Refrigerante causa calvície em homens?

Questionador questionado
12 jan 2023
latas de refrigerante

 

Circulou recentemente um artigo no jornal O Globo com o instigante título “Beber um refrigerante por dia pode aumentar em 57% o risco de calvície em homens, aponta estudo”. A linha fina ainda sugere um mecanismo para explicar o suposto efeito: “Problema está relacionado à quantidade de açúcar existente na bebida, que pode prejudicar o bom funcionamento dos folículos pilosos”. Infelizmente, o artigo está factualmente errado, pois não há nenhuma evidência científica de que se possa prevenir mais da metade dos casos de queda de cabelo em homens suprimindo a ingestão de refrigerantes.

O texto se baseia em uma publicação científica recente, e este é o primeiro problema com a análise publicada no jornal. É necessário ter cuidado com achados científicos feitos por um grupo único, sem confirmação por outros cientistas. Também é necessário cuidado especial com artigos científicos publicados em revistas com menor qualidade de avaliação, como é em geral o caso da editora MDPI, que hospeda a revista em que o trabalho foi divulgado – a editora é mais reconhecida pela incrível velocidade com que publica novos artigos do que pela qualidade de sua avaliação por pares.

De fato, uma leitura do artigo científico original demonstra que há vários problemas com seus dados. O estudo envolve somente homens chineses, e toda a avaliação (incluindo a análise da calvície) é feita a distância, por meio de formulários preenchidos pelos próprios voluntários do estudo. Houve também um processo de eliminação de formulários recebidos que parece estranho: dos dados de 1.951 pessoas enviados, 281 foram eliminados, supostamente por terem infecção ativa do couro cabeludo, sem que se tenha explicação para este alto número de casos, nem explicação de como foi diagnosticada a infecção, já que tudo foi feito a distância.

Mais estranho ainda é que o artigo declara ter eliminado 511 formulários recebidos porque os usuários declararam nunca ter ingerido nenhuma bebida, incluindo água. Obviamente existe algo de errado com um indivíduo que declara nunca ter bebido nem água – não é possível viver assim –, mas o fato de mais de um quarto dos participantes terem feito esta declaração sugere que havia problemas de clareza nos formulários elaborados, e gera suspeitas sobre os processos de avaliação dos dados recolhidos.

Mas o maior problema em se chegar à conclusão de que beber refrigerante causa calvície, a partir dos dados desta publicação, é que se trata de uma análise correlativa, sem nenhuma avaliação ou investigação de causa, ao contrário do que sugere a linha fina em O Globo.

É muito importante entender que correlações entre dados não indicam que há relação de causa e efeito entre eles. Por exemplo, sabe-se que o consumo de sorvetes aumenta no verão, época em que há também mais casos de queimaduras de pele. Mas a partir destas afirmações não podemos chegar à conclusão de que comer sorvete causa queimaduras na pele – há apenas uma correlação entre as duas ocorrências, que são mais comuns na mesma época do ano.

Neste exemplo, o Sol fornece uma conexão indireta entre as duas variáveis (causando o calor que dá vontade de tomar sorvete e as queimaduras na pele), mas é bastante comum também encontrarem-se correlações entre fenômenos que não têm nenhuma ligação, nem mesmo indireta, entre si. Isto ocorre simplesmente porque nós humanos estamos sempre procurando correlações, e acabamos encontrando-as e dando-lhes destaque, mesmo que não tenham importância. Exemplos são facilmente localizados na internet: há fortes correlações entre o número de pessoas que morrem afogadas em piscinas e o de filmes com Nicolas Cage lançados a cada ano, o número de lançamentos espaciais não comerciais e doutorados em sociologia concedidos nos EUA, ou o consumo por pessoa de muçarela e quantidade de doutorados em engenharia civil. Obviamente, não existe nenhuma ligação entre cada um destes pares de quantificações. São apenas coincidências, como tendem a aparecer quando os dados são “torturados” até “confessar”.

No caso da publicação do grupo chinês, encontrou-se uma correlação entre ingestão de bebidas açucaradas e queda de cabelo masculino. Mas esta não é nem de longe a única correlação apresentada. Detectou-se uma correlação entre queda de cabelo e idade, fumar cigarros, ter menor nível educacional, ter menos atividade física e dormir menos. Viu-se correlação entre queda de cabelo e ingestão de sucos de frutas e leites de nozes com adoçantes artificiais, mas nenhum jornal escreveu um artigo recomendando parar de tomar leite de amêndoas com aspartame para recuperar os cabelos!

Um achado nada surpreendente é que se encontrou correlação entre queda de cabelos e ter recebido tratamento para queda de cabelo no passado. A partir deste achado, e usando a lógica apresentada pelo artigo de divulgação jornalística, deve-se, por coerência de processo dedutivo, chegar à conclusão de que evitar tratamentos para perda capilar previne a perda de cabelo. Obviamente isso não é verdade, e é muito mais razoável inferir que pessoas que sofrem com perda de cabelo procuram mais tratamentos para tal, embora os dados colhidos não provem isso, pois correlação apenas, na ausência de outros dados, nunca é indicação de casualidade.

Outra correlação nada surpreendente encontrada no artigo científico é que há mais queda de cabelo masculino em pessoas com história familiar de homens com queda de cabelo. Não surpreende porque há ampla comprovação, por muitos outros estudos, de que a calvície masculina tem forte componente hereditário, relacionado a mais de 200 variações genéticas presentes na população. Assim, além de se poder prever as chances de desenvolver calvície olhando para as cabeças dos seus familiares, pode-se fazer uma análise de riscos baseada no mapeamento das alterações genéticas presentes num indivíduo.

Outro fator relacionado à calvície masculina é hormonal. Andrógenos, ou hormônios masculinos, são necessários para que ocorra a queda de cabelo com o padrão típico da calvície masculina, nas pessoas com tendência genética à perda capilar. Indicações experimentais desta dependência são muito antigas: o filósofo grego Aristóteles já observava que nem mulheres nem eunucos (que não têm testículos, onde são sintetizados a maioria dos hormônios andrógenos) sofrem de calvície com o padrão típico masculino. O efeito de andrógenos é hoje a base do tratamento mais eficaz existente contra este tipo de calvície, que envolve o uso oral de finasterida, que inibe a produção de uma forma de testosterona que causa a perda capilar.

Outro tratamento comum e eficaz para queda de cabelo, tanto em homens quanto mulheres, é o minoxidil, que é aplicado localmente, e portanto evita efeitos no corpo todo. Curiosamente, embora se tenha comprovado sua eficácia, há muito debate entre cientistas sobre como o minoxidil funciona para queda de cabelo. A medicação começou a ser usada após se observar reversão de queda e cabelo em pessoas que estavam fazendo uso de minoxidil por outros motivos, como hipertensão.

Antes de terminar, me sinto na necessidade de esclarecer que, apesar de todos os apontamentos acima mostrarem que beber refrigerante não é causa de perda capilar, isso não significa que ingerir refrigerantes é bom para a saúde. São bebidas sem nenhum valor nutricional, fora o açúcar, que tem alto valor energético, mas absorção rápida, o que não ajuda a manter os níveis de glicose sanguíneos adequados, nem altos nem baixos demais, no decorrer do dia. Saber diferenciar o que conhecemos sobre seus efeitos na saúde geral de um suposto efeito capilar, baseado em correlações apresentadas em uma publicação de má qualidade, deveria ser função de bons jornalistas e especialistas de divulgação em saúde. Espero que se tome mais cuidado com este tipo de informação na imprensa no futuro, para evitar que cientistas como eu sejamos levados a arrancar os cabelos!

 

Alicia Kowaltowski é professora de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo

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