"Viés de sobrevivência" exagera papel do mérito na academia

Questão de Fato
28 out 2021
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Para a maioria das pessoas que tem uma carreira profissional bem-sucedida, é natural imaginá-la fruto, apenas, de trabalho árduo, dedicação e decisões acertadas, esquecendo os acasos, os eventos fortuitos e as circunstâncias sociais e econômicas iniciais de sua caminhada. Ou seja, dificilmente levam em conta o que disse o filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) de que o ser humano é o ser humano e sua circunstância. Na academia não é diferente. Os olhos da comunidade miram apenas os que “sobreviveram”, e não veem os que ficaram pelo caminho, ou seguiram trajetórias que não representam suas opções iniciais.

É o que três pesquisadores do Reino Unido chamam de “viés de sobrevivência”, num artigo publicado na revista Nature. De acordo com eles, é um erro lógico comum, que leva os cientistas sêniores, orientadores e líderes de grupos a tirar conclusões com base naqueles que “sobreviveram” a um processo de “seleção” na carreira e que, por isso, são mais visíveis do que os que não foram adiante. No caso do aconselhamento profissional ou orientação em ciências, a distorção surge porque aqueles que conseguem manter a trajetória escolhida, e muitas vezes têm a ilusão de que tudo se conquista por mérito, são os estão lá para aconselhar a próxima geração sobre como permanecer em seu campo.

Os três pesquisadores lançam mão de sua experiência pessoal para amparar seus argumentos. Eles dizem que, ao longo de suas carreiras, viram muitos exemplos de colegas dignos, mas “malsucedidos”, que deixaram seu campo de pesquisa contra sua vontade. Em contrapartida, os autores britânicos dizem que as posições que eles próprios ocupam em seus respectivos campos de atuação são, em certa medida, o resultado de muitos eventos fortuitos.

Os três atribuem parte de seu sucesso ao trabalho árduo, determinação e bom senso. Mas muito disso veio de decisões, sorte e circunstâncias que nunca chegaram a ser um conselho ou orientação profissional. Por exemplo, oportunidades de emprego para um deles e seus amigos surgiram enquanto bebiam com cientistas mais velhos. E um deles foi convidado a publicar seu primeiro livro graças a uma hashtag do Twitter, completamente não planejada. Experiências fortuitas como essas são impossíveis de replicar, mas são a chave para a capacidade de muitas pessoas de permanecer na carreira que escolheram.

O biólogo Walter Orlando Beys da Silva, da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), não tem dúvida da existência do viés de sobrevivência nas universidades e instituições de pesquisa do Brasil. “Infelizmente, muitas pessoas acreditam existir uma fórmula a ser seguida, quando na verdade há, na carreira científica, inúmeras peculiaridades inerentes ao campo ou temas de pesquisa, grupo de origem, rede de contatos, região onde atua”, explica. “Tudo isso e muitos outros fatores acabam por influenciar no progresso, facilidades ou dificuldades da trajetória na academia”.

Esse viés não existe, no entanto, apenas na carreira acadêmica. A ressalva é do educador físico Lauro Casqueiro Vianna, da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília (UnB). O problema é que, “lamentavelmente”, alguns pesquisadores acabam fomentando um único modelo de formação e dedicação, o que não é desejável. “Infelizmente, alguns orientadores acreditam apenas naquele que eles próprios seguiram”, critica. “Essa realidade é bem contraditória, porque são cientistas, e deveriam saber que uma única experiência (a dele próprio) não deveria ser mandatória para todas as outras pessoas”.

 

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Uma consequência desse viés de sobrevivência é o fato de que muitos – ou a quase totalidade – dos pesquisadores sêniores e orientadores recomendarem aos mais jovens o caminho que eles próprios seguiram. “Quando falamos de orientadores que entendem que todo mundo que faz um doutorado tem que seguir carreira acadêmica, isso é lugar-comum”, diz a bióloga e doutora em Ciências Morfológicas Carolina Neumann Keim, do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “É a regra, quase sem exceção, pelo menos no universo das ciências biológicas e da saúde. Começa já no convite aos melhores alunos em salas de aula de graduação para integrar o grupo de pesquisa do professor”.

O físico Peter Alexander Bleinroth Schulz, da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em Limeira, pensa um pouco diferente. Para ele, a existência dessa tendência de os pesquisadores sêniores e orientadores recomendarem aos mais jovens as carreiras e caminhos que eles próprios seguiram depende muito do ambiente de pesquisa. “Eu, por exemplo, sempre tive poucos orientandos de cada vez, os contatos eram diários, quando não várias vezes ao dia”, conta. “Nesse contexto, surgem as conversas mais abertas, e a percepção de que cada um é único. Por outro lado, em grupos grandes, no qual o líder tem às vezes mais de uma dezena de orientandos de cada vez, essas relações são mais genéricas e o viés de sobrevivência se instala mais facilmente. Mas não é só ele, é todo o ambiente”.

Levando em conta sua experiência e o que já viveu na academia, Silva afirma que, de fato, muitos orientadores apontam caminhos mais viáveis, baseados nas suas experiências e no que acreditam. Muitas vezes, alguns deles têm dificuldade de aceitar que colegas iniciantes possam seguir um caminho diferente e ter sucesso. “Isso é, de certa forma, desconsiderar as peculiaridades do indivíduo, e o contexto diferente da sua formação e experiência”, avalia.

 

 

Circunstâncias

Os autores do artigo na Nature também chamam a atenção para a tendência que muitos pesquisadores bem estabelecidos, e com trajetórias de sucesso, têm de presumir que todos os aspirantes a cientistas e acadêmicos desfrutam de circunstâncias – principalmente econômicas – semelhantes às de seus colegas que “sobreviveram”. Assim, os jovens poderiam se dedicar apenas à formação de suas carreiras, sem se preocupar em como vão pagar suas contas durante o período de estudos e do início da sua caminhada. Para eles, isso só pode prejudicar as perspectivas da próxima geração, e levará a equipes muito menos diversas.

Carolina concorda. De acordo com ela, há, sim, vieses implícitos e explícitos nesse sentido. “Boa parte dos pesquisadores que fundaram a ciência do Brasil eram oriundos de classes abastadas, e ainda temos muita gente dessas classes entre os cientistas do país”, explica. “A maioria desses da primeira geração já não está mais entre nós, e a maior parte dos vícios elitistas do passado desapareceu, felizmente”.

Mas muitos ainda persistem. Carolina diz, por exemplo, que em épocas mais recentes, já viu professor privilegiar gente que foi aluno de escola tradicional de renome ou escola técnica, ou quem fala inglês fluente e sem sotaque. “Há também o preconceito negativo contra quem fez graduação em universidade particular, quem tem dificuldades de relacionamento, problemas psiquiátricos, linguagem característica de subúrbios e favelas, por exemplo”, enumera.

Ela acrescenta que alguns dos oriundos de classes abastadas simplesmente não conseguem entender as dificuldades enfrentadas pelos menos favorecidos. “Em contrapartida, há muitos que são justos e não privilegiam uns em detrimento de outros”, alegra-se. “Esses comemoram o sucesso dos menos privilegiados socialmente e se esforçam para que consigam se estabelecer”.

Mesmo assim, muitos ficam pelo caminho ou não conseguem se firmar plenamente. Carolina observa que os jovens não têm consciência de que se existe um chefe e 20 subordinados, as chances de ele próprio se tornar chefe um dia são de 1/20, numa matemática bem crua. Por isso, ela diz, há nas universidades e centros de pesquisa brasileiros uma multidão de pós-docs na faixa dos 40-50 anos, que se sustenta de bolsa em bolsa e não tem emprego fixo, não contribui com o INSS e não tem carteira assinada.

Muitos desses cientistas acabam contribuindo com a orientação dos mais jovens, e têm uma história de frustrações para contar. “Já ouvi de um deles, logo após a reforma da Previdência: nunca vou me aposentar”, conta Carolina. “Se eu começar a contribuir hoje para o INSS, vou me aposentar por idade, do mesmo jeito que quem não contribuiu. Argumentei que ele poderia tentar concursos para professor ou pesquisador no interior do Brasil, ou nas capitais da Região Norte, mas ele é casado e tem filhos, e a esposa é funcionária concursada do estado do Rio de Janeiro. Há muitas outras pessoas na mesma situação, que fizeram pós-graduação na mesma época que eu, e ainda não têm uma colocação”.

Há ainda aqueles em cargos de liderança ou de orientação que procuram formar seguidores ou discípulos, sem procurar saber o que os mais jovens procuram ou qual carreira seria mais adequada para eles. De acordo com Silva, são cientistas que vêm sua trajetória como modelo único de sucesso, engessando o processo de orientação.

Essa atitude leva a decisões que resultam em formação de seguidores. “Isso não é bom, na minha concepção”, diz Silva. “A ciência clama por diversidade e discussão. Perfis semelhantes e com opiniões muito restritas acabam por limitar a diversidade”. Para mudar isso, ele cita as mentorias da Academia Brasileira de Ciências, que apresenta como exemplo de como fazer, apresentar e discutir modelos, para que os mais jovens possam tomar decisões independentes.

Também para Schulz, orientadores – sejam homem ou mulher – tendem a se identificar com seguidores que, por sua vez, se identificam com eles, ou elas. “Mas acho que o viés de sobrevivência começa antes”, ressalva. “Em universidades de pesquisa, muitos docentes já se relacionam com estudantes de graduação dessa forma, quando ministram suas disciplinas. Observo que aulas e avaliações muitas vezes são pensadas para aqueles 10% que talvez tentem uma carreira acadêmica. O professor doutor ou a professora doutora são sobreviventes bem-sucedidos e apresentam o viés de esquecer que há interesses diversos, que precisam ser considerados em todas as fases de aprendizagem”.

Mas não é apenas o ego inflado ou identificação com os orientandos que leva os lideres ou orientadores a procurar formar seguidores. De acordo com Carolina, eles têm muito a ganhar em prestígio e poder, se seus alunos seguirem trajetória acadêmica. Quem tem um grupo maior publica mais e tem maior influência, mais poder, então quanto mais gente eles conseguirem influenciar, mais sucesso terão no futuro. “É frequente que os ex-alunos continuem publicando papers junto com o antigo orientador, isso é sintomático da influência dos líderes”, diz.

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Claro que, acrescenta ela, quanto melhores as posições de seus ex-alunos, e quanto mais ex-alunos em posições interessantes um pesquisador sênior tiver, mais e melhor ele vai publicar, mais poder e influência vai ter. “Não há uma preocupação em formar gente que dê origem a novas empresas, ou que vá trabalhar na indústria, ou em instituições regulatórias, como o INPI [Instituto Nacional da Propriedade Industrial], por exemplo”, explica. “E os orientadores em geral não têm nenhuma experiência nisso, pois trabalharam na academia a vida toda. É um assunto interessante, e me fez pensar sobre vários aspectos do mundo acadêmico, nos quais eu nunca tinha pensado”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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