Passada as festas de fim de ano, tenho certeza de que muitos dos que acompanham a RQC viveram situações como o reencontro com aquele tio bolsonarista que jura de pés juntos que as urnas foram fraudadas ou, ainda, a presença de um familiar que acreditou veementemente que o prêmio da Mega da Virada só não veio porque alguém não estava vibrando na frequência da abundância.
Mas a verdadeira razão por trás deste artigo foi uma discussão acalorada que tive sobre a eficácia de um composto para repelir mosquitos. De acordo com meu interlocutor, se você utilizar um suplemento de tiamina (também conhecida como “vitamina B1”), os mosquitos podem até pousar na sua pele, mas sem picar. Como todo chato, apontei que experiências anedóticas não têm validade científica e que podem existir outros fatores que contribuem para o resultado de não ser picado.
Continuamos nisso por 30 minutos e chegamos à conclusão de que nenhum dos dois havia lido, ou nem sequer buscado, estudos ou livros que abordassem a questão. Decidi, portanto, buscar artigos que estudassem a relação por trás do mito – sim, isso é um spoiler; o suposto “poder” da B1 contra mosquitos é só isso, um mito.
Afinal, o que é tiamina?
A tiamina é uma vitamina hidrossolúvel (solúvel em água) que auxilia na produção de energia e no metabolismo. Além disso, desempenha um papel importante na saúde do cérebro. A falta de vitamina B1 causa beribéri, uma doença descrita há mais de mil anos e cuja ligação com deficiências nutricionais foi estabelecida no século 19. O beribéri aparece em duas formas. O beribéri úmido é caracterizado por afetar o sistema cardiovascular, enquanto o beribéri seco é marcado pela degeneração dos nervos periféricos, ocasionando enfraquecimento dos músculos.
E, antes que alguém pergunte, respondo de antemão: você não precisa e nem deve suplementar a vitamina B1 só porque o “coach” de bem-estar falou que é bom. Esta vitamina – como quase todas as do complexo B – está presente em uma grande variedade de alimentos, como ovos, vegetais folhosos de coloração verde-escuro, grãos integrais, carnes, fígados, entre outros. A melhor fonte dessas vitaminas é uma alimentação equilibrada e diversificada.
Mas e o mosquito?
Sendo leigo no assunto, minha primeira ideia sobre quem recebe mais ou menos picadas de mosquito baseava-se em um ditado comum que afirmava que pessoas com “sangue doce” eram mais suscetíveis – obviamente, estava enganado.
Então, encontrei o livro “O Fantástico mundo dos mosquitos”, de autoria de Lorenz, C.; Virginio, F. e Breviglieri, E. Nele, os autores afirmam que diferentes espécies de mosquito reagem a estímulos diferentes. Entretanto, apontam que existem alguns atrativos que podem transformar alguém em um verdadeiro chamariz. Por exemplo, emitir uma maior quantidade de dióxido de carbono (CO2), muito comum quando você está se exercitando ou em alguma outra atividade que necessite de uma respiração acelerada; utilizar fragrâncias florais ou frutadas; apresentar uma temperatura de pele mais elevada, pois muitos mosquitos são atraídos para zonas do corpo que liberam calor; elevada umidade, já que muitos mosquitos são atraídos pela transpiração; e, por último, a utilização de roupas escuras que, além de reter calor, atraem os mosquitos por serem locais escuros onde eles são menos visíveis.
Entretanto, isso não explica o porquê de algumas pessoas serem mais mordidas do que outras. Para nos auxiliar nessa questão, Ellwanger, J.; Cardoso, J. e Chies, J. publicaram o artigo “Variability in human attractiveness to mosquitoes” (2021). De acordo com os autores, mosquitos antropofílicos (que se alimentam, preferencialmente, de humanos) utilizam a umidade, o calor, e estímulos visuais e olfatórios para guiar seu voo, pouso e para encontrar comida.
Além disso, essa espécie consegue detectar cairomônios: substâncias ou sinais químicos que mediam a interação entre espécies diferentes, beneficiando apenas o receptor. Entre os cairomônios da relação humano-mosquito estão dióxido de carbono, ácido lático, acetona e amônia, que ajudam os mosquitos a detectar seres humanos e diferenciá-los de outros animais.
Apesar de todos os seres humanos produzirem cairomônios semelhantes, a quantidade exalada pela pele pode variar de indivíduo para indivíduo. Por exemplo, a taxa de liberação de CO2 é influenciada pela massa corporal, pelo metabolismo e pela atividade respiratória.
Fatores que influenciam a decisão dos mosquitos de atacar esta ou aquela pessoa incluem a intensidade da variação de cairomônios de uma pessoa para outra, a distância entre cada ser humano e os mosquitos e as condições atmosféricas e ambientais, que interferem na dispersão dos sinais químicos atrativos para os mosquitos. Além disso, diferentes espécies de mosquito podem ter diferentes preferências e níveis de agressividade.
Os autores concluem que a susceptibilidade humana aos mosquitos é influenciada por características ambientais, fatores relacionados aos mosquitos e condições e características referentes aos humanos, incluindo, talvez, componentes da dieta. A importância de cada um desses fatores será maior ou menor dependendo de cada contexto específico.
E a tiamina?
Basicamente, esse mito nasceu com o artigo "Thiamin Chloridean Aid in the Solution of the Mosquito Problem", de autoria do médico Shannon, W. no ano de 1943.
O autor compilou 10 relatos de caso nos quais ele mesmo administrou altas doses de cloridrato de tiamina para pacientes que sofriam tanto de coceira ocasionada pelas picadas quanto da incidência de picadas. Realizando uma tradução livre, trago para vocês algumas pérolas envolvidas nos relatos publicados.
Caso 3: “Uma mulher adulta não conseguia sair à noite para o seu quintal por conta dos mosquitos. Semelhante a outros casos, eles pareciam voar ao redor dela, picá-la ferozmente e envenená-la. Administrou-se 120mg durante o seu trabalho matutino no escritório. Naquela noite, ela conseguiu trabalhar em seu jardim até ficar escuro e sem receber uma única picada. Ao utilizar altas dosagens da vitamina, ela não foi incomodada o verão inteiro pelos mosquitos. Quando eles começavam a irritá-la, ela utilizava 80mg por dia durante uma semana e, logo em seguida, diminuía a dosagem para 10mg ao dia. Os mosquitos não se aproximavam dela e, por conta disso, ela acabou negligenciando a ingestão da tiamina por dois ou três dias. Nesse tempo, os mosquitos voltaram a importuná-la, obrigando-a a utilizar, novamente, 80mg por dia, os mosquitos pararam de incomodá-la desde então”.
Caso 8: “Uma garota de sete anos não conseguia nadar no lago próximo de onde morava por conta dos mosquitos. Ela apresentava inúmeras lesões típicas de picadas de mosquito. Receitou-se 80mg de cloridrato de tiamina naquele dia e 10mg no dia seguinte. Dois meses depois, a mãe afirmou que a paciente havia conseguido nadar todos os dias no lago sem problemas com os mosquitos”.
Shannon conclui daí que o cloridrato de tiamina, quando administrado na dosagem adequada, tanto por via oral quanto por injeção, seria capaz de reduzir o risco de picadas de mosquito por meio de três caminhos: primeiro, pelo efeito repelente, que diminui ou elimina a aproximação do mosquito; segundo, combatendo quase totalmente a coceira usual após a mordida; e, terceiro, minimizando e prevenindo a formação de lesões .
O artigo de Shannon tem fragilidades gritantes, ao tirar conclusões firmes de casos isolados e, talvez pior, basear-se na administração de dosagens extremamente altas do cloridrato de tiamina sem nenhuma aparente preocupação com possíveis efeitos adversos..
A despeito de tantas limitações, a proposta de Shannon segue influente, tanto entre o público quanto naqueles – supostamente – letrados em ciência.
Isso ficou claro no estudo de Heslop, I. et al (2020), intitulado “Assessing the Travel Health Knowledge of Australian Pharmacists”. Os autores fizeram uma pesquisa com farmacêuticos australianos, por meio de um questionário de autopreenchimento online e pelo correio, com o intuito de avaliar o conhecimento desses profissionais sobre o tema “saúde nas viagens”. As questões tratavam de causas comuns de problemas de saúde ou morte em viajantes, as causas e o manejo de diarreia em viajantes, a seleção apropriada de vacinas, profilaxia para malária e itens de primeiros socorros. Ao todo, 208 farmacêuticos completaram a avaliação.
Embora a pesquisa tenha obtido resultados interessantíssimos, o único dado a que darei destaque é referente à questão “Em relação à prevenção da malária, os participantes devem selecionar a afirmação incorreta”. Neste, apenas 56 participantes (27% da amostra) optaram por “A vitamina B1 oral não é efetiva em diminuir as mordidas de mosquitos”.
Evidência negativa
Há estudos que desmentem o possível efeito protetivo da Vitamina B1, como é o caso de “Testing Vitamin B as a Home Remedy Against Mosquitoes” de autoria de Ives, A. e Paskewitz, S. (2005), publicado no Journal oft he American Mosquito Control Association. Os autores descrevem dois experimentos.
No primeiro, os autores conduziram um ensaio clínico do tipo crossover (um mesmo participante recebe, em momentos diferentes, a intervenção e o placebo) com 23 voluntários e que perdurou por 4 semanas. Antes de serem alocados em um dos grupos, os participantes passaram por uma análise de atratividade para os mosquitos – infelizmente, não há registro do que foi medido. Posteriormente, foram divididos em dois grupos: o grupo tratamento recebeu pílulas de complexo B com vitamina C, enquanto o grupo placebo recebeu apenas vitamina C. Vale ressaltar que, para cegá-los, as pílulas não apresentaram identificação.
Ao final da quarta semana, pediu-se que cada participante esfregasse um frasco de vidro entre as mãos por dois minutos. Em seguida, o frasco foi transferido para uma caixa de papelão contendo 28-32 mosquitos fêmeas da espécie Anopheles stephensi, com idade de 5 a 7 dias. Os pesquisadores contaram o número de mosquitos que pousou no frasco de vidro durante dois minutos.
Como resultado, verificou-se que o número de pousos foi influenciado tanto pelo voluntário que havia manipulado o frasco quanto pela data do teste. Todavia, o tratamento com vitaminas do complexo B não demonstrou efeito superior ao placebo.
O segundo experimento, por sua vez, manteve o delineamento do primeiro, mas apresentou algumas alterações. Isso incluiu uma redução na quantidade de participantes (17), uma nova intervenção (B1 isolada, e em outra concentração) e a adição de um segundo frasco de vidro, que também foi esfregado por 2 minutos, mas continha água quente. Apesar dessas variações, os resultados mantiveram-se inalterados; ou seja, o número de pousos associou-se fortemente à individualidade do voluntário, à data em que o ensaio foi realizado e, nesse caso específico, à presença de água quente, mas não à vitamina.
Como conclusão, os autores afirmam que não foi possível detectar nenhum efeito da suplementação de vitaminas do complexo B na atratividade dos mosquitos. Os resultados demonstraram, contudo, um efeito robusto da variação individual na atratividade dos mosquitos.
Indo ao encontro dos resultados anteriores, Shelomi, M. (2021), em seu artigo “Thiamine (vitamin B1) as an insect repelente: a scoping review”, conclui: “Para resumir: não há nada no metabolismo químico da tiamina que indique como ela poderia agir como um repelente e, tampouco, que justifique as doses altíssimas utilizadas nos artigos que revisei (...) A utilização da tiamina como um repelente sistêmico é farmacologicamente implausível. Entretanto, existe a possibilidade de que ela sirva para suavizar os sintomas da picada. Alguns autores observaram, em experimentos não controlados, que ela parece reduzir os sintomas no local da picada; no entanto, ensaios clínicos controlados obtiveram resultados que apontaram esse uso como ineficaz”.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
LORENZ, C.; Virginio, F. e BREVIGLIERI, E. O Fantástico Mundo dos Mosquitos. Disponível em: https://publicacoeseducativas.butantan.gov.br/web/mosquito/pages/pdf/89_Livro%20O%20FANT%C3%81STICO%20MUNDO%20DOS%20MOSQUITOS_internet.pdf.
ELLWANGER, J.; CARDOSO, J. e CHIES, J. Variability in human attractiveness to mosquitoes. Curr Res Parasitol Vector Borne Dis. 2021 Nov. 2:1:100058. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35284885/.
SHANNON, W. Thiamine Chloride – na AID in the solution of the mosquito problem. Minnesota Medicine 26, 799-802. Disponível em: https://factreview.gr/wp-content/uploads/2023/07/Thiamine-chloride%E2%80%94an-aid-in-the-solution-of-the-mosquito-problem.pdf.
HESLOP, I. et al. Assessing the Travel Health Knowledge of Australian Pharmacists. Pharmacy (Basel). 2020 Jun; 8(2):94. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7356681/.
IVES, A. e PASKEWITZ, S. Testing Vitamin B as a Home Remedy Against Mosquitoes. J. of the American Mosquito Control Association, 21(2):213-217 (2005). Disponível em: https://bioone.org/journals/journal-of-the-american-mosquito-control-association/volume-21/issue-2/8756-971X(2005)21%5b213%3aTVBAAH%5d2.0.CO%3b2/TESTING-VITAMIN-B-AS-A-HOME-REMEDY-AGAINST-MOSQUITOES/10.2987/8756-971X(2005)21[213:TVBAAH]2.0.CO;2.short.
SHELOMI, M. Thiaine (vitamin B1) as na insect repellent: a scoping review. Bulletin of Entomological Research. 2022;112(4):431-440. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/bulletin-of-entomological-research/article/thiamine-vitamin-b1-as-an-insect-repellent-a-scoping-review/53BC3319803B14C2218777BE4D35C7B2