Para Ivan Ilitch, apenas uma questão era importante: era o seu caso sério ou não? Mas o médico ignorou essa pergunta inadequada (...). Pelo resumo do médico, Ivan concluiu que as coisas estavam ruins mas que, para o médico, e talvez para todos os outros, era uma questão de indiferença. (...) Comentou com um suspiro: “Nós, pessoas doentes, provavelmente fazemos perguntas inadequadas. Mas arrisco a pergunta: no geral, minha doença é grave ou não?”. O médico olhou para ele por cima dos óculos com um olhar severo como se dissesse: Prisioneiro, se você não se limitar às perguntas que lhe forem feitas, serei obrigado a retirá-lo do Tribunal.
Ler A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstói, é testemunhar a progressiva agonia de um magistrado russo que, ao deparar-se com uma doença incurável, sente na própria pele um vazio aterrador: todos ao seu redor – colegas, familiares e médicos – parecem mais focados em formalidades e fachadas do que no que realmente interessa ao paciente. Esse romance, apesar de sua ambientação no século 19, revela um dilema incrivelmente atual: o distanciamento entre o que boa parte da medicina julga importante – exames, mecanismos, novas intervenções – e o que o paciente de fato precisa saber para viver (ou morrer) em paz. De um lado, uma conversa rebuscada sobre “rins e apêndices”, que confere uma aura de expertise. Do outro, a pergunta visceral de Ivan Ilitch: “Vou sobreviver? O que me espera?”. Tolstói expõe essa ferida e, ainda que sem intenção, nos leva a refletir sobre o que realmente importa ao paciente: os desfechos clinicamente relevantes.
Nas últimas décadas, a área da saúde tem passado por um movimento de fortalecimento de abordagens que, supostamente, colocam o paciente no centro do cuidado. Fala-se muito em “medicina centrada na pessoa”, “humanização dos cuidados”, etc. Ainda assim, é comum cairmos na armadilha de repetir o erro dos personagens de Tolstói: gastamos tempo demais extasiados pela biologia mecanicista fascinante – marcadores tumorais, cascatas bioquímicas, exames imponentes –, enquanto ignoramos o que o paciente, no fundo, mais deseja (e precisa) saber. Será que aquele tratamento prolongará sua vida com qualidade? Quais complicações podem surgir? Vai doer? Vai haver um alto custo financeiro para ele e para sua família? As indagações que fazem parte do dia a dia e dos temores reais de quem está doente permanecem, muitas vezes, veladas.
Tolstói, ao relatar a trajetória de Ivan Ilitch, não economiza nas críticas à sociedade que o rodeia. Colegas de tribunal, em vez de lamentar sua morte iminente, logo especulam sobre quem herdará a vaga e o salário. A esposa, sem disfarçar muito, preocupa-se com o valor da pensão a que terá direito quando ele morrer. Já os médicos, como marionetes de um sistema burocrático, discutem se é “afecção do rim ou do apêndice” sem jamais encarar a questão da finitude, que tanto atormenta Ivan. É exatamente essa “farsa” – no vocabulário do próprio Tolstói – que intensifica o sofrimento do paciente.
No contexto contemporâneo da prática médica, costumamos enumerar algo que os epidemiologistas chamam de “desfechos substitutos” (ou surrogate endpoints). São medições clínicas e laboratoriais que, inferimos, podem estar correlacionadas ao que realmente interessa. Por exemplo: dizer que um novo medicamento para câncer reduziu em 30% o tamanho do tumor observado em exames de imagem. Soa promissor, mas essa redução de tamanho significa que o paciente viverá mais? Ou viverá melhor? Ou, ao contrário, agregará semanas de vida, porém em sofrimento e sem poder se levantar da cama? Eis o alerta que, de certa forma, a obra de Tolstói já fazia no século 19: devemos olhar mais para os desfechos relevantes ao paciente do que para os desfechos substitutos.
Os 6 “Ds”
Para abordar a questão dos desfechos realmente importantes para o paciente, há uma proposta conhecida como os “6Ds” (adaptada aqui do que Grant S. Fletcher descreveu no livro "Epidemiologia Clínica"). Essa abordagem permite organizar de forma clara as dimensões que impactam diretamente a vida do paciente. São elas:
Decesso (um substituto que tomei aqui a liberdade de utilizar em português para me referir a morte – do inglês, Death).
Doença (ou sua evolução real).
Desconforto (dor, náuseas, angústia, etc.).
Deficiência funcional (perda de habilidades, limitações na vida diária).
Descontentamento (impacto na satisfação, humor, bem-estar psicológico).
Despesa (custos, gastos, dívidas geradas).
Se aplicarmos esse prisma ao caso de Ivan Ilitch, percebemos que ele não consegue resposta a quase nenhuma dessas dimensões. Uma das primeiras perguntas do protagonista é sobre seu prognóstico, isto é, o risco de morte iminente (Decesso). Quer saber também se vai continuar sentindo dor lancinante (Desconforto) ou se poderá retomar o trabalho e suas atividades rotineiras (Deficiência funcional). Possivelmente, gostaria de ter alguma estimativa de quanto tempo de vida resta, até para lidar com questões de despesas familiares. Nada disso, porém, é discutido com franqueza.
O sistema médico retratado por Tolstói gira em torno de uma mecânica burocrática, numa manobra de negação que se retroalimenta: “Não vamos falar em morte; isso não é assunto de paciente, é assunto nosso, entre médicos”. Então Ivan, isolado, sofre em silêncio.
Um eco na atualidade
A obra de Tolstói é perturbadora, mas retrata um cenário que não é exclusivo da Rússia do final do século 19. No século 21, muitos pacientes seguem tendo consultas iguais às de Ivan Ilitch. Saem do consultório sem saber o que esperar, levando na bolsa uma lista imensa de pedidos de exames, nomes complicados de doenças e talvez um laudo repleto de termos técnicos. O paciente pergunta timidamente: “Doutor, isso é grave? Vou poder continuar a trabalhar? Minha dor vai desaparecer?” – E, em troca, ouve algo como: “Vamos ver o resultado da ressonância e dos seus níveis enzimáticos… Se o seu fator ‘X’ estiver elevado, pode haver necessidade de biópsia, mas calma, não podemos dizer nada ainda”. Um déjà-vu do olhar severo por cima dos óculos do médico de Ivan Ilitch, sugerindo ao doente que suas perguntas são “inadequadas”.
Nessa lógica, confunde-se complexidade aparentemente científica com cuidado de qualidade. É inegável que a medicina moderna dispõe de recursos tecnológicos e conhecimentos aprofundados, mas há um risco de se cair na tentação do “excesso de informação fútil” para o paciente (e para o profissional). Não que marcadores e exames sejam inúteis do ponto de vista clínico – afinal, muitos diagnósticos dependem deles. O problema é quando perdemos de vista que, ao final de todo esse processo, quem sofre está interessado em desfechos reais: dor, possibilidade de morte, incapacidade de andar, custo do tratamento e assim por diante.
Há, inclusive, quem explore essas brechas com discursos pseudocientíficos. O uso de termos técnicos (“mecanismos fisiopatológicos”, “via metabólica X”, “cascatas intracelulares”) pode impressionar e distrair. É como se o profissional estivesse dizendo: “Viu só quantos conceitos interessantes? Confie em mim, nós sabemos muito sobre sua doença”. Se, ao final desse espetáculo de tecnicismos, a pergunta essencial de Ivan continuar sem resposta, sobrará apenas um monólogo vazio, distante das reais necessidades do paciente. No fim, quem paga a conta é o próprio paciente, tanto financeira quanto emocional.
A narrativa de Tolstói nos confronta com uma pergunta: por que, quase cento e quarenta anos depois, ainda patinamos no mesmo problema? Uma resposta possível é a de que a profissionalização e a tecnificação da área da saúde, embora tragam benefícios inegáveis (diagnósticos mais precisos, tratamentos mais eficazes), também carregam o risco de um fascínio excessivo pela tecnologia, esquecendo a pessoa por trás dos dados laboratoriais. Somam-se a isso rotinas aceleradas, demandas burocráticas, sistemas de saúde sobrecarregados, que acabam devorando o tempo de diálogo com o paciente.
Com isso, criamos uma cultura que é focada em resultados de exames, quando sabemos que exames são úteis apenas em contextos adequados), na prescrição de intervenções e na busca de “novidades científicas”; mas pouco habituada a uma conversa franca e a se debruçar sobre o que o paciente quer ou não para seu futuro. As consultas tornam-se atropeladas; quem ousa fazer perguntas sobre risco de vida ou de complicações graves corre o risco de ser visto como “difícil” ou “pessimista”. E, assim, a “farsa” denunciada por Tolstói em 1886 se perpetua em 2025.
O papel das evidências
Questionar o excesso de intervenções, exames e de dependência tecnológica na área da saúde é um dos pilares da Prática Baseada em Evidências (PBE), que preza por respeitar os valores e preferências do paciente – a premissa básica para a individualização do cuidado. E isso passa necessariamente pelas evidências relacionadas a desfechos clinicamente relevantes, conforme já abordado por aqui, neste artigo sobre os riscos do discurso mecanicista e neste sobre a importância da prevenção quaternária. Em outras palavras, é fundamental que as perguntas que norteiam a pesquisa e a decisão clínica sejam as mesmas que o paciente (e que Ivan Ilitch) faria.
Não basta, portanto, um estudo clínico mostrar que determinado fármaco reduz marcadores bioquímicos; precisamos saber se ele prolonga a vida, ameniza a dor, preserva a função ou diminui a ocorrência de complicações graves, por exemplo. Esses, sim, são desfechos significativos para o paciente. A citação seletiva, enfática e exclusiva de estudos que apontam somente desfechos substitutos – e não os “6Ds” – é típica de charlatanismos e tratamentos inúteis. Ao contrário, a PBE busca garantir que as intervenções realmente façam diferença nos desfechos que Ivan Ilitch, ou qualquer outro paciente, consideraria fundamentais.
Considerações finais
A Morte de Ivan Ilitch é uma obra literária, mas que funciona quase como um tratado filosófico sobre a humanização em saúde. Tolstói antecipa discussões que só ganharam corpo no século 20, como a importância de ver o paciente na totalidade de seu sofrimento e de oferecer cuidado integral.
A obra ainda reverbera como um espelho para nós, profissionais ou pacientes no século 21. Por trás das terminologias modernas, dos exames de alta resolução e das reuniões de comitês científicos, continua pulsando a mesma questão: estamos respondendo às perguntas que realmente importam ao paciente?
Tolstói nos lembra que as perguntas mais difíceis são também as mais importantes. Olhar nos olhos do paciente e não fugir delas é um compromisso ético e humano. E a prática profissional em saúde norteada por evidências científicas se alinha a essa necessidade: reduzir as incertezas e sofrimentos desnecessários, oferecendo clareza sobre o que o indivíduo realmente enfrenta, quais as reais opções, e como cada decisão afeta o que é importante para ele. Estamos prontos para encarar essas perguntas?
André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros "Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades" e "50 Casos Clínicos em Farmacologia" (Sanar), "Porque sim não é resposta!" (EdUFABC), "Tarot Cético: Cartomancia Racional" (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?...e o que não é. (Editora Contexto).