Mamografia anual de rotina é sempre uma boa ideia?

Questionador questionado
12 dez 2023
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No final do mês de outubro, o Ministério da Saúde (MS) publicou em seu perfil no Instagram uma postagem educativa, também assinada pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), sobre a mamografia de rotina. Quebrando a unanimidade midiática positiva em torno de movimentos como o “Outubro Rosa”, a postagem apontava não só benefícios, mas também alguns potenciais malefícios da prática.

Como era de se esperar, a publicação foi seguida de críticas e rendeu até uma reportagem, publicada no UOL com título Mamografia: os erros perigosos do Ministério da Saúde ao falar do exame. Quando falamos “como era de se esperar”, não significa que a publicação estava errada, mas sim que o tema é geralmente pautado em senso-comum, principalmente pelo raciocínio científico a respeito ser contraintuitivo. Afinal, toda vez que surge um alerta sobre os popularmente conhecimentos “exames de check-up”, muitos comentários como “melhor prevenir do que remediar” ou “que mal exames podem fazer?” seguem-se. Mas a realidade não é tão simples.  

O assunto da publicação original do MS e do INCA é a mamografia de rotina, ou mamografia de rastreamento. Na medicina, rastreamento (ou rastreio) é a busca por uma doença através da realização de exames em pessoas sem sinais e sintomas dessa doença. Então, a mamografia, quando aplicada em mulheres sem sinais e sintomas de câncer de mama, é o rastreamento para o câncer de mama, amplamente discutido nas campanhas de Outubro Rosa.

O objetivo do rastreamento com mamografia é realizar um diagnóstico precoce, isto é, antes de o câncer causar sintomas. Dessa forma, o diagnóstico precoce possibilitaria o tratamento precoce, buscando reduzir a probabilidade de a pessoa ser prejudicada pela doença [1].

E aqui começa o primeiro problema. A probabilidade de o resultado positivo de um exame ser verdadeiro (ou seja, acusar a doença quando ela de fato existe) é diretamente proporcional à probabilidade do paciente ter a doença. Logo, se o paciente têm vários fatores de risco, a doença é muito frequente ou o quadro clínico é bem compatível, resultados positivos são mais confiáveis do que negativos — e vice-versa.

Mas se o paciente está assintomático, não há quadro clínico. Por isso, exames em pacientes assintomáticos têm uma tendência maior de gerar resultados falsos que podem resultar tanto em sofrimento mental, pelo peso do diagnóstico, quanto em tratamentos para uma doença que o paciente não tem. É por isso que testes de rastreio geralmente levam a uma investigação sequencial para confirmação do diagnóstico, por exemplo: mamografia, seguida de biópsia, seguida de análise de marcadores na biópsia. As mulheres rastreadas que, ao final da sequência, receberem o diagnóstico de câncer de mama serão encaminhadas a tratamento. Logo, quando discutimos os danos do rastreamento, estamos falando de todo o processo, e não do ato isolado de realizar a mamografia.  

E o dano mais frequente do rastreamento é justamente o resultado falso positivo. Entre 10% [2]  e 60% [3] das mulheres submetidas a mamografia de rastreamento todo ano, por dez anos, recebem pelo menos um falso positivo, o que leva à ansiedade e a exames e procedimentos desnecessários. Pior: médicos, em geral, não sabem disso e, diante de uma mamografia alterada, frequentemente superestimam a probabilidade de câncer. Em um estudo, os profissionais superestimaram a probabilidade de câncer entre 5 e 26 vezes [4].

Esse não é o principal dano. Sabemos há mais de 20 anos que o rastreamento com mamografia, por mais contraintuitivo que seja, pode levar a diagnósticos desnecessários, o que chamamos de sobrediagnóstico. O sobrediagnóstico ocorre quando a lesão detectada de fato é um câncer, porém não iria causar sintomas nem levar a mulher à morte. Em outras palavras, é um diagnóstico que não deveria ter sido feito, e esse câncer sobrediagnosticado só foi descoberto porque a mulher foi submetida à mamografia de rastreamento [5].

O verdadeiro dilema do rastreamento é que, no momento da detecção, não sabemos quais cânceres vão se tornar realmente perigosos. Com isso, a maioria é tratada, levando ao sobretratamento. O sobretratamento do câncer de mama tem riscos importantes, por envolver uma combinação de mastectomia (cirurgia para retirada das mamas, parcial ou total), quimioterapia, radioterapia e hormonioterapia. Uma mulher que não precisa ser tratada para câncer de mama, ao passar por um tratamento desnecessário, por definição recebe apenas riscos e nenhum benefício.

Curioso é que não é difícil encontrar – em fontes cientificas confiáveis – a informação que o rastreamento com mamografia leva a diagnósticos e tratamentos desnecessários. Cientificamente falando, isso não é uma controvérsia ou polêmica. Segue abaixo print do resumo da revisão sistemática do rastreamento do câncer de mama com mamografia da Cochrane [2], uma organização conhecida mundialmente por revisões sistemáticas de boa qualidade. A frase que destacamos em vermelho menciona justamente os riscos do sobrediagnóstico e sobretratamento:

 

Cochrane

 

O rastreamento com mamografia, claro, também pode oferecer benefício – a redução da mortalidade por câncer de mama. Observe o parágrafo final da reportagem no UOL:

 

UOL

 

A autora, embora não tenha referenciado, diz que a mamografia reduz 25% da mortalidade para o câncer de mama. É importante notar que esse número não informa quantas mulheres deixam de morrer de câncer de mama graças à mamografia.

O infográfico a seguir mostra os efeitos da mamografia [2]. De 1.000 mulheres entre 50 e 60 anos rastreadas anualmente com mamografia por 10 anos, uma evita a morte por câncer de mama. Esse é o benefício da mamografia de rastreamento. Durante esses 10 anos, mais de 100 mulheres recebem pelo menos um resultado falso-positivo. Aproximadamente 90 mulheres seriam submetidas a biópsias desnecessárias. Cinco mulheres são sobrediagnosticadas e sobretratadas.

 

 

Figura 1 - Infográfico do rastreamento com mamografia. Traduzido de: Harding Center for Risk Literacy
Figura 1 - Infográfico do rastreamento com mamografia. Traduzido de: Harding Center for Risk Literacy

 

A realidade não compreendida e não divulgada sobre rastreamento mamográfico é que é mais provável uma mulher ser sobrediagnosticada/sobretratada do que evitar a morte por câncer de mama. O sobrediagnóstico está longe de ser exclusividade do rastreamento com mamografia, já que foi reportado em rastreamentos de diferentes cânceres [1], como próstata [6], pulmão [7], neuroblastoma [8], tireoide [9] e melanoma [10].

Voltando aos 25%, vale enfatizar que esse número não é consenso na literatura. A revisão da Cochrane reportou uma redução de 20%; redução reportada em outras revisões [11–13]. Entenda como esse número é calculado. De 1.000 mulheres não rastreadas, cinco morrem por câncer de mama. Se elas fossem rastreadas, quatro morreriam por câncer de mama. Isso representa uma redução relativa de 20%. Há, sim, artigos mostrando maiores reduções, porém há também reduções menores.

Também é possível observar os efeitos do rastreamento em escala populacional, através de gráficos de incidência do câncer de mama. Se o rastreamento é eficaz, deveríamos ver um aumento no número de cânceres de mama em estágio localizado ou “inicial”, e um declínio compensatório nos casos avançados, justamente porque foram detectados e tratados precocemente, graças ao rastreamento. A figura a seguir mostra a incidência do câncer de mama nos Estados Unidos entre 1975 e 2011 [14]. Na figura, a incidência está dividida em estágios: localizado (ou inicial) e os casos avançados, que estão separados em regional e distante.

 

 

Figura 2 - Incidência do Câncer de Mama nos Estados Unidos entre 1975 e 2011. Traduzido de Narod (2015)  [14]
Figura 2 - Incidência do Câncer de Mama nos Estados Unidos entre 1975 e 2011. Traduzido de Narod (2015)  [14]

Esse gráfico de incidência mostra que, a partir de 1980, há um grande aumento de cânceres localizados. Alguns anos depois, há uma pequena redução de casos de doença regional, enquanto a doença distante permaneceu estável durante todo o período. A explicação mais provável é que o aumento de cânceres localizados é principalmente uma consequência do rastreamento, mas, devido à pequena redução de casos regionais e à não alteração das metástases distantes, os dados sugerem que o rastreamento resulta principalmente em sobrediagnóstico, e não na detecção precoce [14].

A pergunta que você pode estar fazendo é: por que o rastreamento não é mais eficaz, só evitando apenas uma morte por câncer das cinco que ocorreriam sem rastreamento? O principal motivo para isso também explica o fenômeno do sobrediagnóstico. O rastreamento é feito de forma periódica. Assim, cânceres com maior probabilidade de detecção pelo rastreamento são aqueles de crescimento tão lento que não causariam sintomas, ou até aqueles que regrediriam. Os tumores mais agressivos, por sua vez, crescem tão depressa que normalmente causam sintomas entre um exame de rastreamento e o seguinte [1]. Ou seja, o rastreamento não é muito eficaz justamente para os canceres mais agressivos, aqueles mais letais, que tendem a se fazer notar sem a necessidade do rastreamento. Realizar exames de forma mais frequente não é a solução. Casos muito agressivos já estão espalhados quando se tornam detectáveis, e rastrear mais levará a mais sobrediagnósticos e falsos positivos. A figura [1] a seguir ilustra essa progressão heterogênea do câncer.

 

Figura 3 - Evolução Heterogênea do Câncer. Traduzido de Welch e Black (2010)  [1]
Figura 3 - Evolução Heterogênea do Câncer. Traduzido de Welch e Black (2010)  [1]

É justamente por causa dessa relação complicada de benefícios e malefícios que o INCA recomenda a mamografia de rotina apenas uma vez a cada dois anos, para mulheres entre 50 e 69 anos. Outras organizações médicas, como a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), recomendam rastrear com mamografia a partir de 40 anos, e com periodicidade anual.

A organização médica americana USPSTF, até este ano, recomendava de forma similar ao INCA: rastrear a cada dois anos mulheres entre 50 e 74 anos [15]. Essa recomendação, feita em 2016, está passando por processo de atualização e o rascunho da nova atualização sugere a data inicial aos 40 anos, mantendo a periodicidade bienal.

Há organizações médicas com recomendações ainda mais restritas. Por exemplo, a Junta Médica da Suíça (não governamental) recomendou em 2012 que uma data limite fosse colocada para que os programas atuais de rastreamento com mamografia fossem encerrados, justamente por considerar que os malefícios são mais certos do que os benefícios [12].

O motivo que organizações médicas discordam da idade na qual o rastreamento deve ser iniciado é que a relação entre benefícios e malefícios é mais desfavorável para mulheres com 40 a 49 anos, em comparação com outras faixas etárias. Afinal, em uma faixa etária onde a prevalência da doença é menor, temos mais falsos positivos e, consequentemente, malefícios para as pacientes.

Embora as evidências científicas mostrando os danos do rastreamento existam há muito tempo, desinformação e mitos são frequentes na discussão do tema pela mídia. Já passou da hora de pararmos com as mensagens que transmitem apenas uma visão exagerada de benefícios, e começarmos a informar corretamente a população e os profissionais de saúde dos reais efeitos da mamografia. Afinal, exames de rastreio não são obrigatórios. Eles devem ser implementados em um contexto de decisão compartilhada, após uma apresentação clara de benefícios e malefícios que, conforme mostramos, existem e não devem ser negligenciados.

 

Felipe Nogueira é Doutor em ciências médicas pela UERJ, além Mestre e Bacharel em informática pela PUC-Rio. Divulgador da ciência e do pensamento crítico com diversos artigos sobre o rastreamento do câncer publicados nas revistas Skeptical Inquirer, Skeptic, Revista do Instituto Questão de Ciência e no seu blog Ceticismo e Ciência.

Vitor Borin é médico, atualmente residente de Clínica Médica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, na UNESP. Divulgador da ciência e da medicina baseada em evidências e pensamento probabilístico na solicitação de testes diagnósticos.

 

REFERÊNCIAS

1.        Welch HG, Black WC (2010) Overdiagnosis in cancer. J Natl Cancer Inst 102:605–613. https://doi.org/10.1093/jnci/djq099

2.        Gøtzsche PC, Jørgensen KJ (2013) Screening for breast cancer with mammography. Cochrane Database of Systematic Reviews 2013:. https://doi.org/10.1002/14651858.CD001877.pub5

3.        Hubbard RA, Kerlikowske K, Flowers CI, et al (2011) Cumulative probability of false-positive recall or biopsy recommendation after 10  years of screening mammography: a cohort study. Ann Intern Med 155:481–492. https://doi.org/10.7326/0003-4819-155-8-201110180-00004

4.        Morgan DJ, Pineles L, Owczarzak J, et al (2021) Accuracy of Practitioner Estimates of Probability of Diagnosis Before and After  Testing. JAMA Intern Med 181:747–755. https://doi.org/10.1001/jamainternmed.2021.0269

5.        Carter SM, Barratt A (2017) What is overdiagnosis and why should we take it seriously in cancer screening? Public Health Res Pract 27:3–7. https://doi.org/10.17061/phrp2731722

6.        Welch HG, Brawley OW (2018) Scrutiny-dependent cancer and self-fulfilling risk factors. Ann Intern Med 168:143–144. https://doi.org/10.7326/M17-2792

7.        Heleno B, Siersma V, Brodersen J (2018) Estimation of Overdiagnosis of Lung Cancer in Low-Dose Computed Tomography Screening: A Secondary Analysis of the Danish Lung Cancer Screening Trial. JAMA Intern Med 178:1420–1422. https://doi.org/10.1001/jamainternmed.2018.3056

8.        Tsubono Y, Hisamichi S (2004) A Halt to Neuroblastoma Screening in Japan. New England Journal of Medicine 350:2010–2011. https://doi.org/10.1056/nejm200405063501922

9.        Ahn HS, Kim HJ, Welch HG (2014) Korea’s Thyroid-Cancer “Epidemic” — Screening and Overdiagnosis. New England Journal of Medicine 371:1765–1767. https://doi.org/10.1056/NEJMp1409841

10.      Johansson M, Brodersen J, Gøtzsche PC, Jørgensen KJ (2019) Screening for reducing morbidity and mortality in malignant melanoma. Cochrane Database of Systematic Reviews 2019:. https://doi.org/10.1002/14651858.CD012352.pub2

11.      Marmot M, Altman DG, Cameron DA, et al (2012) The benefits and harms of breast cancer screening: An independent review. The Lancet 380:1778–1786. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(12)61611-0

12.      Biller-Andorno N, Jüni P (2014) Abolishing mammography screening programs? A view from the Swiss Medical Board. N Engl J Med 370:1965–1967. https://doi.org/10.1056/NEJMp1401875

13.      Keating NL, Pace LE (2018) Breast cancer screening in 2018 time for shared decision making. JAMA - Journal of the American Medical Association 319:1814–1815. https://doi.org/10.1001/jama.2018.3388

14.      Narod SA, Iqbal J, Miller AB (2015) Why have breast cancer mortality rates declined? J Cancer Policy 5:8–17. https://doi.org/10.1016/J.JCPO.2015.03.002

15.      Siu AL (2016) Screening for Breast Cancer: U.S. Preventive Services Task Force Recommendation  Statement. Ann Intern Med 164:279–296. https://doi.org/10.7326/M15-2886

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