O mundo dos antibióticos é complicado. Auxiliam no combate a doenças potencialmente fatais, mas cientistas e agentes de saúde combatem, há décadas, a ameaça das superbactérias resistentes, estimulada pelo uso indiscriminado desses medicamentos. Diversas peças precisam se encaixar para que superbactérias consigam se multiplicar e prevalecer. Agora, para aumentar a complexidade do quebra-cabeça, alguns autores sugerem que antidepressivos também se encaixam no quadro da resistência bacteriana. Mas interpretar esses resultados requer cautela especial.
Dois estudos recentes de um grupo de pesquisadores da Universidade de Queensland, na Austrália, sugerem que certos antidepressivos podem induzir mutação e aumentar a persistência (atenção à palavra) em bactérias expostas a antibióticos. Estas pesquisas iniciais precisam ser abordadas com cautela. Embora elas tenham o potencial de mudar a forma como pensamos sobre interações medicamentosas e como um determinado grupo de fármacos pode afetar a microbiota, também é preciso cuidado para não concluir algo além do que os dados e os resultados publicados permitem.
Antes de entrar nos detalhes dos estudos é importante definir o que é resistência, persistência e tolerância a antibióticos, conceitos que com frequência são utilizados de forma incorreta.
“Resistência” refere-se à capacidade das bactérias de sobreviver e se multiplicar após serem expostas a um antibiótico. Isso ocorre em bactérias com mecanismos de defesa contra a ação do medicamento, como a produção de enzimas que inativam o antibiótico ou alterações nas estruturas que são alvo do medicamento. São mecanismos presentes ANTES da exposição ao antibiótico. Como resultado, a resistência não evoluiu como resultado da ação do antibiótico; o medicamento simplesmente seleciona bactérias que já apresentavam essa imunidade, ao eliminar todas as outras.
“Persistência” é um tipo de resistência em que as bactérias suportam uma dosagem subletal de um antibiótico e se multiplicam. Isso pode acontecer quando a bactéria adota um novo estado metabólico, como a produção de biofilmes, o que dificulta a chegada do medicamento ao microrganismo, ou quando a bactéria prolifera mais lentamente, pois inúmeros antibióticos atuam justamente no momento da multiplicação bacteriana.
“Tolerância” é a capacidade da bactéria de suportar grandes quantidades de um antibiótico sem desenvolver resistência a ele. Isso pode acontecer se as bactérias ficarem dormentes, o que diminui sua atividade metabólica e as torna menos suscetíveis. Ao serem expostas, em um segundo momento, ao mesmo antibiótico, podem não ter a mesma sorte de estar dormindo e ser eliminadas pela droga.
Voltando aos experimentos feitos em laboratório com antidepressivos, cientistas mostraram em 2018 que a fluoxetina (comumente conhecida como Prozac) pode aumentar a frequência de mutação em bactérias E. coli em até 38 vezes a mais do que o normal. À medida que a frequência da mutação aumenta, também aumentam as chances de surgimento de bactérias resistentes.
E foi exatamente isto que os pesquisadores observaram. A resistência a diversos antibióticos aumentou em até 16 vezes após as bactérias serem expostas ao antidepressivo. Em uma terceira análise, os pesquisadores demonstraram que os antidepressivos podem aumentar a persistência das bactérias, tornando a erradicação dos microrganismos mais difícil.
A forma como a fluoxetina poderia interferir na resistência microbiana também foi abordada no estudo. Os autores mostram que há um aumento na produção de bombas de efluxo nas bactérias expostas ao antidepressivo. O que seriam essas bombas de efluxo? Bom, assim como as bactérias têm uma via que permite a entrada dos antibióticos pela membrana, elas também podem apresentar canais de saída. Seria como se a bactéria vomitasse algo que não caiu muito bem. Segundo os autores, a fluoxetina provocaria o aumento do número de vias de saída dos antibióticos.
No entanto, essa reação de “enjoo” bacteriano pode acontecer por vários motivos. Como os pesquisadores, porém, não testaram nenhum outro composto além da fluoxetina, fica a dúvida sobre se a maior resistência observada seria causada especificamente pelo antidepressivo ou representa um efeito que pode surgir de qualquer coisa que aumente as bombas de efluxo.
O efeito de aumentar taxa de mutação também não é uma causa específica do aumento de resistência a antibióticos. Mutações são como apostas na loteria: jogar muito aumenta a chance de ganhar um prêmio, mas não garante nada.
Outro problema que complica muito qualquer tentativa de traduzir o resultado laboratorial para o mundo real é a concentração de fluoxetina usada nos testes, de 100mg/ml. Os autores mostram preocupação com a concentração de fluoxetina em água de esgoto, mas usam uma concentração muito acima daquela observada em condições ambientais, na faixa de 0,012 a 1,4 ug/ml. (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/20821422/, https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3989372/).
No segundo estudo, publicado em 23 de janeiro de 2023, são apresentados testes semelhantes feitos com outros cinco antidepressivos: sertralina, escitalopram, bupropiona, duloxetina e agomelatina. Assim como no estudo de 2018, os autores também observaram um aumento na resistência aos antibióticos.
Dentre os antidepressivos testados, os que mais aumentaram a resistência das bactérias após a exposição foram a sertralina e a duloxetina. Além disso, os dois antidepressivos aumentaram a produção de bombas de efluxo, assim como a fluoxetina do estudo anterior.
Esta é uma descoberta significativa, pois sugere que o uso de drogas não antimicrobianas (como os antidepressivos) poderia tornar as infecções bacterianas mais difíceis de tratar. Os pesquisadores acreditam que um segundo mecanismo por trás deste fenômeno – além das bombas de efluxo – pode estar relacionado à forma como os antidepressivos afetam a capacidade das bactérias de reparar seu DNA, o que aumentaria o número de mutações. Mas, novamente, tudo depende da concentração utilizada e das condições de crescimento da bactéria. Induzir aumento de taxa de mutação não garante aumento de resistência a antibióticos, apenas aumenta a probabilidade disso acontecer.
Os pesquisadores também observaram que esta não é a primeira vez que os antidepressivos apresentaram impacto nas bactérias. Estudos anteriores já mostraram que os antidepressivos podem afetar o crescimento e comportamento de bactérias e até mesmo mudar a forma como as bactérias se comunicam entre si.
Embora as descobertas deste estudo sejam certamente preocupantes, é importante ressaltar que as pesquisas foram realizadas em um ambiente controlado de laboratório. O aumento da taxa de mutação e das bombas de efluxo foi observado após indução de estresse oxidativo. “Estresse oxidativo” é o nome dado aos efeitos nocivos das espécies reativas de oxigênio (ROS) nas células bacterianas. As ROS são moléculas quimicamente reativas contendo oxigênio (como a água oxigenada) que podem destruir componentes da bactéria, como DNA e proteínas. As bactérias possuem sistemas de defesa contra o estresse oxidativo, como enzimas antioxidantes e proteínas de reparo do DNA.
Portanto, não é novidade que o estresse oxidativo aumenta a taxa de mutações. A novidade aqui seria que antidepressivos em concentrações altas causam esse tipo de estresse. Para confundir ainda mais as conclusões, os estudos foram conduzidos em ambientes aeróbios (na presença de oxigênio). Quando foram feitos os controles em ambientes anaeróbios (na ausência de oxigênio), não foi observado estresse oxidativo e nem taxa de mutação elevada. Portanto, serão necessários mais estudos para entender as implicações dessas descobertas no mundo real.
Talvez a conclusão mais interessante destes estudos não esteja relacionada a antibióticos, mas ao fato de que antidepressivos podem ser agentes indutores de estresse oxidativo para bactérias. Os autores inclusive mostraram que a resistência a bacteriófagos (vírus que infectam bactérias) também aumentou no experimento, indicando que o efeito observado não é direcionado especificamente a antibióticos, mas provavelmente ocorre ao acaso, como resultado da maior taxa de mutação. Seria interessante testar outros compostos, além de antidepressivos, que também podem induzir estresse em bactérias. O que será que acontece com anti-inflamatórios, por exemplo?
Portanto, se você já faz uso de antidepressivos, NÃO interrompa o tratamento apenas por conta destes estudos. Os autores inclusive reforçam esse recado em uma recente entrevista à revista Nature.
Também vale lembrar que o estudo só examinou alguns antidepressivos específicos, então ainda é preciso saber se essas descobertas podem ser estendidas para outros antidepressivos e outras drogas não antimicrobianas. Por fim, os estudos foram feitos apenas com bactérias E. coli, então não está claro se essas descobertas se aplicariam a outros tipos de bactérias.
Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil