Novo filme da DC mostra a (ou uma versão da) origem do Coringa e, sem spoilers do filme, vamos levantar uma teoria que poderia explicar muitos dos sintomas do Joker. Inclusive a possibilidade de ele ter uma doença transmissível.
Na série de videogames Batman: Arkham (Asylum, City, Knight), o homem-morcego acaba descobrindo uma provável explicação para o comportamento excêntrico do seu arquiinimigo. Mais especificamente no último jogo da série (Akham Knight), Batman está fazendo de tudo para conter um patógeno transmissível que está transformando as pessoas em… Coringas!
Ao longo da trilogia dos games, a história se desenrola enquanto você controla o Batman e às vezes até mesmo o comissário Gordon. Resumidamente (SPOILERS dos jogos), para tentar derrotar Bruce Wayne, o Coringa injeta em si mesmo a substância Titan – um superesteróode resultante da mistura de Veneno (que deixa o vilão Bane bombado) e das plantas da Era Venenosa. Resultado? Ele fica assim:
Se o jogador tiver uma certa agilidade, Batman consegue derrotar o Coringa aplicando o antídoto desenvolvido por Bruce. Ao voltar para o seu tamanho normal, o Coringa começa a perceber que sua saúde está debilitada, e sente a morte chegar aos poucos. A dose cavalar de Titan causou algo a mais em nosso sorridente palhaço.
A trama do jogo segue, e o Coringa descobre que sua doença pode ser transmitida pelo sangue.
Querendo se manter vivo a qualquer custo, ele distribui bolsas contendo seu próprio sangue para bancos de sangue dos hospitais de Gotham. Não satisfeito, também realiza uma transfusão de seu sangue para o próprio Batman, que também acaba contraindo a doença. A situação toda obriga Bruce Wayne a mostrar mais uma vez seus dons de detetive e pesquisador. Para começar a estudar a doença, Sr. Wayne consegue encontrar algumas pessoas que receberam o sangue do Coringa e foram infectadas. Muitos deles estão se transformando em versões do Coringa, e apenas uma pessoa não mostra sinais de mudança. O próprio Batman começa a ter alucinações, como as vividas pelo Joker.
Depois de pesquisar por um tempo, Bruce conclui de que os sintomas da doença são muito parecidos com a Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ). Essa doença é causada por um príon, que muito provavelmente já havia infectado Coringa. O esteroide (Titan) talvez tenha ocasionado uma mutação nesse príon, que gerou uma versão mais agressiva.
O que são príons?
“Príon” é uma união de duas palavras: proteína e infecção (do inglês: protein infection.) Para se ter uma ideia do tamanho de um príon (ou de uma proteína), pense em uma régua de colégio. Agora visualize um dos espaços entre os milímetros (os risquinhos menores). Agora, divida esse espacinho em mil pedacinhos iguais. Ok, a distância entre dois desses microespacinhos é o tamanho aproximado de uma bactéria.
Se uma bactéria fosse do tamanho de uma bola de basquete, vírus seriam aproximadamente do tamanho de uma bola de gude e as proteínas seriam aquelas “verrugas” minúsculas na superfície das bolas de basquete.
Na sua forma normal, as proteínas que se tornarão príons, são encontradas nos neurônios, células que constituem o sistema nervoso. No entanto, ainda não sabemos exatamente porquê e como isso acontece, mas, de vez em quando, uma proteína normal pode se dobrar de uma maneira diferente e sua forma tridimensional vai mudar bastante. E a forma de uma proteína é extremamente importante. Imagine que uma enzima (que é uma proteína) tem o formato de uma tesoura e a função dela é cortar um pedaço de DNA.
Se essa proteína, por algum motivo qualquer, for dobrada no formato de uma agulha, certamente sua atividade será afetada, ou talvez nem consiga realizar a função corretamente. Muitas doenças são causadas por erros de dobramento de proteína, como por exemplo, fibrose cística e talvez, até mesmo, a diabetes tipo 2. Aqui, vale ressaltar o talvez.
No desenho a seguir podemos ver qual é essa mudança. Os “cachinhos” da proteína normal passam a ser setas, nos príons.
Isso parece inofensivo, mas o mais assustador é que apenas este erro molecular simples pode tornar o príon letal. Assim como o Coringa pode dominar os outros com sua loucura, príons podem recrutar outras proteínas, para que elas se dobrem exatamente da mesma maneira. Não temos certeza de como isso acontece, mas basicamente uma proteína pode se transformar em um príon apenas por mero acaso.
Em seguida, ao entra em contato com uma proteína normal, o príon a modifica, transformando-a numa cópia de si mesmo, e essas proteínas mal dobradas tendem a se acumular, à medida que mais e mais proteínas normais entram em contato com elas.
Por fim, uma grande quantidade de proteína de príon se espalha e faz mais e mais príons. O exército de príons acabam se depositando no interior dos neurônios, formando placas e provocando a morte dessas células. As regiões doentes do cérebro têm uma aparência porosa e esponjosa característica, evidência da morte em massa de células nervosas. Os indivíduos afetados exibem sintomas neurológicos, incluindo controle muscular prejudicado, perda de memória e insônia
Note que os príons reproduzem-se recrutando e “convertendo” proteínas pré-existentes, em vez de dividirem-se, como fazem células ou bactérias. Príons são incapazes de gerar “filhotes” porque não têm material genético! Nem DNA, nem RNA. Biólogos ainda travam batalhas homéricas para definir se vírus são seres vivos ou não. Isso porque os vírus contêm material genético, mas são incapazes de se replicar sem a ajuda (involuntária) de uma célula hospedeira, diferentemente das bactérias, que conseguem se multiplicar replicando o próprio material genético. Já os príons não precisam de nenhum maquinário molecular complexo, basta que um deles entre em contato com outra proteína similar.
Esta infecção crescente pode levar a grandes aglomerados da proteína priônica, chamados amiloides. E se tudo isso não fosse ruim o suficiente, esses amiloides são extremamente resistentes à destruição. Resistem mesmo a altas temperaturas que poderiam desnaturar proteínas comuns – quando você ferve um ovo, o endurecimento da clara é resultado dessa desnaturação. A quase invulnerabilidade dos amiloides torna as doenças causadas por príons praticamente incuráveis.
Uma doença famosa que é causada por príons e você já deve ter ouvido falar é a encefalopatia espongiforme bovina. Nunca ouviu? Talvez pelo nome mais popular você se recorde: a doença da vaca louca (mad cow disease). Inclusive, no jogo, eles fazem um trocadilho em inglês com a doença e o Coringa,chamada de “mad clown disease”. Em humanos, os príons podem causar a Doença de Creutzfeldt-Jakob, a mesma que o Batman diagnosticou no Coringa.
O que é a Doença de Creutzfeldt-Jakob, ou DCJ
Esta é uma doença cerebral degenerativa semelhante à doença de Alzheimer. É transmissível, incurável e 100% letal. A doença afeta cerca de uma em um milhão de pessoas em todo o mundo a cada ano, e os produtores dos jogos de Arkham certamente fizeram a lição de casa. Isso porque quando você olha para os sintomas da DCJ, tudo começa a se encaixar na patologia do Coringa. A progressão da doença envolve mudanças na personalidade, mudanças na caminhada e no padrão de movimento, possível psicose, alucinações e paranoia.
Tudo começa a parecer plausível e Bruce Wayne passa a desvendar o mistério. A DCJ pode causar tais mudanças na personalidade e na mente por culpa do que ela faz com o cérebro. Abaixo, temos uma imagem do tecido celular cerebral de uma pessoa saudável (esquerda) e de uma pessoa infectada por um príon que causa DCJ (direita). Além disso no canto direito da imagem temos uma microscopia das células do tecido cerebral de uma pessoa saudável (acima) e de um paciente com DCJ (abaixo).
De cara, podemos dizer que algo está errado. Em todas as imagens podemos ver buracos no cérebro do paciente com CJD, dando uma aparência esponjosa, espongiforme, ao cérebro. E como já foi dito, DCJ não é causado por fungos, parasitas, vírus ou bactérias e sim por príons.
De volta ao Joker!
Recapitulando, podemos supor que o Coringa tenha sido infectado, ou que uma de suas proteínas normais se transformou em um príon que causa DCJ, uma vez que ele se transformou no palhaço insano depois de adulto. Mais adiante, vamos ver que os sintomas podem demorar anos para surgir. O Titan pode ter desencadeado uma nova mutação no príon, que passou a ser mais agressivo, supertransmissível e no fim, acabou matando o Coringa (eu disse que tinha spoilers do jogo).
Agora, sabemos como uma doença de príon como Creutzfeldt-Jakob pode causar encefalopatia espongiforme e alguns dos comportamentos que o Coringa apresenta.
Batman certamente estava no caminho certo. Mas, e a risada? Não existem relatos de pessoas com CDJ que riem sem controle. Mas será que existe uma outra doença que poderia explicar ainda melhor os sintomas do Coringa? Se realmente queremos esticar a ciência e encontrar uma analogia, no mundo real, para explicar o que pode estar acontecendo na mente do palhaço, talvez devêssemos olhar para uma outra doença, também causada por um príon, que inclusive ficou famosa pelo sintoma exótico logo que foi identificada: a doença do riso!
Kuru, a doença do riso
Em 1951, um oficial de patrulha australiano, chamado Arthur Carey, publicou um relatório chamando atenção para uma doença aparentemente nova que estava devastando um grupo de moradores nativos de Papua Nova Guiné, território que era controlado pela Austrália, na época. De acordo com o relatório, os povos chamavam a doença de kuru, vindo da palavra que significa “tremer” no dialeto local.
Carey notou os tremores incontroláveis, a perda de mobilidade e de controle nas pessoas afetadas. Além disso, ele também notou algo muito impressionante. Explosões incontroláveis de riso, seguidas de expressões vazias. Não à toa, o kuru ficou conhecida como a doença do riso.
Em 1957, os cientistas Carleton Gajdusek (Estados Unidos) e Michael Alpers (Austrália) começaram a pesquisar o que estava causando kuru num povoado da Papua Nova Guiné. Como não eram todos os habitantes e visitantes que contraiam kuru, eles descartaram a hipótese de a doença ser transmitida pelo ar. Pensaram que podia ser um vírus, mas como os sintomas demoravam meses ou até anos para surgir, imaginaram que poderia ser uma espécie de vírus lento.
Observando os costumes e a cultura do povoado durante muitos anos, eles resolveram fazer o seguinte experimento com chimpanzés: injetar células maceradas do cérebro de pessoas que tinham morrido com kuru no cérebro de macacos sadios. E por que os cientistas tiveram esse palpite?
Bem, neste caso há um fato extremamente importante ainda não foi mencionado. Esse povoado de Papua Nova Guiné praticava tradicionalmente o que é chamado de canibalismo funerário. Após a morte de membros da tribo, as pessoas comiam os corpos e cérebros de seus entes queridos, na esperança de libertar suas almas. Os cientistas também notaram que as mulheres eram as mais afetadas por kuru, e relacionaram isso ao fato de que elas comiam o cérebro dos familiares durante os rituais de canibalismo. Os homens guerreiros adultos não participavam desse ritual, ou comiam apenas partes das extremidades, como dedos e mãos.
Os chimpanzés que salvaram uma tribo
O primeiro chimanzé, Georgette, era uma fêmea de dois anos de idade e foi inoculada em setembro de 1963 com matéria cerebral de Eiro, um menino de 13 anos que morreu com os sintomas de kuru. Em maio de 1965 (20 meses depois!!) Georgette apresentou os primeiros sintomas de kuru: tremores, apatia e abatimento.
Na mesma época, Daisey, uma fêmea de 2 anos, foi inoculada com a matéria cerebral de Kigea, uma menina de 11 anos que também morreu de kuru. Assim como o caso anterior, após 20 meses, Daisey também começou a apresentar sintomas de kuru. Para Gajdusek e Alpers não restavam dúvidas: comer cérebros foi o que espalhou o kuru no povoado da Papua Nova Guiné. Hoje, cientistas acreditam que tudo começou a partir de um caso aleatório de DCJ – uma proteína normal se modificou para um príon em um dos membros da tribo. O trabalho fez com que a administração australiana proibisse essa prática de canibalismo antes mesmo dos resultados finais dos estudos e, conforme o esperado, os casos de kuru começaram a diminuir.
Vale ressaltar que aqui também temos um exemplo de que apenas ciência não resolve tudo. Tente convencer um povoado a abandonar uma de suas tradições mais características, como o canibalismo funerário, com um paper...
Tente fazer isso sendo homem branco, não sendo da tribo e indo contra a ideia que eles tinham que o kuru na verdade era uma feitiçaria lançada pelas tribos vizinhas, e que por isso travavam guerras violentas sempre que algum parente sucumbia à doença. O que ajudava a disseminar ainda mais o problema: mais mortes, mais rituais, mais kuru.
Por esse motivo, o trabalho da antropóloga médica Shirley Lindenbaum foi crucial. Além de entender e estudar a prática do canibalismo funerário, ela também facilitou o contato entre todos os pesquisadores envolvidos e a tribo da Papua Nova Guiné.
A descoberta do kuru foi uma das primeiras grandes evidências que apontavam a existência de um novo agente infeccioso. Na época os cientistas imaginaram um “vírus lento”. Mais tarde, em 1982, os estudos de Stanley Prusiner evidenciaram a existência dos príons.
De volta à Batcaverna!
Dadas as possíveis mudanças de comportamento, a transmissividade, a psicose, as alucinações e o riso patológico que uma doença de príon pode causar, temos que dizer que o Batman estava indo pelo caminho certo. Uma doença de príons como DCJ, kuru, ou uma forma mutante de “príon Coringa”, poderia produzir sintomas do tipo apresentado pelo palhaço. A transmissão pelo sangue também faz sentido. Vamos deixar a arte de comer cérebros para Hannibal Lecter e para um outro texto.
Nem tudo sobre o diagnóstico do Coringa se encaixa com a doença de Creutzfeldt-Jakob, oucom o kuru do mundo real, mas é próximo o suficiente para desconfiar que essa seria uma possível origem do comportamento do Coringa. Jokeritis, como ela também chama no jogo, é definitivamente uma encefalopatia espongiforme transmissível.
Mas vale ressaltar que estamos deixando de fora muitos dos sintomas terríveis. A DCJ, assim como a doença de Alzheimer, provoca uma terrível perda de memória, a expectativa de vida é inferior a dois anos e é uma doença terrível para todos, inclusive familiares que convivem com o paciente. Por mais que o Coringa conte uma versão diferente a cada vez que fala das suas cicatrizes, ele não apresenta nenhum dos sintomas em fase terminal.
Recomendo fortemente o documentário “Kuru – The Science and The Sorcery” e o canal “Because Science” que serviram de inspiração para o texto. O documentário mostra ainda mais detalhes sobre a saga dos pesquisadores para desvendar o mistério do kuru, que rendeu não um, mas dois Nobel de medicina.
Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenador nacional do Pint of Science no Brasil