O Departamento de Defesa (DoD) do governo dos Estados Unidos enviou ao Congresso americano, na semana passada, seu relatório anual sobre Fenômenos Anômalos Não Identificados (UAP, na sigla em inglês), termo que vem substituindo o velho “UFO”, ou “óvni”, para incluir eventos que não são necessariamente “objetos”, ou que não aparecem voando. A conclusão geral é que nenhum dos 291 UAPs que chegaram ao conhecimento do DoD entre agosto de 2022 e abril de 2023 representou perigo para a saúde humana ou para a segurança nacional; e que a grande maioria provavelmente resulta de falha de sensores, erro humano ou ilusões de óptica.
A íntegra do documento pode ser lida online. Os trechos cruciais são este (grifo meu):
“... o volume e o caráter não identificado da maioria dos UAPs é uma consequência direta de lacunas de conhecimento operacional. Essas lacunas são resultado direto da insuficiência dos dados recolhidos por radar, sensores eletro-ópticos ou infravermelhos; a presença de artefatos nos sensores, como lampejos de infravermelho; e efeitos ópticos, como paralaxe, que podem enganar a percepção do observador. Com base na capacidade de resolver os casos até agora, e com um aumento da qualidade dos dados obtidos, a natureza não identificada e supostamente anômala da maioria dos UAPs provavelmente vai se reduzir a fenômenos ordinários”.
E este:
“A maioria dos objetos não identificados relatados ao AARO demonstram características comuns de fontes facilmente explicáveis. Um grande número de casos nos registros do AARO permanece tecnicamente não resolvido apenas por causa da falta de dados. Sem dados suficientes, estes casos não podem ser resolvidos”. [AARO é a sigla em inglês do Gabinete de Resolução de Anomalias de Todos os Tipos, órgão criado na estrutura do DoD para investigar UAPs].
A título de exemplo, o relatório oferece um caso registrado originalmente por testemunhas militares como “cinco luzes equidistantes representando uma incursão potencial em espaço aéreo restrito” detectadas por sensores de infravermelho. O mistério acabou resolvido como “um avião comercial a cerca de 300 milhas náuticas [cerca de 550 km] do sensor”.
A produção desses relatórios passou a ser obrigatória em 2022, por decisão do Legislativo, e em resposta a um forte lobby da comunidade ufológica que, há alguns anos, vem conseguindo influenciar tanto a imprensa quando congressistas nos Estados Unidos. A publicação recebeu pouca atenção do jornalismo americano, que excepcionalmente tinha assuntos mais importantes para tratar – duas guerras, terrorismo, a crise interna no Partido Republicano, entre outros. Também, a ausência de abertura para o sensacionalismo fácil, no texto do DoD, deve ter reduzido seu magnetismo midiático.
O relatório do AARO é frustrante para a parcela da comunidade ufológica que ainda sonha com a iminência do Disclosure (“Revelação”), o momento apocalíptico em que os governos do mundo finalmente confessarão que há décadas mantêm cadáveres de ETs e discos voadores escondidos em complexos subterrâneos. O contraste entre a série de depoimentos e declarações que insinuam a chegada do Disclosure (como os boatos e fofocas apresentados por David Grusch ao Congresso) e os fatos contidos no material do AARO é irônico – ou assustador.
É improvável que o trabalho do AARO venha a causar mudança nas crenças de quem aguarda ansiosamente pelo Disclosure: como em toda teoria paranoica, evidência negativa é interpretada como prova da competência dos conspiradores, não como descarte das crenças conspiratórias. Mas o relatório é importante para responder à curiosidade geral do público a respeito do tema.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)