No dia 19 de novembro, a Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos (NSF) anunciou a intenção de desativar o Radiotelescópio de Arecibo, localizado no município homônimo em Porto Rico. As instalações são relativamente conhecidas pelo público, tanto por já terem sido cenário de vários filmes, como 007 Contra GoldenEye, quanto pela sua associação a algum tipo de estudo sobre vida alienígena, como veremos mais à frente.
A notícia em questão, ao mesmo tempo que gera tristeza e lamentação pela desativação do telescópio, também acabou levantando a curiosidade das pessoas que se depararam com ela: afinal, qual é a importância de um equipamento científico como esse? E qual a relação entre sinais de rádio e astronomia?
O radiotelescópio de Arecibo
Construído entre 1960 e 1963, esse radiotelescópio é constituído de duas grandes estruturas que chamam facilmente a atenção: a primeira é o prato, que é uma estrutura circular de mais de 300 metros de diâmetro, cuja geometria foi calculada para refletir as ondas de rádio, tanto as emitidas do telescópio para o espaço quanto as captadas por ele; e a segunda é a plataforma de instrumentos científicos, com quase 900 toneladas, que paira a cerca de 150 metros acima do disco refletor do prato, sustentada por uma série de cabos ligados a torres ao redor.
O anúncio da intenção de desmontagem controlada do telescópio é consequência de falhas estruturais recentes. Embora ele já tenha sido atingido por vários furacões e terremotos, e consertado (veja aqui e aqui, por exemplo), a coisa se complicou de modo aparentemente irremediável após o rompimento de dois cabos de sustentação da plataforma suspensa: um em agosto e outro no início de novembro deste ano. Ambos os acontecimentos acabaram por danificar também partes do prato refletor (como se vê na figura), e ainda colocaram toda a plataforma em risco de desabamento.
Até o momento, os engenheiros que analisaram o caso não encontraram uma maneira segura de consertar o sistema, e, em decorrência disso, a solução encontrada é executar a desmontagem da plataforma suspensa de forma controlada, para salvar os equipamentos científicos que nela se encontram, antes de um eventual desmoronamento catastrófico.
O tamanho importa
Quando cursei astrofísica, na graduação, o professor usou uma analogia interessante ao se referir ao funcionamento dos telescópios: a ideia central por trás deles é operar como uma espécie de “funil”, mas ao invés de captar água, sua meta é captar luz. Da mesma forma que um funil de “boca grande”, na chuva, capta muita água para dentro de uma vasilha, um telescópio de “boca grande” também captará “muita luz” para enviar ao sensor que detecta esse sinal.
Embora não tenha sentido falar em “boca” de um telescópio, é perfeitamente adequado determinar a “abertura” dele, ou seja, o diâmetro do dispositivo captador de luz. O motivo é que a capacidade de ver alguma coisa no céu, depende, de forma bem simples, da “quantidade de luz” que conseguimos captar. Para aumentar essa quantidade, podemos, por exemplo, aumentar o tempo de exposição para formar a imagem (que é o tempo de “coleta de luz”, que, embora nossos olhos não tenham essa funcionalidade, câmeras fotográficas e telescópios têm), ou aumentar a abertura do dispositivo captador, de modo que, quanto maior ela é, melhores as chances de se fazer imagens de objetos muito distantes com melhor qualidade.
Existem outras duas variáveis de interesse: o quão “brilhoso” é o objeto que queremos ver, e a que distância ele está da Terra. Existem várias outras estrelas com brilho semelhante ao do Sol aqui mesmo na nossa galáxia, como Tau Ceti, mas a maioria delas nem mesmo é visível a olho nu, pois a luz que parte delas e nos atinge não tem intensidade suficiente. Por outro lado, a estrela mais brilhante do céu noturno, Sirius, é muito maior e mais brilhante que o Sol, mas graças à distância de mais de 8 anos-luz daqui até lá, o brilho que nos atinge não é capaz nem de ameaçar deixar o céu azul...
A lógica da coisa é a seguinte: para objetos igualmente brilhantes, mas localizados a distâncias diferentes, precisamos de telescópios com aberturas maiores para termos chances de detectar, com qualidade, imagens e informações sobre aqueles que estão mais longe. E é aqui que o Radiotelescópio do Arecibo se torna a estrela da festa, aproveitando o trocadilho.
Vamos aos números: o olho humano, por meio da pupila, tem uma abertura muito pequena, da ordem de alguns milímetros (ou alguns milésimos de metro), tanto que não conseguimos nem mesmo enxergar todos os planetas do Sistema Solar sem ajuda de instrumentos astronômicos. Falando nisso, a abertura encontrada em telescópios comuns para venda ao público geral está na faixa entre 60 e 300 milímetros (ou entre centésimos e décimos de metro). O telescópio espacial Hubble tem um espelho captador de luz com diâmetro um pouco maior que 2 metros, enquanto o maior telescópio terrestre em operação, na faixa de luz visível e infravermelho, o GTC, na Espanha, tem um conjunto de espelhos captadores de luz que gera o efeito de uma abertura equivalente a 10 metros.
E quanto ao Arecibo? Caso você tenha prestado atenção nos números do início desse artigo, reparou que o prato refletor dele tem uma abertura de mais de 300 metros! Não à toa, ocupava um lugar de destaque na astronomia, por sua capacidade de processar sinais que chegam à Terra de forma muito tênue, correspondendo às emissões de objetos astronômicos muito distantes. Era o maior radiotelescópio em funcionamento no mundo até 2016, quando entrou em operação o chinês FAST, cuja abertura fica em torno dos 500 metros. Impressionante.
Para além do tamanho, há outra diferença, por exemplo, entre o GTC e o Radiotelescópio do Arecibo: o “tipo de luz” que eles captam e analisam.
Rádio na astronomia
Já sabemos que sofremos de sérias limitações ao tentar estudar astronomia apenas com base naquilo que conseguimos ver a olho nu, justamente pela pequena abertura dos nossos olhos. Mas nossos problemas, infelizmente, não acabam por aí: o que chamamos de “luz”, cotidianamente, refere-se apenas à parte visível de um conjunto bem maior de ondas eletromagnéticas, chamado de espectro eletromagnético.
Desse conjunto, para além da luz visível (que é formada pelas cores do arco-íris), temos diversas outras faixas: raios gama, raios-X, ultravioleta, infravermelho, micro-ondas e ondas de rádio. Quando contemplamos o céu noturno, a olho nu, só temos condições de perceber uma pequena fatia do espectro, mas o Universo não tem nenhuma obrigação de só produzir fenômenos que gerem apenas o tipo de ondas que conseguimos ver.
Diferentes objetos astronômicos, e diferentes processos no Universo, geram sinais nas mais diferentes faixas de ondas eletromagnéticas. Basta nos lembrarmos da nossa estrela vizinha, o Sol, que, juntamente com luz visível, nos envia, de brinde, uma boa dose de ultravioleta: não enxergamos essas ondas, mas usamos protetor solar...
Os astrônomos sabem disso, e hoje existem técnicas de observação do céu que são especializadas em captar as diferentes faixas do espectro: os radiotelescópios, portanto, trabalham com a captação e análise de uma dessas faixas, as ondas de rádio. Mas o que há de tão interessante para ser visto por meio delas? Vamos tratar de três possibilidades distintas:
1. Estudo de fenômenos e fontes emissoras de rádio no Universo.
Os objetos mais escuros do Universo, os Buracos Negros, são exemplos interessantes do que se pode estudar por meio de um radiotelescópio. Já falamos sobre eles aqui na Revista Questão de Ciência, quando apresentamos sua principal característica: sua gravidade é tão grande que nem mesmo a luz produzida no seu interior consegue escapar. Porém, se luz do interior não nos é acessível, os fenômenos que acontecem no seu entorno produzem ondas eletromagnéticas que viajam pelo espaço e atingem a Terra. À medida que gás e poeira vão sendo sugados para o Buraco Negro, esse material forma o que se chama de disco de acreção, onde a matéria é acelerada e aquecida até tornar-se uma fonte emissora de diferentes faixas de ondas eletromagnéticas, como ondas de rádio, raios-X e até raios gama.
Outros objetos de estudo curiosos desses telescópios são os pulsares: estrelas compostas basicamente por nêutrons, que emitem sinais eletromagnéticos (dentre as possíveis emissões, estão ondas de rádio) em forma de dois feixes para lados opostos, à medida que a estrela gira. Visto a partir da Terra, se estivermos na posição adequada, eles funcionam como uma espécie de “farol”, piscando periodicamente. Com a descoberta dos pulsares, em 1967, a regularidade das emissões foi tão surpreendente que se chegou a aventar a possibilidade de se tratar de uma fonte deliberadamente produzida por alguma civilização extraterrestre. Infelizmente, não era o caso.
2. Monitoramento de objetos astronômicos.
Graças aos avanços na medicina diagnóstica, hoje é possível sondar o interior do corpo humano a partir de diferentes técnicas de imagem, como, por exemplo, tomografia, ressonância magnética nuclear, radiografia e ultrassonografia. No caso desta última, um feixe de ondas sonoras de alta frequência (por isso o prefixo “ultra”), que não conseguimos escutar, é enviado pelo aparelho para dentro do nosso corpo. Essas ondas refletem-se nos nossos órgãos e tecidos e retornam para serem detectadas. O modo como são refletidas depende do tipo de superfície, e o tempo necessário para o sinal retornar será tão maior quanto mais profundo o tecido refletor. Unindo esses efeitos, um computador processa os sinais recebidos para gerar a imagem que o médico utilizará para o diagnóstico.
Um dos modos de operação de um radiotelescópio é muito semelhante ao ultrassom. Porém, em vez de usar ondas sonoras de alta frequência, ele envia ondas de rádio para o espaço. Essas ondas vão refletir nos mais diferentes objetos astronômicos, e serão captadas novamente, aqui na Terra, pelos radiotelescópios. Com essa técnica, é possível estudar, dentre outras coisas, planetas próximos e asteroides potencialmente perigosos para a Terra.
3. Contribuições na busca por vida fora da Terra.
Da mesma forma que nossa espécie inteligente (embora algumas atitudes coloquem essa afirmação constantemente em xeque) conseguiu entender as ondas eletromagnéticas e dominar a tecnologia de envio e recepção de sinais de rádio, será que outras civilizações, que talvez existam fora da Terra, não teriam feito o mesmo? Uma das vertentes da busca de por vida extraterrestre parte da premissa que sim.
Os radiotelescópios acabam cumprindo um papel científico nessa empreitada apenas dedicando-se, de modo passivo, a captar e interpretar sinais de rádio recebidos na Terra a partir de diferentes lugares do céu. A vigilância constante, quem sabe, permitirá que, em algum dia futuro, possamos identificar um sinal cuja origem só possa ser explicada por meio de alguma fonte inteligente. Um projeto que ficou famoso, baseado exatamente nessa técnica passiva de captação, é o SETI, dos Estados Unidos.
Além da abordagem passiva, outra possibilidade é que nossa própria civilização tome à frente no diálogo. Ou seja, podemos usar nossos próprios radiotelescópios para emitir sinais de rádio que contenham informações sobre nosso planeta e nossa civilização. Foi a partir do Radiotelescópio de Arecibo que uma mensagem assim foi enviada, em 1974, em direção a um aglomerado de estrelas a mais de 20 mil anos-luz da Terra. Curiosamente, à época, nenhum exoplaneta havia ainda sido descoberto. Caso uma resposta venha, ela levará mais de 40 mil anos para chegar. É bom esperar sentado.
A mensagem é composta por 1679 bits, organizados em 73 linhas de 23 caracteres. Tanto 73 quanto 23 são números primos, o que, os autores do projeto supõem, deve ajudar os alienígenas – caso algum intercepte a transmissão – a decodificar a mensagem. A transmissão total durou menos de três minutos, e a imagem formada pelos bits pode ser vista na abertura deste artigo. As figuras representam, entre outras coisas, uma silhueta humana, a antena de Arecibo e a espiral dupla do DNA.
Os radiotelescópios exploram, portanto, apenas uma das faixas possíveis para observação do céu, mas cuja riqueza de possibilidades é impressionante. Esses equipamentos, em conjunto com outros, capazes de captação e análise das outras faixas do espectro, são peças fundamentais do arsenal da astronomia moderna.
O fim das pesquisas?
Embora o público, e os cientistas, tenham enorme apreço e reconhecimento da importância do Radiotelescópio de Arecibo, não é a sua desativação que colocará fim nas pesquisas envolvendo rádio e astronomia. O encerramento desse equipamento é, sem dúvida, uma perda para a ciência, pelo seu tamanho e capacidade de pesquisas, mas felizmente outros radiotelescópios estão em operação no mundo, como o FAST chinês. Assim, com um pouco de tristeza no coração (ou muita, dependendo do seu grau de envolvimento com o projeto), se realmente não houver uma maneira de consertar a situação em Arecibo, é vida que segue, com as pesquisas direcionadas para outros equipamentos.
Outra perspectiva interessante é o aperfeiçoamento da técnica de produção de imagens astronômicas por meio da composição da captura de luz por telescópios distintos, localizados em diferentes pontos do planeta, observando o mesmo alvo no céu. Caso você se lembre da primeira “fotografia” de um Buraco Negro, publicada em 2019, ela foi obtida exatamente desse modo: o conjunto dos observatórios usados foi capaz de gerar o efeito de um telescópio com uma abertura quase tão grande quanto o próprio diâmetro da Terra! Aliás, a tal “fotografia” não é nada convencional, tanto por ser uma construção a partir de diferentes “câmeras”, quanto por também não ser fruto de observações usando luz visível: as cores da imagem são artificias, e estão relacionadas, adivinhe só, à faixa de rádio das ondas eletromagnéticas.
Para quem ficou ainda mais curioso para conhecer o Radiotelescópio de Arecibo, recomendo assistir a um vídeo produzido pela equipe de jornalismo do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), resultado de uma visita feita por um sortudo engenheiro, meu colega de campus, professor Samuel, às instalações em Porto Rico. Ele aproveitou a oportunidade da visita para levar consigo uma câmera da equipe do IFSC, coletando um material bem interessante entre imagens e entrevistas.
Algumas notas interessantes:
1. O Radiotelescópio de Arecibo também foi desenvolvido com a capacidade de fazer pesquisas atmosféricas, especialmente na região conhecida por ionosfera. Mas, neste artigo, optamos por explorar as pesquisas envolvendo alvos astronômicos;
2. Como o prato refletor do Radiotelescópio de Arecibo é fixo, é o movimento do detector ao longo da plataforma suspensa que gera condições de “mirar” a captação de luz em regiões diferentes do céu.
3. Já que estamos falando de estudos astronômicos a partir da captação de sinais fora da faixa visível do espectro eletromagnético, vale destacar dois fatos: o primeiro é que é um sinal na faixa de micro-ondas, conhecido por Radiação Cósmica de Fundo, uma das principais evidências que nos ajudam a desvendar a origem do Universo; e o segundo é que estudos astronômicos vão além da captação de ondas eletromagnéticas, podendo também ser baseados em estudar partículas, fragmentos de matéria, que viajam pelo espaço, como o vento solar e os raios cósmicos.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia