Na época da Gripe Espanhola, que infectou cerca de 500 milhões de pessoas e matou dezenas de milhões entre 1918 e 1919, era comum encontrar os mais diversos produtos sendo vendidos como salvação. Desde óleo de cobra e de castor (do animal mesmo, não o “castor oil”, óleo de rícino, feito de semente de mamona) até o Dr Bell’s Pine Tar Honey, uma mistura de alcatrão de pinheiro, amônia, capsaicina (componente ativo das pimentas), glicerina, sassafrás e açúcar.
Uma pandemia mais tarde, as coisas não mudaram tanto assim. A novidade é que agora temos uma nova modalidade de pílulas mágicas, vendidas com ideia de “aumentar a ação do nosso sistema imune”.
Além das pílulas mágicas, no meio disso tudo ressurgiu nos noticiários um estudo curioso, relatando que a masturbação pode aumentar o número de células de defesa no sangue. A vantagem da prática constante seria enorme, uma vez que o sexo solitário atacaria a pandemia por duas frentes: “boost” do sistema imune e redução do sofrimento causado pelo isolamento social.
Mas o que significa dizer “aumentar a atividade do sistema imune”? Isso é bom? A imagem que a frase evoca é a de células de defesa turbinadas, aumentando em número, saltando pelo nariz para comer o corona na porrada? Tomar algum suplemento vitamínico ajuda a combater vírus, ou só nos faz produzir urina de sommelier? E claro, vou comentar o estudo da masturbação.
Não existe imunidade grátis
Infelizmente, a ideia de que pílulas ou superalimentos modernos podem incrementar o sistema imune é um mito. De fato, o conceito de “impulsionar” (ou “dar um boost”) o sistema imune não tem nenhum significado científico.
Quando pensamos no arsenal de defesa que o corpo humano tem disponível para enfrentar vírus ou bactérias, devemos imaginar o caminho que esses microrganismos percorrem para nos infectar. Vamos utilizar o coronavírus como exemplo. Se a partícula viral entrar em contato com sua pele, ela não conseguirá penetrar, e nada de mal acontecerá com você. Portanto, já temos uma primeira barreira, física. Nossas vias aéreas também oferecem barreiras físicas, como pelos e muco, que tornam o caminho do vírus bem complicado.
Uma vez que o vírus consiga transpor essas barreiras, o caminho ainda não está livre, pois temos o sistema imune, que pode ser dividido em duas partes. A primeira parte é composta por células de defesa que estão o tempo todo em busca de intrusos. Essa é a nossa resposta imunológica inata. Estas células têm mecanismos para detectar e matar tudo que não pareça um componente legítimo do seu corpo. A segunda parte é mais específica, e se adapta para cada tipo de intruso. Por isso é conhecida como sistema imune adaptativo, composto por células e anticorpos que levam alguns dias ou semanas para serem produzidos.
Então, o conceito de “impulsionar” o sistema imune de uma pessoa, presumivelmente, envolveria tornar essas respostas celulares mais ativas ou mais fortes. E na verdade, você não gostaria de fazer isso.
Os sintomas das doenças
Imagine que você tenha sido infectado pelo vírus da gripe e agora está sentindo dores no corpo, frio, febre, dores de cabeça e uma quantidade abundante de ranho e catarro está saindo por todos os lados. A maioria desses sintomas não é causada pelo vírus. Em vez disso, são acionados pelo seu próprio corpo, de propósito: fazem parte da resposta imune inata.
Nesse caso, o muco sai cheio de partículas virais que, expelidas, não se replicarão mais dentro de você. A febre ajuda a tornar seu corpo um ambiente desconfortavelmente quente. O vírus depende de uma proteína sensível à temperatura para produzir novas cópias dele mesmo. Então ,alguns graus Celsius a mais podem retardar ou, até mesmo, impedir esse processo.
As dores e o mal-estar geral são ocasionados por moléculas inflamatórias produzidas pelo corpo, que atravessam suas veias, sinalizando às células imunológicas o que fazer e para onde ir. Esses sintomas também ajudam a sinalizar ao cérebro que é hora de desacelerar e deixar corpo se recuperar.
O muco e os sinais químicos fazem parte da inflamação, que é a base de uma resposta imune saudável. Mas o processo é exaustivo, então não parece interessante dar um “boost” nisso o tempo todo, mesmo sem estar infectado. E a maioria dos vírus, incluindo coronavírus, ativará o processo de qualquer maneira. Se a kombucha, o chá-verde ou qualquer uma das várias misturas “estimulantes do sistema imune” do mercado realmente tivesse algum impacto, elas não lhe dariam um brilho saudável e protetor: elas lhe provocariam é um corrimento nasal. Ironicamente, muitos produtos que prometem aumentar a imunidade afirmam reduzir a inflamação.
Aumentar a ação do o sistema imune adaptativo também pode ser extremamente desagradável. Por exemplo, as alergias ocorrem quando as células imunológicas aprendem a tratar corpos estranhos que não fazem mal – pólen de flores, por exemplo – como se fossem prejudiciais. Cada vez que encontramos a substância agressora no nosso caminho, ativamos também a resposta imune inata – provocando muitos espirros, coceira nos olhos e fadiga geral. De novo, provavelmente não é isso que as pessoas que defendem esses “remédios” têm em mente.
Mas vamos dar o benefício da dúvida aos que dizem que você pode “impulsionar” seu sistema imune e supor que eles queiram dizer que determinados produtos podem melhorar a resposta imune de uma maneira útil – em vez de “impulsioná-la” de forma indiscriminada. O problema é que muitas dessas alegações não têm fundamento em evidências. Então, em que eles se baseiam?
A vitamina D
Muitos multivitamínicos alegam fornecer “suporte imune” ou ajudar a “manter uma função imunológica saudável”. Mas os suplementos vitamínicos geralmente não funcionam em pessoas já saudáveis, e alguns podem até ser prejudiciais.
Vamos tomar como exemplo a vitamina C. Os efeitos para a saúde desse antioxidante estão imersos em mitologia desde que Linus Pauling, ganhador do Prêmio Nobel por duas vezes, ficou obcecado com hipótese da sua suposta capacidade em combater o resfriado comum. Já escrevemos sobre isso aqui. Depois de estudar a vitamina por anos, Pauling finalmente começou a tomar 18.000 mg por dia – cerca de 300 vezes a quantidade diária recomendada atualmente.
No entanto, existem poucas evidências para apoiar a poderosa reputação da vitamina C em ajudar a combater resfriados e outras infecções respiratórias. Uma revisão de 2013 da Cochrane – uma organização conhecida por sua pesquisa imparcial – descobriu que em adultos “os ensaios de altas doses de vitamina C administradas terapeuticamente, começando após o início dos sintomas, não mostraram efeito consistente na duração ou gravidade dos sintomas comuns do resfriado”.
Embora o escorbuto – doença causada por carência de vitamina C – tenha matado dois milhões de marinheiros e piratas entre os séculos 15 e 18, os números agora são muito mais baixos. Por outro lado, altas doses dessa vitamina podem levar a formação de pedras nos rins em pessoas que tenham insuficiência renal crônica.
Portanto, os suplementos vitamínicos não são benéficos para o seu sistema imune, a menos que você tenha alguma deficiência, seja por uma má alimentação ou alguma doença.
Em relação à vitamina D, existe um estudo que associou baixos níveis de vitamina D a um maior risco de infecções respiratórias e a sintomas mais graves, quando essas infecções se desenvolvem. Sabemos que os raios do Sol fornecem energia ultravioleta B (UVB), que a pele a utiliza para produzir uma molécula precursora que é convertida em vitamina D nos rins e no fígado.
De fato, muitas células imunes podem reconhecer ativamente a vitamina D, e acredita-se que ela desempenhe um papel importante nas respostas imunes inata e adaptativa – embora ainda não saibamos os detalhes de como isso acontece. Deficiências de vitamina D são endêmicas em muitos países, mesmo nos mais ricos. E com mais e mais pessoas sendo incentivadas a ficar em ambientes fechados, é fácil ver como uma menor exposição ao Sol pode levar a uma maior deficiência na produção da vitamina.
A masturbação não ajuda
Qualquer alegação de que a masturbação possa melhorar a imunidade ou proteger contra COVID-19 é exagerada. É verdade que um estudo mostrou que homens que se masturbavam tinham um número maior de glóbulos brancos no sangue, quando eram excitados sexualmente e durante o orgasmo. No entanto, não há evidências de que isso se traduza em proteção contra infecções. O estudo foi feito com um número pequeno de participantes (11 voluntários), então precisaria ser repetido e analisar mais desfechos para estabelecer uma relação entre a prática e proteção que tenha alguma validade.
Apesar disso, o Departamento de Saúde e Higiene Mental da cidade de Nova York recentemente lembrou a seus seguidores no Twitter que, na era de COVID-19, “você é seu parceiro sexual mais seguro”. No contexto de manter o isolamento social, a atividade tem o seu valor.
O que é comprovadamente eficaz para manter uma boa saúde e ajudar seu sistema imune a ficar em ordem é algo nada sexy, chique ou inovador: durma o suficiente, faça exercícios, tenha uma dieta equilibrada e tente não se estressar. E, para estimular a imunidade contra doenças específicas, há dois caminhos: pegar a doença ou tomar vacina.
Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil