Por muitas vezes, em decorrência das consequências da altamente perigosa atividade de goleiro-de-final-de-semana, da qual me aposentei há alguns anos, tive que procurar o pronto-socorro, tirar um raio-X e me submeter a imobilização temporária. Algo que me chamava a atenção, antes de me graduar em Física, ao entrar na sala de radiografia, era o símbolo amarelo bem em cima da porta: à época, não fazia ideia do significado, mas me parecia remeter a algo realmente perigoso. Como eu, muitas pessoas também já viram esse símbolo – que estamos mostrando ali em cima – em diversos outros ambientes médicos, como quando recebem contraste radioativo para um exame de imagem ou se submetem a procedimentos de radioterapia, por exemplo.
Nesse contexto que envolve radiação e medicina, no último dia 15 de setembro, o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) por meio da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), publicou nota informando que, devido ao corte de verbas federais a ele destinadas, nos dias seguintes não estaria mais em condições de fabricar parte dos radiofármacos que produz regularmente, destinados ao tratamento de câncer.
A situação preocupante causou reações imediatas da comunidade científica em defesa do IPEN e da importância do financiamento das suas atividades, como a carta enviada para o MCTI, assinada em conjunto pela Sociedade Brasileira de Física (SBF) e pela Associação Brasileira de Física Médica (ABFM), e a carta endereçada tanto ao MCTI como ao Ministério da Saúde, cujo remetente é o conjunto de entidades que fazem parte da Iniciativa de Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.BR), como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC). As reações já começaram a surtir efeito, o que, para além de positivo, é essencial.
Ora, mas um momento: a radiação não é perigosa? Não devemos evitá-la a todo custo? Como podem os cientistas defenderem a produção de fármacos emissores de radiação? Essas questões aparecem em muitas das dúvidas que recebi ao longo dos últimos dias. É hora de esclarecer a situação.
Elementos radioativos
Como você deve ter aprendido na escola, os objetos à nossa volta são feitos de átomos, que, por sua vez, são organizados de maneira esquemática na Tabela Periódica. Os átomos têm um núcleo pequeno e bastante massivo, onde encontramos os prótons (com carga elétrica positiva) e os nêutrons (eletricamente neutros), cercado por um enxame de elétrons, partículas de massa bem pequena e carga elétrica negativa. Átomos que são eletricamente neutros têm prótons e elétrons na mesma quantidade.
Quando estudamos eletricidade, sempre ouvimos que “os opostos se atraem”, o que se aplica bem para elétrons e prótons, com cargas de sinais contrários. No entanto, a existência dos núcleos traz uma questão intrigante: como eles podem ser a residência de diversos prótons, todos positivamente carregados, que, então, tendem a se repelir? O segredo é que, no âmbito das distâncias diminutas envolvidas nos sistemas nucleares, a repulsão eletrostática é superada por outra força, chamada de “força nuclear forte” (o nome não é muito criativo, confesso), que é atrativa e afeta tanto prótons como nêutrons. Ou seja, essa força age como uma “cola” capaz de sustentar a existência dos núcleos e, dessa forma, tanto nêutrons como prótons desempenham um papel fundamental no processo.
O número de prótons que encontramos no núcleo é o que diferencia um elemento de outro: o hidrogênio só tem 1 próton; o carbono, 6; o ferro tem 26 e o urânio, 92. O número de nêutrons, no entanto, pode ser diferente para o mesmo elemento, o que faz com que existam os chamados “elementos isótopos” (tecnicamente, são chamados “nuclídeos isótopos”). Na prática, isso tem a implicação curiosa de que, por exemplo, nem todos os “carbonos” são iguais: o chamado “carbono-12” tem 6 prótons (por ser chamado “carbono”) e 6 nêutrons, para que a soma deles resulte no número “12”, que acompanha o nome do elemento. O “carbono-14”, um isótopo do carbono-12, também tem 6 prótons, mas, agora, 2 nêutrons a mais.
O fato é que nem todos os nuclídeos – que são todos os elementos químicos e seus isótopos – são estáveis, algo que depende justamente da quantidade de prótons e nêutrons presente em seus núcleos. Tenha prótons demais e nêutrons de menos, ou vice-versa, e o núcleo se desfaz. Gosto da analogia com um muro: para ficar estável, ele precisa de tijolos e cimento na quantidade adequada, sem excesso ou falta de um ou de outro.
Embora estejamos acostumados a pensar nos elementos químicos como sendo apenas o pouco mais de uma centena que encontramos na Tabela Periódica, quando passamos a considerar a existência dos muitos isótopos de cada um deles, essa quantidade cresce vertiginosamente: existem mais de 1.700 nuclídeos, com diferentes configurações de prótons e nêutrons. Desse total, apenas cerca de 280 são estáveis. Os demais, instáveis, passam por processos de decaimento, ou seja, se transmutam em outros elementos (com exceção do decaimento do tipo gama) a partir de processos que envolvem liberação de radiação – são, portanto, os chamados isótopos radioativos, ou radioisótopos.
Voltando aos “carbonos” para um exemplo: o carbono-12 é um isótopo estável, mas o carbono-14 é radioativo. Da mesma forma: flúor-19 e potássio-39 são estáveis, mas flúor-18 e potássio-40 são radioativos.
Radiofármacos
Existe uma especialidade médica que utiliza isótopos radioativos ou para tratar doenças, ou como meios auxiliares em processos de diagnóstico. É a chamada medicina nuclear. De modo intimamente relacionado a ela estão os radiofármacos, que são as substâncias contendo isótopos radioativos aplicadas nesses processos.
Quando um paciente se submete a uma tomografia por emissão de pósitrons (PET), recebe um contraste radioativo, que é um composto contendo, por exemplo, flúor-18 ou nitrogênio-13: esses átomos emitem uma partícula chamada pósitron (a antimatéria do elétron), que, ao interagir com elétrons na vizinhança, gera um sinal que é captado pelo aparelho, permitindo a identificação das áreas corporais com maior acúmulo do radiofármaco. Como essas áreas mais ativas se relacionam a processos biológicos envolvendo a substância administrada, isso permite ao médico identificar as regiões de interesse.
De maneira geral, os radiofármacos podem ser tanto os próprios radioisótopos diretamente administrados ao paciente, como também moléculas específicas às quais são adicionados átomos radioativos. Assim, utilizando-se diferentes radioisótopos, ou agregando-os a diferentes moléculas de uso farmacológico, multiplicam-se as possíveis aplicações médicas.
Afinidades específicas entre certos isótopos ou moléculas contendo isótopos radioativos e tecidos específicos do corpo humano podem ser bem exploradas, por exemplo, no âmbito dos tratamentos para o câncer: a depender do órgão acometido, o paciente recebe um radiofármaco diferente, por meio intravenoso, levando ao acúmulo do material radioativo predominantemente no local onde sua ação é necessária. A emissão de radiação danifica as células atingidas, combatendo o câncer localizado e ajudando a preservar os demais órgãos e tecidos do paciente.
O estudo de novos radiofármacos, novos tratamentos e da produção de novos radioisótopos é, portanto, um dos fatores que torna os recursos para pesquisas na área tão importante. Outro fator é a escassez natural de muitos dos radioisótopos usados em radiofarmácia: do total de mais de 1.700 nuclídeos conhecidos, cerca de 1.200 podem ser produzidos artificialmente em laboratório, o que é feito utilizando-se reatores nucleares, geradores nucleares ou aceleradores de partículas do tipo cíclotron (já falamos sobre a importância de aceleradores de partículas anteriormente). O IPEN é um expoente nacional na produção de radioisótopos, suprindo 85% da demanda nacional por radiofármacos, o que atende a 2 milhões de pacientes por ano. Portanto, cortar verbas para as operações e pesquisas do IPEN não é apenas um golpe na ciência, mas também uma afronta à saúde pública.
Radioatividade e desinformação
A palavra “radiação” é suficiente para causar arrepios e medo em muita gente. Porém, muitas das alegações que se faz sobre ela não passam de mitos. Exemplos clássicos já discutidos na Revista Questão de Ciência são a ideia de que o celular pode explodir o posto de gasolina e a afirmação de que as ondas de telecomunicações causam câncer.
Porém, retirando-se os mitos, é bem verdade que existem exemplos de problemas sérios que já tivemos que enfrentar em decorrência de acidentes envolvendo elementos radioativos. Casos famosos são acidentes nucleares em usinas de geração de energia elétrica, como Chernobyl e, mais recentemente, Fukushima. Quando tiramos da lista os acidentes nucleares que ocorreram em usinas, o pior evento do tipo, no mundo, aconteceu no Brasil: em 1987, em Goiânia, devido ao descarte incorreto de uma fonte radioativa de césio-137, mais de 100 mil pessoas foram expostas à radiação e, segundo a CNEN, quatro delas morreram de imediato.
Como lidar com sistemas radioativos então? O fato é que existe uma diferença entre “perigo” e “risco”. De modo geral, é verdade que a exposição à radiação é um perigo, mas o risco que a exposição oferece depende de vários fatores: o tipo de radiação (se ionizante ou não ionizante, e, dentro dessas categorias, qual a radiação específica envolvida), a intensidade, o tempo que se permanece exposto e se há alguma medida de proteção, como o uso de barreiras absorvedoras.
Assim, é preciso cuidado com a generalização indevida. Não é porque acidentes de avião acontecem que devemos impedi-los de transportar passageiros. Da mesma forma, não é porque ocorrem acidentes nucleares que vamos fechar as usinas e/ou proibir a produção de radiofármacos. Tudo se resume à avaliação de risco comparada com os benefícios que esses processos oferecem. Sobre os radiofármacos, os benefícios já foram apresentados; sobre as usinas nucleares, embora elas não sejam soluções únicas, definitivas e perfeitas para a geração de energia elétrica no mundo (e alguma é?), é inegável o fato de que as reações nucleares são processos mais eficientes que a queima de combustíveis fósseis, por exemplo.
Ademais, é sempre importante lembrar que a radiação faz parte do nosso dia a dia, em inúmeras situações. A começar pelo Sol, que emite radiação continuamente (na forma de partículas e ondas eletromagnéticas, como ultravioleta) para o espaço ao redor, atingindo, consequentemente, a Terra e as pessoas que aqui estão. Mesmo assim, certa dose de exposição à radiação solar é recomendada, pelos seus efeitos na produção de vitamina D. Além disso, no nosso próprio corpo podemos encontrar radioisótopos, como o carbono-14. Assim, como destaca a Associação Nuclear Mundial: “dormir ao lado de alguém nos expõe a uma dose de radiação maior que morar próximo de uma usina de energia nuclear – ambas as situações, no entanto, nos são inofensivas” (tradução nossa).
Por fim, retornamos ao significado do símbolo internacional que encontramos na porta da sala dos raios-X: uma vez que, agora, reconhecemos que a radiação e a radioatividade fazem parte do ambiente natural ao nosso redor, esse símbolo não pode ter um significado de “presença de radiação”, pois, caso fosse assim, teríamos que ter um desse sempre pendurado no pescoço.
O que o alerta indica é que as pessoas envolvidas com os locais, equipamentos ou produtos onde ele é encontrado devem lembrar-se de executar os procedimentos adequados de proteção radiológica e manejo de fontes de radiação que oferecem risco de contaminação ou exposição acima dos esperados naturalmente. E, sim, existem profissionais plenamente capacitados para trabalhar em segurança com todos esses sistemas, como físicos, químicos, médicos, enfermeiros, farmacêuticos e engenheiros. O medo deliberado e generalizado da radiação é apenas fruto de ignorância.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)