Periódicos científicos são muito mais do que meros divulgadores dos avanços do conhecimento e descobertas científicas. Também são – para o bem ou para o mal – um grande negócio, principalmente para quem os controla. Segundo relatório divulgado pela Associação Internacional de Editores Científicos, Técnicos e Médicos (STM), com sede na Holanda, o mercado global de publicações acadêmicas foi de US$ 28 bilhões em 2019. Era questão de tempo, portanto, que ele atraísse fraudadores e golpistas da internet.
Demonstrando grande oportunismo e criatividade, esses amigos do alheio digital inventaram uma forma de crime, no mínimo, inusitada: o “sequestro” de periódicos. De acordo com um dos primeiros relatos publicados sobre o assunto, na revista Science, trata-se uma evolução de uma prática anterior dos golpistas. Eles criavam uma versão convincente do site do periódico-vítima, com um endereço na internet quase idêntico, mudando uma letra ou duas, e então direcionavam o tráfego da Web para si.
Agora, os fraudadores deram um largo passo à frente. Simplesmente roubam o endereço original do periódico que querem sequestrar, ou seja, o domínio na internet. Além disso, adotam seus títulos, ISSNs e outros metadados. Então, como o endereço e outras marcas de identificação são os oficiais da publicação, é muito difícil constatar que se trata de uma falsificação. Sem ter como saber disso, os visitantes podem fazer login nos sites de periódicos sequestrados, dar senhas ou dinheiro, enquanto tentam pagar assinaturas ou taxas de publicação de artigos.
Segundo a Science, o sequestro só pode ocorrer quando os veículos são descuidados com a administração e a segurança do site. Conforme lembra um dos citados no artigo, outras empresas investem pesadamente em segurança cibernética, e agora revistas acadêmicas terão que seguir este caminho, pois há muito mais do que apenas dinheiro em jogo, como reputação e confiança.
Para o médico epidemiologista Guilherme Werneck, doutor em Saúde Coletiva e professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o problema é muito grave, “embora ainda tenha uma dimensão muito menor” do que outros relacionados à integridade na publicação científica, como falsificação de dados e plágio, ou a avalanche de revistas de baixíssima qualidade editorial, comumente denominadas de “periódicos predatórios”.
De qualquer forma, ele considera o tema muito importante e que precisa ser enfrentado rapidamente, enquanto essas fraudes ainda afetam apenas alguns revistas vulneráveis individualmente. “Nada impede que, no futuro, os próprios sistemas de referências sejam sequestrados, levando a impactos imensos no sistema de publicação científica mundial”, alerta.
Pode ser um problema menor em relação aos outros, mas já existem dezenas, senão centenas, de periódicos clonados ou sequestrados, inclusive pelo menos quatro brasileiros, que estão incluídos na lista de Beall: Acta Cirúrgica Brasileira, da Sociedade Brasileira para o Desenvolvimento da Pesquisa em Cirurgia; Iheringia Série Botânica, da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul; Anais da Academia Brasileira de Ciências; e Revista Brasileira de Medicina do Esporte.
Procurados pela reportagem da RQC, os responsáveis por essas publicações não retornaram a solicitação de entrevista.
O físico Piotr Trzesniak, professor titular aposentado da Universidade Federal de Itajubá e secretário geral da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC Brasil), explica que o nome da lista vem de Jeffrey Beall, um bibliotecário do Colorado, nos Estados Unidos. “Ele publicou listas de editoras e revistas predatórias até 2017, quando repentinamente sua página (inclusive pessoal) saiu ou foi retirada do ar”, explica. “Mais sobre isso em https://en.wikipedia.org/wiki/Jeffrey_Beall#Website_removal”.
Em um artigo publicado no Retraction Watch, um site que informa sobre retratações de papers e temas relacionados, a pesquisadora Anna Abalkina, da Universidade de Berlim, na Alemanha, traz alguns exemplo emblemáticos de periódicos clonados. Um deles é o caso da Talent Development and Excellence, que clonou uma revista já existente e conseguiu indexar centenas de artigos na Scopus, uma das principais e maiores bases de dados de literatura acadêmica do mundo.
No mesmo texto do Retraction Watch, ela aponta uma das características dos veículos sequestrados, que é publicar artigos que não têm nada a ver com a área de cobertura do original. O caso citado é dos Annals of the Romanian Society for Cell Biology, um jornal especializado em bioquímica, genética e biologia molecular, que publicou um artigo sobre a Grande Guerra Patriótica – a resistência soviética à invasão da Alemanha em 1941.
Outro artigo no Retraction Watch revela que a biblioteca da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre COVID-19 contém centenas de papers de periódicos sequestrados. Também neste texto é apresentado outro exemplo de publicação totalmente fora da área de cobertura do veículo. A edição fraudulenta do Turkish Journal of Computer and Mathematics Education (TURCOMAT) publicou o artigo A Tecnologia do Mobile Banking e seu Impacto no Crescimento Financeiro durante a Pandemia de COVID-19 na Região do Golfo, que não tem absolutamente nada a ver com matemática e educação.
Além de lesarem financeiramente autores e assinantes, as revistas clonadas podem causar uma séries de outros danos. “A oferta delas é uma prática predatória com estratégias próprias”, diz Sonia Vasconcelos, do Laboratório de Ética em Pesquisa, Comunicação Científica e Sociedade do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ. “Porém, independentemente das estratégias utilizadas no fluxo de produção de periódicos predatórios e sequestrados (considerando as distinções entre eles), o fato é que alimentam a circulação de resultados cuja confiabilidade é duvidosa”.
Nesse mar de informações, ela acrescenta, misturam-se as que vêm de pesquisa acadêmica de autores bem-intencionados, que não reconhecem, necessariamente, a natureza predatória dos periódicos. “Mas manuscritos não submetidos a uma avaliação científica de especialistas que, apesar dessa ausência, são legitimados por um periódico geram uma aparente ‘certificação’ que pode ser desastrosa para o registro científico”, alerta. “Embora haja um reconhecimento cada vez maior na academia de que a avaliação científica pelos pares precisa ser aprimorada, conceber o processo de autorregulação da ciência desconectado dessa avaliação (peer review) é complicado e me parece ingênuo”.
Para Werneck, as consequências dessa prática “são gravíssimas”, porque artigos publicados nessas revistas sequestradas são disseminados e distorcem as conclusões acadêmicas. “Por exemplo, a pesquisadora Anna Abalkina encontrou vários artigos originados de periódicos sequestrados na lista de artigos sobre COVID-19 da Organização Mundial da Saúde, o que dá legitimidade a trabalhos muitas vezes de baixa qualidade e sujeitos a todo o tipo de desvio ético”, diz.
Trzesniak acredita que não é apenas o lucro que move os fraudadores. “Há cerca de uma década, Helio Kuramoto, o arquievangelista brasileiro do acesso aberto, mostrou em uma palestra um slide com uma capa de revista e um carro popular, perguntando o que eles tinham em comum: era o preço (carro versus assinatura anual)”, conta. “As editoras da época tinham olho grande, mas prestavam um serviço de qualidade”.
No caso das revistas predatórias e sequestradas, ele diz que certamente têm o lucro como objetivo principal, mas também são desprovidas de ética e integridade. “Isso, por um lado”, diz. “Por outro, existe a pressão dos órgãos de fomento para que os pesquisadores publiquem, levando-os a não atentar devidamente para o veículo que selecionam, desse modo alimentando os predatórios com recursos e material – isso para pesquisadores sérios ou ingênuos. Mas também se abre um espaço para os autores sem ética e integridade, e é aí que está o perigo. Resumindo, para que o pior malefício das atividades de uma publicação dessas ocorra, é preciso patifes na autoria e na editoração”.
Werneck diz que é importante salientar que a situação dramática que vive a ciência brasileira, em termos de financiamento, afeta também, “e fortemente”, a viabilidade dos periódicos científicos nacionais de boa qualidade. “Com a redução do financiamento às revistas acadêmicas, torna-se difícil a manutenção de administração profissional dos seus sítios da internet, incluindo aspectos referentes à segurança e também da manutenção de ferramentas profissionais de verificação de plágio”, explica. “Dessa forma, a cada dia que passa, a vulnerabilidade dos veículos a esses ataques aumenta, o que pode comprometer décadas de investimentos na qualificação da divulgação da ciência nacional”.
Correção (em 28/06/2022): A pesquisadora Sonia Vasconcelos é formada em Letras, não Bioquímica, como afirmava a versão original desta reportagem
Evanildo da Silveira é jornalista