, as emoções e os ambientes.
Se não somos plenamente racionais, também não é o caso de sermos completamente irracionais. Os diversos recursos sociais e técnico-científicos criados pela Humanidade, construídos a partir de nossas características naturais, garantem melhorias na nossa existência que são consideráveis, apesar das tensões envolvidas. O ponto relevante das investigações atuais sobre a racionalidade e a cognição é evidenciar as limitações e dificuldades da capacidade racional, com o objetivo de contribuir para uma compreensão mais precisa daquilo que somos.
O pesquisador, médico e professor Ramon Cosenza contribui para esse trabalho ao listar e analisar muitas dessas pesquisas e investigações em Por que não somos racionais: Como o cérebro faz escolhas e toma decisões. Trata-se de um livro informativo e compacto, publicado em 2016, que cita e interpreta diversos aspectos do debate que são importantes e necessários.
Partindo de dados e informações vindos das ciências biológicas, das neurociências, da psicologia cognitiva e comportamental, além de dialogar com questões filosóficas e sociais, Cosenza apresenta um panorama geral bem organizado acerca do estado da pesquisa sobre a racionalidade humana e seus limites.
O livro começa apresentando as origens evolutivas do cérebro e suas funções, que fomentam dois tipos diferentes de processos cognitivos. São identificados como “Tipo 1”, uma forma de cognição rápida e dinâmica, reativa e pouco analítica, e “Tipo 2”, que exerce o trabalho cognitivo de análise mais detida, que envolve reflexão mais ampla. Esses dois tipos de cognição (“o pensar rápido” e o “pensar devagar”, para usar a distinção do psicólogo Daniel Kahneman) são fundamentais para a nossa sobrevivência, e atuam a todo momento para que possamos compreender a realidade. São as origens de nossas amplas capacidades de entendimento, mas que nos tornam vulneráveis para a insensatez e o engano.
Cosenza aborda também os “vieses cognitivos”, tendências humanas originadas da maneira como a informação se organiza em nosso cérebro. Entre eles, o viés da disponibilidade, que nos faz analisar erroneamente probabilidades e riscos, e o viés da confirmação, que faz com que questionemos pouco as nossas certezas, aceitando apenas informações que as confirmem. O autor também trata das tensões entre os processamentos cognitivos e a força de vontade das pessoas, um conflito que define aspectos importantes da nossa condição.
Um exemplo é a questão da boa alimentação e do exercício físico: sabemos precisamos de ambos. No entanto, temos dificuldade em implementar mudanças em nossas rotinas. Também são abordados alguns processos automáticos da cognição, como a aversão à perda, a categorização, o conformismo e a grupalização, entre outros. Uma forma de ampliar as possibilidades da racionalidade é aprender técnicas de probabilidade e pensamento lógico, que estimulam as capacidades mais analíticas e reflexivas. Processos educacionais aqui servem como exemplo, uma vez que estimulam os agentes a desenvolverem o pensamento crítico e analítico, limitando a atuação de tendências inatas e vieses.
Na sequência, Cosenza promove uma aproximação mais direta com as ciências sociais e a filosofia. Mostra como a neurobiologia atua de diversas maneiras, destacando a hipótese do “marcador somático” desenvolvida pelo neurocientista português António Damásio. Segundo essa hipótese, nossos juízos racionais estão diretamente conectados a mecanismos emocionais e circunstâncias ambientais, questionando assim a concepção tradicional de uma razão “livre”, que faz juízos claros sobre a realidade. Esse traço é fundamental para compreendermos as dificuldades e limitações dos processos racionais.
No seu diálogo com a filosofia, o autor trata da questão da liberdade humana: se nossa cognição está envolvida por tendências, vieses, contextos e emoções, além de elementos para os quais nos mantemos inconscientes, como nos considerar livres? Cosenza defende a existência de processos conscientes de deliberação e veto, que trazem um grau de liberdade para o agente. Também possuímos capacidades de avaliação e análise de longo prazo, que podem promover alterações comportamentais, por mais que tendências e vieses também estejam em ação. Além disso, o processamento consciente contribui para a análise de dados e elaboração de explicações de fenômenos.
Por fim, Cosenza oferece algumas conclusões sobre os limites e as possibilidades da racionalidade. Um passo inicial envolve o reconhecimento desses limites. Isso deveria nos tornar um pouco mais humildes. Não se trata aqui de um ceticismo extremo, mas de uma abertura para fatos e raciocínios que podem estimular reflexões e questionamentos. Outra sugestão do autor envolve a educação de jovens. Cosenza defende que os processos educacionais devem envolver o estímulo ao raciocínio lógico e crítico, juntamente com o treinamento para a reflexão mais detida de circunstâncias e fenômenos.
Por que não somos racionais: Como o cérebro faz escolhas e toma decisões é uma leitura estimulante, que dialoga com diversas áreas de pesquisa, levantando questões importantes acerca do que somos e como vivemos. Como um livro de ciências bem estruturado, não oferece a palavra final sobre nenhum dos temas que aborda, mas levanta reflexões importantes, gerando mais dúvidas do que dogmas. Esse conjunto coerente nos faz pensar e muito sobre o papel (e o risco) das certezas em nossas vidas, e sobre os limites de nosso próprio modo de compreensão da realidade. Esse reconhecimento é fundamental, para que possamos evitar mais marchas de insensatez, por mais desafiador que isso seja.
José Costa Júnior é professor de Filosofia e Ciências Sociais do Instituto Federal de Minas Gerais, no Campus Ponte Nova
REFERÊNCIAS
COSENZA, Ramon. Por que não somos racionais: Como o cérebro faz escolhas e toma decisões. Porto Alegre: Artmed, 2016.
TUCHMAN, Barbara. A Marcha da Insensatez: De Tróia ao Vietnã. Tradução de Carlos de Oliveira Gomes. Rio de Janeiro: Agir, 1985. (1984)