Não existe, até agora, remédio conhecido capaz de evitar a infecção pelo vírus SARS-CoV-2, de garantir que os sintomas sejam leves, uma vez que a doença esteja instalada, ou de garantir que pessoas contaminadas tornem-se menos contagiosas. Este é um fato médico tão bem estabelecido quanto, por exemplo, o de que não se deve receitar aspirina para pacientes de dengue.
A despeito disso, chegam de toda parte notícias de médicos receitando freneticamente o antiparasitário ivermectina para pacientes com suspeita de COVID-19, e de pessoas achando que estão protegidas da doença porque se submetem a um regime semanal do mesmo medicamento – protegidas ao ponto de decidirem ir para a balada como se não houvesse amanhã (e, assim, trabalhando para que realmente não haja). É um tsunami de erro, negligência e autoengano.
Só para deixar claro: ivermectina é inútil contra COVID-19.
Como você sabe?
A ivermectina é um antiparasitário, muito usado para controle de piolho, pulgas e carrapatos em animais, incluindo seres humanos, e algumas verminoses. Atua no sistema nervoso central de animais invertebrados, provocando paralisia muscular. A dose recomendada, em geral, não ultrapassa 200 μg/kg, isto é, 200 microgramas por quilograma de peso corporal do paciente, e o medicamento costuma ser usado em dose única.
Nas doses recomendadas, o fármaco não chega no sistema nervoso central de mamíferos, e por isso é muito bem tolerado. Para algumas raças de cães, no entanto, por causa de uma mutação genética, a droga é extremamente tóxica, exatamente por atacar o sistema nervoso.
A fama do remédio de piolho nesta pandemia teve início com um estudo feito por pesquisadores da Monash Univeristy, na Austrália, divulgado em abril e que mostrou atividade antiviral in vitro, ou seja, em cultura de células. No caso, células Vero, o mesmo tipo, aliás, em que a cloroquina “funciona”. Os problemas começam aí: primeiro, praticamente qualquer coisa – sal de cozinha, água e sabão – é capaz de impedir replicação de vírus em células cultivadas; o organismo humano é um ambiente muito mais complexo.
Segundo, células Vero, derivadas de rins de macacos, são muito diferentes das células pulmonares, onde o SARS-CoV-2 causa mais estrago. Já está provado que a cloroquina, por exemplo, não funciona contra o vírus em células pulmonares humanas.
Terceiro, a quantidade de medicamento necessária para inativar metade ou mais dos vírus presentes, mesmo nas células derivadas de macaco, é enorme, correspondendo a uma verdadeira overdose. Existe pelo menos um estudo, já publicado, mostrando que as doses necessárias para inibir vírus são inatingíveis em humanos, e outro que indica que nem mesmo uma dose dez vezes maior que a aprovada como segura para uso em pessoas tem qualquer chance de atacar o vírus no organismo humano.
A própria universidade australiana dos responsáveis pelo trabalho que lançou a moda do antiparasitário publicou um aviso para que as pessoas não usem ivermectina contra COVID-19. O alerta diz que “ivermectina não pode ser usada em humanos contra COVID-19” e que “o potencial da ivermectina para combater COVID-19 ainda não foi comprovado”.
Depois da publicação original do grupo australiano, inúmeras equipes de cientistas de todo o mundo correram para testar ivermectina em pacientes de COVID-19, ou com suspeita de COVID-19. Em novembro, o periódico científico da Sociedade Canadense de Ciências Farmacêuticas publicou uma avaliação do material produzido sobre o assunto, concluindo que, embora haja resultados a favor do fármaco, esse material “deve ser tratado com cautela, porque a qualidade da evidência é muito baixa”.
Falso positivo
Um ponto crucial e que talvez escape, até mesmo, a muitos médicos, é que estudos de má qualidade tendem a gerar resultados falsamente positivos. É fácil entender o porquê: ninguém (ou quase ninguém) decide estudar um medicamento achando que ele não funciona. Muitos estudos começam como expressões de esperança.
Se cuidados extremos não forem tomados para garantir a qualidade da pesquisa, essa esperança acaba contaminando o resultado de inúmeras formas, que vão desde a seleção dos pacientes voluntários, até decisões técnicas como quantas casas decimais levar em consideração na hora de calcular uma estatística. Um estudo de má qualidade quase sempre diz o que o autor quer ouvir.
Somando os resultados de boa qualidade que mostram que o antiparasitário não tem praticamente nenhuma chance de funcionar contra vírus no corpo humano à baixa qualidade dos poucos resultados positivos que existem, e reconhecendo o fato de que estudos ruins com desfecho positivo tendem, geralmente, a apresentar conclusões falsas, o que sobra é a constatação de que não há motivo para achar que a ivermectina faça sequer cosquinha na COVID-19.
Mas funcionou para mim!
A COVID-19 é uma doença da qual mais de 90% dos pacientes se recupera sem sofrer maiores consequências. Qualquer remédio apresentado como profilático ou redutor de sintomas vai acabar surfando na onda – roubando o crédito – do que é, na verdade, uma simples recuperação natural.
Se aos casos de recuperação espontânea de pacientes confirmados de COVID-19 adicionarmos os casos “suspeitos” — gente que na verdade teve só uma crise alérgica ou um resfriado comum –, a falsa estatística do “sucesso” da ivermectina realmente explode.
Atribuir o fato de não pegar COVID-19, ou não ter complicações da doença, ao uso de qualquer fármaco faz tanto sentido quanto atribuir o fato de nunca ter sido atropelado atravessando a rua a um amuleto da sorte. A verdade é que a maioria esmagadora das pessoas que atravessam ruas nunca são atropeladas, com ou sem amuletos.
Brasil brasileiro
O antiparasitário brilhou no céu da Pátria em 11 de junho, quando o presidente Jair Bolsonaro anunciou que “temos agora um novo remédio que parece ser melhor ainda do que a cloroquina: a ivermectina”. Logo o medicamento estava sendo incluído em kits supostamente profiláticos de norte a sul do país.
Um exemplo é a cidade catarinense de Itajaí, que gastou pelo menos R$ 4,4 milhões só nesses comprimidos (a prefeitura local também apostou em cloroquina e homeopatia contra a COVID-19). Os resultados foram pífios, para não dizer trágicos: a cidade tem o quarto maior número de mortes do estado e o dobro de Chapecó, cidade com população quase igual.
Enquanto a taxa de mortes por 100 mil habitantes em Chapecó (população, 220,3 mil) é de 49, em Itajaí (população, 219,5 mil) é de 100. Outras cidades catarinenses com entre 200 mil e 300 mil habitantes, São José (246,5 mil) e Criciúma (215,5 mil) têm taxas de mortalidade de COVID-19 por 100 mil habitantes de 66 e 77, respectivamente.
No momento, as correntes de WhatsApp e o desejo de ter um salvo-conduto para as festas de fim de ano vão mantendo o mito da ivermectina vivo. Quem corre o risco de perder a vida é quem se fia nele.
Natalia Pasternak é pesquisadora visitante do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência, "fellow" do Comitê para Investigação Cética (CSI) dos Estados Unidos e coautora do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)