A ciência de empurrar a Terra

Questão Nerd
12 mar 2019
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Imagem do filme de ficção científica chinês The Wandering Earth
Imagem do filme de ficção científica chinês The Wandering Earth

E se o Sol estivesse prestes a se expandir, e a engolir a Terra nesse processo? Antes mesmo do nosso querido lar ser destruído por essa expansão, o núcleo do sol será composto predominantemente de hélio, desencadeando uma explosão violenta chamada de flash de hélio. Restam aos terráqueos duas opções: partir em naves do tamanho de megalópoles ou transformar a própria Terra em uma nave, e guiá-la para a estrela mais próxima.

Esse é o enredo de The Wandering Earth (A Terra Errante, tradução livre) conto escrito pelo chinês Liu Cixin, que teve uma adaptação cinematográfica e se tornou a maior bilheteria do cinema na China. Além disso, a película foi comprada pela Netflix e deve chegar, em breve, a todos os assinantes. Na obra, o autor nos leva a um futuro onde motores alimentados pela fusão nuclear de elementos pesados já foram construídos. O maior desses motores, (chamados Montanhas) tem 11.000 metros de altura, 2.000 metros mais alto do que o monte Everest. Para levar a Terra embora, esses motores precisam vencer 2 gigantescos desafios:

Parar a rotação do planeta, pois os Montanhas estão fixos em pontos determinados dos continentes asiático e americano. Para fazerem a Terra acelerar de modo contínuo e uniforme, portanto, eles precisam que o mundo pare de girar no próprio eixo.

Alcançar a velocidade de escape, para sair da órbita em torno do Sol. Um feito nada fácil, já que nosso planeta precisa alcançar a exorbitante velocidade de 42 km/s, algo como 150.000 km/h.

Vamos imaginar o que seria necessário fazer para vencer esses dois obstáculos. Todos os cálculos são cortesia do site WolframAlpha.

Ah, sim: a partir deste ponto, o artigo utiliza notação científica para apresentar números muito grandes. Essa notação "abrevia" grandes números sob a forma de potências de dez, como em 106, 109, 10100. Se você não está familiarizado com essa forma de escrever números, pense no expoente (os dígitos que aparecem flutuando acima e à direita de cada "10") como sendo o número de vezes que o 10 é multiplicado por si mesmo. Por exemplo, 2x106 significa 2x(10x10x10x10x10x10), o que dá 2.000.000, ou dois milhões.

Parando a rotação da Terra

A energia cinética rotacional da Terra é de aproximadamente 2,137 x1029 J (joules). Para ter uma ideia do absurdo que é esse tanto de energia, a Tsar Bomba (a mais potente arma nuclear já detonada) liberou 2,4x1017 J. Portanto a rotação da Terra tem a energia de um trilhão de Tsares.

O narrador do conto de Liu Cixin diz que a rotação foi freada aos poucos, num processo que durou 42 anos. Considerando esses dados, precisaríamos produzir “apenas” 5,08 x 1027 J por ano para frear nosso pequeno pião planetário.

Em 2018, o Brasil consumiu aproximadamente 1,7 x1018 J de energia. A estimativa de consumo de energia em 2013, no mundo todo, foi de 5,67 × 1020 J. Portanto, precisamos aumentar nossa produção energética em aproximadamente 10.000.000 vezes. É bom que essa tecnologia de fusão nuclear de elementos pesados apareça logo!

Atingindo velocidade de escape

Superado o primeiro desafio, vamos para números ainda mais absurdos. A ideia dos cientistas e engenheiros da Terra errante é sair da órbita do Sol e alcançar a estrela mais próxima de nós, Proxima Centauri. Essa nova estrela faria o papel do Sol, assim que a alcançássemos. A distância que hoje nos separa dessa estrela é de pouco mais de 4 anos-luz. Isso significa dizer que levaríamos mais de quatro anos para alcançá-la se viajássemos à velocidade da luz, que é cerca de 1.079.252.848,8 km/h (pouco mais de 1 bilhão km/h).

Essa estrela não tem um planeta como a Terra para a raça humana habitar. No conto, é conhecida a existência de um planeta habitável a 850 anos-luz de distância da Terra. A melhor nave espacial disponível, no mundo criado pelo autor chinês, viaja a uma velocidade igual à metade da velocidade da luz. Nesse caso, levaríamos 1.700 anos para alcançar o tal planeta.

Esses dados fazem com que a maioria da população terrestre concorde que não seria viável ira até lá. Pois bem, convencidos de que temos que transformar a Terra em uma nave planetária, vamos aos números cabulosos.

O plano é acelerar na direção em que a Terra já está se movendo, o que faz todo o sentido, levando em conta que precisaríamos de muito mais energia para frear a Terra e começar a orbitar no sentido contrário. Vamos aproveitar a velocidade atual, que já é bem alta. Nesse momento você está viajando a 30 km/s pelo espaço em um pedaço de rocha um pouco mais rebuscado. A velocidade que desejamos alcançar é de 42 km/s. Parece pouco, certo?

A energia necessária para acelerar a massa do planeta Terra até essa velocidade é de 4,457×1032 J. Assim como no problema de parar a rotação da Terra, essa aceleração também aconteceu aos poucos. Sabemos que a órbita da Terra em torno do Sol não é perfeitamente circular, ela forma uma elipse, como na imagem abaixo.

 

Órbita elíptica

 

Aumentando a velocidade da Terra aos poucos, a elipse ficará cada vez mais alongada. Como a Terra não está mais rotacionando, quando o planeta está indo em direção ao Sol, os motores localizados no continente asiático são ligados e os do continente americano, desligados. O contrário acontece quando a Terra está se afastando do Sol. Assim sendo, temos a informação que a Terra precisaria dar 15 voltas em torno do Sol para conseguir alcançar a velocidade de escape.

Voltando aos 4,457×1032 J de energia, esse número equivale, pela famosa fórmula E=mc2, à energia obtida se você converter 5 × 1015 kg de massa em energia. Essa é a massa aproximada de 75 trilhões de seres humanos adultos, o que é aproximadamente 10.000 vezes o número de seres humanos, de todas as idades, existentes hoje.

Mas mesmo se os motores fossem movidos a sacrifícios humanos, não iríamos precisar de toda essa gente, pois no 15º ciclo vamos passar muito perto de Júpiter, e poderemos usar a energia gravitacional do planeta gigante para conseguir um empurrãozinho extra. Esse tipo de manobra, às vezes chamada de “estilingue gravitacional”, é comum em missões espaciais no mundo real, muito usada para economizar combustível.

Os motores disponíveis

No conto, um dos maiores motores consegue gerar 1,5 x1013 kgf (quilograma-força) de impulso empuxo. O primeiro astronauta americano (Alan Shepard) a alcançar o espaço, em 1961, foi carregado por um foguete que exercia 3,5 x104 kgf de impulso na decolagem.

A GE Aviation começou, há algum tempo, a testar o maior motor a jato do mundo, o GE9X. No início de maio de 2016, o motor atingiu 4,7x104 kgf de impulso empuxo. O Falcon Heavy, foguete da SpaceX, alcançou 2,26 x106 kgf de impulso empuxo, em 2018. Mesmo assim, esses motores ainda não superam o Saturno V.

O foguete da Nasa, utilizado para enviar astronautas à Lua nas espaçonaves do projeto Apollo. Essa pequena maravilha consegue chegar a 3,4x106 kgf na decolagem. Como podemos observar, os mais potentes foguetes atuais geram apenas um milionésimo do impulso das “Montanhas” da Terra errante.

Como os engenheiros chineses conseguiram desenvolver os megamotores? Engenharia genética! Na história, a humanidade levou apenas 400 anos para desenvolver os motores, graças a humanos com memória excepcional. Crianças de seis anos já sabem dinâmica orbital e transferência de órbitas planetárias.

Onde mesmo aquele pesquisador começou a modificar geneticamente embriões utilizando a técnica CRISPR de manipulação genética? Ah é!!

O trailer dá a entender que a adaptação focou mais no problema da rota de colisão com Júpiter. No conto original, aparecem até os negacionistas do envelhecimento solar, que acreditam que os cientistas estão errados e tudo não passou do maior hoax da história do planeta. Como podemos ver, não é apenas na vida real que a ciência é desacreditada, mesmo com dados robustos sobre um fenômeno iminente.

O longa ainda não tem data de lançamento na plataforma de streaming.

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenador dos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science no estado de São Paulo

 

A versão original deste artigo usava a palavra "impulso", nome de uma grandeza física que representa a atuação de uma força durante um intervalo de tempo, onde na verdade deveria ser "empuxo", que é uma forma de força. Fica aqui a correção e nossas desculpas pela escorregada...

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