No início de junho, a mídia relatou um caso interessante: um grande supermercado, em Osasco (SP), instalou uma câmara de luz ultravioleta (UV) para descontaminação das compras dos clientes. Após as compras serem empacotadas, o cliente posiciona o carrinho cheio dentro da câmara do aparelho, apelidado de XGerminator. A porta se fecha e os produtos são banhados por luz ultravioleta que, segundo o fabricante, é capaz de eliminar até 99% dos micro-organismos, em cerca de 30 segundos.
Essa ação vem no mesmo sentido de outra que também foi notícia algumas semanas atrás: pesquisadores do Grupo de Óptica do Instituto de Física de São Carlos, vinculado à Universidade de São Paulo (USP), desenvolveram dois rodos equipados com emissão de luz ultravioleta para descontaminação do piso. Os equipamentos foram cedidos à Santa Casa da Misericórdia de São Carlos, no interior paulista.
Ao mesmo tempo, pesquisadores norte-americanos e japoneses estudam a possibilidade de desenvolver fontes de luz ultravioleta mais acessíveis, e até portáteis, para facilitar o acesso do público e favorecer o uso na descontaminação de locais de grande circulação de pessoas, como teatros, arenas esportivas e transporte público.
Todas essas ações são aplicações interessantes da física no combate à pandemia. Mas será que a luz ultravioleta é a esperada bala de prata contra a pandemia de COVID-19? Afinal de contas, como será que a luz UV consegue eliminar o vírus, e como devemos encarar essas aplicações cada vez mais próximas do público geral?
O que é luz UV?
Quando a luz branca do Sol passa por um vidro, pela água da piscina ou até pelo plástico da caneta, é comum que observemos a separação dela nas diferentes cores do arco-íris. Essas cores formam o que chamamos de região visível do espectro eletromagnético, que é o conjunto de todas as radiações formadas por ondas constituídas de campos elétricos e magnéticos oscilantes, que se propagam pelo espaço. Existem outros nomes famosos do nosso dia a dia que, na realidade, também são ondas que fazem parte desse conjunto: ondas de rádio e TV, micro-ondas, infravermelho, ultravioleta, raios-X e raios gama.
Uma maneira de caracterizar as ondas é por meio do que chamamos de comprimento de onda. Pense na superfície da água de uma piscina: quando alguém pula na piscina, forma ondas que se propagam para todas as direções. A distância entre dois picos sucessivos das ondulações é o tal do comprimento de onda. No caso exemplificado da piscina, talvez esse comprimento entre dois picos seja da ordem de uma dezena de centímetros.
As ondas eletromagnéticas, embora não sejam da mesma natureza que as ondas na água, também possuem comprimento de onda associado. Quando nos referimos à luz visível, o comprimento de onda é muito menor do que a escala dos centímetros: a luz vermelha tem o maior comprimento de onda da região, cerca de 700 nanômetros, enquanto a luz violeta tem o menor comprimento de onda capaz de sensibilizar os nossos olhos, da ordem de 400 nanômetros. Um nanômetro (ou “1 nm”) corresponde a um comprimento de um milímetro dividido em um milhão de partes iguais.
Outra ideia inicial que precisamos compreender é que as radiações eletromagnéticas transportam uma quantidade de energia mínima, em proporção inversa a seu comprimento de onda. Dizemos, então, que quanto menor for o comprimento de onda, mais energética será a radiação. E, portanto, mais cuidado precisamos ter com ela.
A radiação ultravioleta (UV) corresponde à parte do espectro eletromagnético com comprimentos de onda menores do que o da luz violeta, ou seja, uma faixa imediatamente mais energética do que a luz visível.
Devido à quantidade de energia transportada nas ondas UV, elas marcam o início do que chamamos de “região ionizante” do espectro eletromagnético, como já foi abordado aqui na Revista Questão de Ciência. Em outras palavras, isso indica que as ondas de comprimento de onda iguais ou menores que os de UV (como raios-X e raios gama) já têm condições de formar íons, o que significa ter condições de causar danos, por exemplo, às moléculas de DNA das nossas células, o que está ligado ao surgimento de doenças como o câncer. Portanto, é fundamental que a exposição às radiações ionizantes seja feita de maneira cuidadosa e planejada.
Dependendo do comprimento de onda da radiação ultravioleta, ela ainda pode ser subdividida em categorias. Um congresso em 1932 padronizou essas categorias da seguinte maneira: ultravioleta A (UVA) com comprimentos de onda entre 400 nm e 315 nm; ultravioleta B (UVB), entre 315 nm e 280 nm; e ultravioleta C (UVC), entre 280 nm e 100 nm. Abaixo dos 100 nm, entra-se na região dos raios-X.
Efeitos biológicos da radiação UV
Como vimos, a radiação ultravioleta é ionizante e, por isso, tem potencial para causar efeitos danosos aos seres vivos. Agora, existe uma diferença entre perigo e risco, como também já foi discutido na Revista Questão de Ciência. A exposição à radiação UV é um perigo, mas o risco que a exposição oferece depende de vários fatores: a faixa energética de UV (A, B ou C), a intensidade da luz e o tempo que se permanece exposto.
É com base no equacionamento desses parâmetros que sabemos que participar de uma festa com luz negra (que emite parte da sua energia na forma de UVA, invisível aos nossos olhos) não gera risco significativo. Da mesma forma, é necessário que sejamos expostos à luz ultravioleta do Sol, pois isso contribui com o processo de produção de vitamina D. Mas a exposição demasiada e sem proteção leva a um risco alto de ocorrência de queimaduras severas e aumento de incidência de câncer de pele.
Quando a radiação UV interage com uma entidade biológica, seja uma bactéria, uma célula da nossa pele ou até um vírus, por ser ionizante, ela tem condições de causar danos ao material genético. Dependendo dos fatores de exposição que comentamos, esse processo pode matar a célula, a bactéria ou desativar um vírus. A faixa mais eficiente para isso é também a mais energética, a UVC. Tanto é que essa região é conhecida por “ultravioleta germicida”. É curioso comentar que já sabemos disso há tempos, e essa região do espectro eletromagnético já vem sendo usada como método de higienização e descontaminação, tanto em laboratórios como auxílio na desinfecção de salas cirúrgicas, água, alimentos e cosméticos.
Então, em suma, o que estamos vendo com a pandemia de COVID-19 é a utilização desse poder germicida da radiação ultravioleta para desativação do novo coronavírus que esteja à espreita em superfícies e objetos ao nosso redor.
Então o Sol é a solução!
O Sol é responsável pelo envio de grande parte do total de radiação eletromagnética que atinge a Terra. Parte dessa radiação é luz visível, ou seja, a faixa capaz de sensibilizar os nossos olhos. Outra parte chega aqui nas diferentes faixas de ultravioleta: UVA, UVB e UVC. Ainda existem outras faixas de radiação eletromagnética atingindo a Terra e que partem do Sol, mas não vamos detalhar tudo isso aqui.
Bom, se o Sol envia todas as faixas de UV para cá, não bastaria que expuséssemos roupas, calçados, objetos e até nossas mãos ao Sol para que o novo coronavírus seja desativado? Em tese, a luz solar contém os comprimentos de onda UV, então ela teria “os ingredientes” adequados para combater o vírus. Porém, é importante salientar que nossa atmosfera interage e atenua as ondas UV. Com isso, elimina totalmente a incidência de UVC na superfície da Terra (para a nossa sorte, pois também sofreríamos danos biológicos se assim não fosse!) e ainda reduz drasticamente a intensidade de UVB. Do total de ultravioleta solar que nos atinge aqui na superfície do planeta, mais de 95% corresponde à faixa UVA, a menos danosa e menos energética.
Como se isso não bastasse, a incidência de radiação solar sobre um determinado local do planeta ainda depende de outros fatores, como a época do ano, a latitude e a cobertura de nuvens. Assim sendo, embora a luz solar tenha componentes ultravioleta chegando diariamente à Terra, com capacidade de causar estragos à pele e às células humanas quando em exposição desprotegida prolongada, não é possível confiar nela como única fonte para descontaminação contra o novo coronavírus, como a Organização Mundial da Saúde e a Fiocruz já nos alertaram.
Use com moderação
Bom, o Sol não é capaz de nos prover luz ultravioleta na intensidade e na faixa de energia mais eficiente para eliminação do coronavírus. Porém, fontes de luz UV artificiais, como lâmpadas capazes de emitir intensidade suficiente de UVC, podem executar essa função. Mas, ao contrário do que pode parecer, o artifício luminoso, embora eficiente, não é (infelizmente, diga-se de passagem) a solução única e geral que necessitamos. E por vários motivos.
O primeiro é bastante óbvio: a luz UV germicida só atua nos locais que atinge. As partes contaminadas dos objetos e das superfícies que não forem iluminadas permanecerão como estavam. Tanto é que o supermercado citado que instalou o XGerminator não deixou de utilizar outras medidas sanitárias essenciais: após as compras tomarem um “banho de UV”, existem ainda estações de higienização próximas dos estacionamentos para que os clientes possam fazer a tão recomendada desinfecção manual dos produtos antes de os levarem para casa.
O segundo motivo está no devido projeto e preparo da fonte UV: não é qualquer fonte de luz UV que gera o efeito germicida. E isso é importante de dizer antes que alguém passe a comprar lâmpadas de luz negra freneticamente para instalar por toda a casa... A luz UV germicida é útil quando usada de forma adequada, levando-se em conta a intensidade, o comprimento de onda e o tempo de exposição.
E ainda um terceiro motivo é que o manuseio dessas fontes, especialmente as UVC intensas, é perigoso. Luz ultravioleta causa estragos biológicos sem fazer distinção se está atingindo um vírus, uma pessoa ou uma planta. Por isso, nos locais onde essa tecnologia for implementada, é absolutamente necessário um treinamento adequado dos operadores e uma fiscalização regular para garantir que as normas de segurança sejam seguidas.
E quanto à possibilidade de tornar fontes de luz desse tipo acessíveis para a população, para descontaminação ampla de objetos e superfícies? É preciso extremo cuidado e planejamento antes pensar em “popularizar” o acesso à UVC. Primeiro porque, como vimos, nem sempre a luz UV é capaz de atingir todas as partes de uma superfície e de um objeto. Assim, as pessoas que a utilizarem podem acabar relaxando em relação a outras medidas eficazes.
E, em segundo lugar, é importante lembrar que mesmo cientistas treinados para usar UV na sua prática diária sofrem acidentes com ela. Imagine então o que não poderá acontecer se alguém promover o uso indiscriminado da luz UV na vida diária... Vale lembrar que muita gente encontra dificuldade para seguir orientações básicas sobre o uso correto de máscaras.
É possível fazer da luz UVC uma medida útil e interessante para aplicar em locais e situações específicas. Mas é preciso muito cuidado antes de defendê-la como uma solução a disseminar entre a população. Por enquanto, é mais seguro que as pessoas mantenham as tradicionais recomendações de sanitização com água sanitária diluída, álcool 70% ou água e sabão.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia