Fazer "detox" é uma calúnia contra o fígado!

Questão de Fato
3 ago 2019

 

Sucos detox

Se eu fosse fígado, toda vez que ouvisse falar em dieta detox, alimento detox ou suco detox, processava por calúnia, injúria e difamação. O fígado trabalha 24 horas, todos os dias da sua vida – e até antes de você nascer – com 100% de sua capacidade, sem descanso, executando cerca de 500 tarefas diferentes. 

Daí vem o sujeito e diz que esse órgão espetacular, com uma capacidade de regeneração que nenhum outro órgão tem, é preguiçoso, faz corpo mole e precisa de um empurrãozinho de suco de couve com chia e laranja para funcionar direito! Ah, vá! E tudo em nome de ajudar o organismo a se livrar das tais “toxinas” – outra palavrinha usada a torto e a direito –, tarefa que normalmente o fígado e os rins realizam com um pé (rim não tem pé, eu sei) nas costas.

Esse folclore moderno do “detox” começa na crença da purga – se você pensou em purgante, acertou: muitas das nossas bisavós enfiavam uma colher de óleo de rícino goela abaixo de nossos avós regularmente, na crença de que, assim, “limpariam” o organismo da criançada. A medicina começou a desconsiderar essa prática nas primeiras décadas do século 19, mas a crença em sua eficácia persistiu no imaginário popular e no que se convencionou chamar de “medicina alternativa”, que ganhou força na década de 1970 e continua por aí, incorporada até por setores do movimento ambientalista. 

O mais importante: não existe nenhuma evidência científica de que esses procedimentos sirvam para alguma coisa, além de enriquecer uma meia dúzia de espertos que lançam linhas de produtos detox. Detox é palavra que vende, tanto que agora até uma marca de amaciante de roupas se diz detox, porque “recupera” as fibras do tecido...

“O fígado é um laboratório fantástico,” resume Flair Carrilho, professor titular do Departamento de Gastroenterologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), e diretor da Divisão de Gastroenterologia e Hepatologia Clínica do Hospital das Clínicas. Fã assumido do órgão que estuda há mais de 40 anos, Carrilho está até lançando um canal no YouTube, o Ai, Meu Fígado, para defender “esse injustiçado que leva a culpa por todos os nossos excessos na comida e na bebida, como se ele é que funcionasse mal.” 

O fígado fascina o ser humano há milênios. Vários povos antigos usavam o fígado de animais para adivinhar o futuro. Platão dizia que o órgão era sede de emoções sombrias como ira, ódio, ambição e ciúme e o Talmude, texto fundamental do Judaísmo, o coloca como centro da raiva. Em português, o adjetivo figadal significa profundo, intenso de modo negativo de onde a expressão “ódio figadal”. 

Na mitologia grega, Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para dar aos homens, foi acorrentado a uma rocha e condenado a ter seu fígado bicado, diariamente, por uma águia. A parte bicada se regenerava durante a noite. A regeneração não é tão rápida como pensavam os gregos, mas nos transplantes intervivos, em que, por exemplo, um pai doa metade de seu fígado para um filho, bastam seis meses para que ambos os fígados voltem ao tamanho normal.

O fígado começa a se formar no embrião por volta da quarta semana, e sua primeira função é dar origem aos glóbulos vermelhos do sangue do futuro bebê: essas células especializadas migram para a medula óssea no nascimento e vão manter essa função pelo resto da vida. No adulto, ele vai pesar o equivalente a 3% do peso do organismo e trabalhar a todo vapor. 

Tudo que entra pela boca – comida, bebida, álcool, medicamentos – passa pelo fígado, que sintetiza diversas proteínas e enzimas digestivas, regula o estoque de glicogênio, um açúcar complexo que é a principal reserva de energia do organismo, vai processar os glóbulos vermelhos mortos (eles se renovam a cada 120 dias), produzir hormônios. Lembra do A (adenina), T (timina), C (citosina) e G (guanina) do DNA? Adivinha onde são produzidos? No fígado, claro! Colesterol? Sim, também: 70% do colesterol é produzido no fígado e só 30% vem da alimentação. Triglicérides? Sim, também é ele que produz. Carboidratos, gordura, açúcares, proteínas, tudo é processado por ele, que também é responsável pela síntese de aminoácidos, as unidades que se combinam para formar as proteínas. 

Quer mais? Pode por na lista a síntese dos fatores de coagulação do sangue. Ele também produz a bile, armazenada na vesícula, que atua no duodeno para que as gorduras sejam absorvidas. Tem medicamentos que só são ativados depois de processados pelo fígado. Sabe aquela história de não poder tomar bebida alcóolica com alguns medicamentos? Bom, é para não sobrecarregar o coitado. E, além de tudo isso, mantém uma incrível parceria com os rins para livrar o organismo das tais toxinas.

“Toxina é tudo aquilo que a gente ingere ou produz como resultado das milhares de reações químicas que ocorrem o tempo todo no corpo, e que não têm função no organismo. Por isso, precisam ser eliminadas,” ensina o farmacêutico bioquímico Wagner Ricardo Montor, pós-doc pela Universidade de Harvard e professor adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa. De acordo com ele, quando esses metabólitos (ou seja, substâncias produzidas em reações químicas sem utilidade para o corpo) são hidrofílicos, isto é, solúveis em água, são encaminhados para os rins, que os eliminam sob a forma de urina.

“Quando essas moléculas são insolúveis em água, enzimas produzidas pelo fígado as processam, acrescentam açúcares e as transformam em compostos hidrofílicos, que podem ser eliminados tanto pela urina como pelas fezes,” explica o especialista. “E o fígado faz isso todo dia. Então, é para se perguntar quem são essas pessoas saudáveis que precisam de detox?”

Segundo Montor, a mais recente onda detox, que tem como estrela o suco de couve, começou há uns 15 anos, ancorada na crença de que o isotiocianato, uma substância presente nas brássicas, a família de vegetais que inclui couve, couve-de-buxelas, couve-flor, brócolis e repolho, otimizaria os processos hepáticos. O problema é que não há pesquisas científicas que comprovem esse efeito. 

“Nesses casos, o que costuma aparecer é o processo inverso ao das descobertas científicas. Primeiro surgem as informações de que a substância tem um efeito fantástico e o consumo vira moda. Logo em seguida, aparecem os produtos industrializados, e só bem depois começam as pesquisas para verificar se isso é verdade”, descreve. 

A couve não é o único vegetal a se tornar solução mágica para a boa saúde, ou coisa parecida. Tempos atrás, uma pesquisa mostrou, por associação estatística, que fumantes que consumiam brócolis às refeições apresentavam menor risco de desenvolver câncer. Foi o que bastou para começar a corrida para identificar o componente que produzia o efeito. Substâncias candidatas foram listadas e processadas para se tornar cápsulas (ah, os lucrativos suplementos alimentares...). Nos testes em seres humanos, porém, não tiveram efeito nenhum.

Outro dado importante. Couve é uma delícia, rica em vários nutrientes, mas na prática a necessidade que o corpo tem desses vários micronutrientes é bem pequena. “Não existe estudo, por exemplo, qual seria a dose diária de suco de couve necessária para provocar o tal efeito otimizador, caso ele exista, nem qual o máximo que se pode consumir sem que haja danos,” acrescenta. 

O organismo humano não gosta de excessos. Vale lembrar que tudo tem toxicidade: isto é, uma quantidade acima da qual o efeito benéfico não existe mais, mas sim um efeito deletério, prejudicial ao organismo. Olha o caso da água: seis litros num dia, e o sujeito vai direto para a UTI.

Flair Carrilho lembra que o fígado tem vários inimigos, como o álcool, o excesso de gordura – que pode causar esteatose, levando a uma cirrose – e, claro os vírus. “Temos vacinas hoje para algumas das hepatites virais, e tenho certeza que em alguns anos teremos para todas. Isso significa que uma hora essa lista deverá ter apenas por excessos como gorduras e obesidade, álcool e as hepatites medicamentosas, causadas por medicamentos e também por certos chás de ervas e anabolizantes,” alerta.

“As pessoas estão perdendo a saúde de tanto que buscam uma saúde idealizada. Saúde é bem-estar físico, mental e social e não a ausência de doença. Você pode ter uma doença e ser muito mais saudável do que pessoas que embarcam em dietas restritivas,” afirma a nutricionista Sophie Deram, autora do best-seller O Peso das Dietase coordenadora do Projeto de Genética do Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. 

Nascida na França e brasileira há 15 anos, Deram é ardorosa defensora do feijão com arroz, bife, legumes e salada tradicionais da alimentação dos brasileiros. “Comer demais, de vez em quando, é absolutamente normal. Estranho é sumir das festas de Natal e fim de ano porque se está fazendo alguma dieta ou não sair para comer uma pizza com os amigos por causa disso. É um exagero que afeta a vida social, e ela também é importante para a saúde,” alerta. 

De acordo com ela, o corpo gosta de normalidade e regularidade, especialmente depois desses excessos. “Nem quem mete o pé na jaca, no churrasco ou bebe demais no Carnaval precisa de detox. A melhor coisa a fazer é voltar à normalidade. Uma dieta leve e, sim, arroz e feijão, se hidratar, descansar e relaxar são tudo que o organismo precisa para se restabelecer. Suco de couve em excesso também sobrecarrega o fígado. O nosso organismo gosta mesmo é de rotina.” E, na nossa rotina diária, o fígado é simplesmente perfeito.

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética,  Bioquímica e Câncer, entre outros

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