
A anedota de que a astrologia é a "porta de entrada" para outras pseudociências acaba de ganhar ares de realidade. Um levantamento de grupos de teorias da conspiração no Telegram abrangendo Brasil e América Latina mostra que a adesão a comunidades antivacina ou que promovem charlatanismos como dióxido de cloro (CDS, na sigla em inglês) e a chamada Solução Mineral Milagrosa (“Mineral Miracle Solution”, ou MMS, também na sigla em inglês, outra formulação também baseada em dióxido de cloro, um desinfetante e alvejante industrial apresentado como substância para um suposto "detox vacinal" a partir da pandemia de COVID-19, ou mesmo para curar a doença) tem forte relação com grupos de ocultismo e esoterismo.
A descoberta, no entanto, é apenas uma das muitas revelações do levantamento feito pelo brasileiro Ergon Cugler, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) na Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV). O trabalho rendeu uma série de sete estudos focados em diferentes aspectos do conspiracionismo no Brasil e suas interrelações, além de um mapa interativo detalhando sua popularidade e alcance em 19 países e territórios latino-americanos.
O negacionismo climático e a anticiência, por exemplo, aparecem como caminho para redes conspiracionistas mais amplas como Nova Ordem Mundial, Globalismo, QAnon e outras teorias de dominação global. Estas, por sua vez, abrem portas para grupos mais nocivos e a radicalização dos discursos, com a instrumentalização de temas religiosos e o enquadramento dos conflitos da sociedade como parte de uma verdadeira "batalha espiritual" pelo futuro da Humanidade. Manipulação também muito presente nas comunidades de apocalipse, sobrevivencialismo, ocultismo e esoterismo, onde serve para vender "cursos quânticos" e "curas milagrosas" como o CDS e a MMS, em um ciclo de disseminação de desinformação e sua monetização que se autoalimenta.

Em busca dos dados
Iniciado em 2023, quando Cugler integrava o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), uma unidade de pesquisa ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o levantamento teve como ponto de partida o desenvolvimento pelo próprio pesquisador de uma ferramenta que chamou de TelegramScrap. De software livre e código aberto, com ela Cugler consegue extrair e organizar automaticamente dados de grupos e canais abertos no Telegram a partir de palavras-chave, além de identificar as "comunidades relacionadas" sugeridas pelo próprio aplicativo e os links e convites para outros canais e grupos publicados nas conversas a partir do prefixo “t.me/”.
Cugler destaca que uma das vantagens de usar o Telegram para este tipo de levantamento é que, diferentemente de outros aplicativos de mensagens como o WhatsApp, ao ingressar em uma comunidade no Telegram é possível ler todas as publicações feitas nela no passado. Assim, em alguns casos seu sistema conseguiu recuperar postagens que remontam a dezembro de 2015, quase uma década atrás, fornecendo um panorama amplo do conspiracionismo e seu avanço nos últimos anos no Brasil e na América Latina.
Com ajuda do TelegramScrap - e um trabalho de constante de atualização do mapa interativo -, Cugler já analisou mais de 58 milhões de conteúdos conspiracionistas publicados por cerca de 5,3 milhões de usuários em centenas de mais de 800 comunidades e canais no Telegram, divididos em 15 categorias que vão de "conspiracionismo em geral" a "reptilianos e criaturas", passando por "mudanças climáticas", "óvnis" e "terraplanismo". Mais da metade dos conteúdos foram identificados como de origem brasileira, assim como cerca da metade dos usuários. Juntos, estes conteúdos acumulam visualizações da ordem de dezenas de bilhões, centenas de milhões de compartilhamentos e dezenas de milhões de reações.
"Fico feliz em ter os dados, mas triste de ver o volume", lamenta. "Este projeto nasceu olhando só para o Brasil como parte do esforço do Ibict em parceria com outros ministérios e o governo federal para pensar estratégias de enfrentamento da desinformação. Mas com o tempo fui ampliando até chegar a 19 países do continente, e mais uma categoria que é o conspiracionismo transnacional, que ultrapassa fronteiras".
O pesquisador ressalta, porém, que o levantamento não pretende ser exaustivo. Ficam de fora, por exemplo, comunidades fechadas, cujo conteúdo só pode ser acessado mediante autorização dos responsáveis, e assim não podem ser vasculhadas por sua ferramenta. Ele também não consegue determinar com certeza a nacionalidade nem de usuários nem das comunidades, fazendo a classificação com base em pistas indiretas, como a língua usada, menções aos nomes dos países, uso de suas bandeiras na descrição dos grupos e endereços para pedidos e entregas dos produtos nelas vendidos.
"Não consigo saber se o usuário é brasileiro, colombiano ou peruano, mas eu sei que a comunidade é brasileira se ela está em português, peruana se tem uma bandeira do Peru e falam do Peru, onde fazem entregas dos produtos vendidos etc. Os usuários que estão dentro dessas comunidades tendem a ser daquele espaço geográfico, mas pode ter casos que sejam pessoas de outros países que estão lá também", explica. "E é interessante ver também que elas vão traduzindo conteúdos. Por exemplo, tem uma publicação que fala que o autismo é causado por parasitas. A gente vê isso em espanhol, em um grupo de Peru, e depois acha o mesmo texto traduzido para português, com as mesmas vírgulas, com as mesmas mensagens".

Modelo de negócio
Diante disso, Cugler prepara o primeiro estudo abarcando dados de todo continente, focado justamente em desinformação e teorias da conspiração envolvendo o transtorno do espectro autista, em parceria com a Associação Nacional para a Inclusão das Pessoas Autistas. Ele mapeou 150 supostas causas do problema divulgadas nestas comunidades - de petróleo e plásticos a salgadinhos do tipo Doritos - e 150 falsas curas propaladas - e depois vendidas - nelas.
"Estas pessoas transformaram a desinformação de fato em um modelo de negócio", avalia. "Montam grupos enormes, às vezes com 20 mil, 30 mil membros e vão diariamente lá colocando conteúdos para criar pânico. Coisas como 'tem 550 mil vermes no seu intestino' e em seguida destacam: 'mas não se preocupe. Existe um protocolo tal de desparasitação para você tirar estes vermes de seu intestino'. E na publicação seguinte tem um link para o usuário comprar este tal protocolo. Criam o problema e vendem a solução".
O pesquisador relata que este tipo de conteúdo é muito comum nos grupos antivacina e não envolve apenas medicamentos ditos "alternativos", abrangendo também e-books, cursos online e outros produtos digitais.
"São comunidades que parece que foram montadas só para vender, monetizar o discurso antivacina", diz. "Nelas, muitas vezes você tem na mesma imagem já conduzindo a pessoa para problema, solução e compra, aquisição. É difícil você não ter uma mensagem pronta com um telefone falando para quem quiser comprar procurar tal pessoa. Isso é constante".

Cugler destaca que o próprio design do Telegram favorece este modelo de negócios, ao recomendar conteúdos e canais desinformativos para quem já está na rede. Com isso, o Telegram estimula uma jornada do usuário pelo serviço que o leva cada vez mais fundo no buraco de Alice das comunidades de teorias da conspiração lá presentes, em um exemplo na prática de diversos estudos que apontam que o melhor preditor para a crença em uma determinada teoria da conspiração é já endossar outra teoria da conspiração.
"O que é grave é que fui cruzando todas as categorias de comunidades e não tem uma que não tenha link para outra, todas conversam entre si de alguma forma", conta. "Eu podia resolver um problema com um medicamento inadequado e ir para um grupo de Nova Ordem Mundial, que então teria um link para um grupo de revisionismo histórico e radicalização política. E isso mostra também a possível jornada deste usuário, que às vezes pode entrar desavisado em uma comunidade porque está indignado com o governo, ou tem uma dúvida legítima sobre vacinas, e acaba capturado. Começa a achar que tem reptiliano dominando o mundo, e aí que se tomar de dióxido de cloro vai se proteger dos nanorrobôs e no fim das contas vai estar em um grupo de radicalização".
No estudo específico sobre o conspiracionismo antivacina, por exemplo, ele observou como a narrativa antivacinas é frequentemente entrelaçada com grandes teorias conspiratórias, sugerindo que aqueles que ingressam em comunidades antivacinas estão rapidamente expostos a uma rede maior de desinformação e medo.
"As ideias propagadas nas comunidades antivacinas não se limitam apenas à saúde, mas se expandem para teorias de dominação global, manipulação e crises apocalípticas produzidas por uma suposta elite. Este padrão evidencia como as teorias antivacinas funcionam como uma porta de entrada para uma vasta rede de desinformação, onde cada narrativa reforça as demais, criando um ciclo contínuo de radicalização", complementa.
Cugler também descreve no estudo como certas comunidades atuam como líderes de opinião ou centros de disseminação, em que desinformações sobre saúde são amplamente compartilhadas. Segundo o pesquisador, essa rede interna reflete a criação de um ecossistema próprio, em que as narrativas conspiratórias se retroalimentam, criando um ciclo vicioso de desinformação.
"Essa dinâmica sugere que, uma vez dentro dessa rede, é difícil para os seguidores se desvencilharem dessas crenças, pois estão continuamente expostos a narrativas que reforçam sua visão de mundo distorcida, tornando a comunidade um espaço fechado de radicalização e resistência a informações contrárias ou baseadas em evidências científicas", aponta.
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Sinal claro disso detectado pelo estudo é a forma como o fraudulento estudo do ex-médico britânico Andrew Wakefield ligando vacinas e autismo continua a surgir nas conversas como argumento contra a vacinação, apesar de já ter sido há muito tempo retratado, isto é, removido na literatura científica por ser totalmente inválido.
"Essa persistência reflete a resiliência dessa teoria conspiratória, que tem sido amplamente desmentida pela comunidade científica, mas continua a ser promovida por essas comunidades como uma verdade oculta", analisa Cugler. "A ideia de que as vacinas causam autismo serve como um ponto de convergência para diferentes narrativas de desinformação, criando uma base comum que conecta temas de saúde a questões mais amplas de desconfiança em relação à medicina convencional e às autoridades".
Já a interseção entre desinformação sobre saúde e narrativas esotéricas, relata o pesquisador no estudo, cria uma rede altamente influente e atraente para novos membros.
"Ao misturar teorias de conspiração globais com crenças alternativas, essas comunidades conseguem criar uma rede de desinformação que é ao mesmo tempo complexa e atraente, aumentando seu alcance e a dificuldade de desmantelamento dessas narrativas", avalia o pesquisador.

Novo patamar
A escala temporal dos dados que Cugler obteve também permite observar como a "popularidade" do conspiracionismo atingiu um novo patamar com a pandemia de COVID-19, pelo menos no Telegram brasileiro. Seu estudo revela que as narrativas antivacinas experimentaram um aumento de 290% durante a crise sanitária, com uma interconectividade crescente com outras teorias conspiratórias que não se limitou às temáticas de saúde, especialmente as de "dominação global" como Globalismo e Nova Ordem Mundial.
"Número de mensagens, engajamento, usuários, tudo isso mudou de patamar. Temos uma crescente durante a pandemia, um pico e, quando passou a pandemia, uma queda, mas para um degrau muito acima de antes", relata. "E mesmo quando a gente olha termos específicos, como é o caso do dióxido de cloro, da desparasitação, temos o mesmo movimento, uma tendência de manutenção. O Brasil parece que está sustentando boa parte das teorias da conspiração voltadas para sistemáticas de saúde, de charlatanismo".
Uma possível explicação para isso é outro fenômeno também já observado nos estudos sobre crenças em teorias da conspiração: como essas ideias passam a integrar a própria identidade de seus adeptos e seu senso de pertencimento a grupos, sejam político-ideológicos ou religiosos.
"Há uma instrumentalização da fé para vender soluções milagrosas em saúde, mas ela também está muito presente, por exemplo, em comunidades de apocalipse e sobrevivencialismo, que também monetizam, mas de outra forma: vendem kit de facas, kit de roupa militar. Vi grupo vendendo até bunker, ensinando como construir um bunker no seu terreno para poder sobreviver a um suposto apocalipse", conta o pesquisador.
Já com relação à ligação entre conspiracionismo e posicionamento político, Cugler cita estudo sendo conduzido por uma ex-colega do IBICT como parte de sua tese de doutorado que indica que os eventos do 8 de janeiro de 2023 em Brasília, quando manifestantes atacaram as sedes dos Três Poderes na tentativa de deflagrar um golpe de Estado, poderiam ser previstos a partir das conversas nos grupos de radicais no Telegram.
"Ela mostra o passo a passo dessas comunidades, que partem da conspiração para algum tipo de enquadramento ideológico e assim, de repente, estão lá invadindo Brasília, porque eles acham que isso vai ajudar a 'libertar o Brasil' da Nova Ordem Mundial", diz. "Eu só comecei a fazer a extração destes dados depois do acontecido, mas imagina se tivesse uma estrutura antes? Do próprio governo, dos órgãos de segurança? Podia até ter tido ali algum tipo de antecipação".
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência