Corante é nova vítima da quimiofobia

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10 fev 2025
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cerejas

 

No dia 15 de janeiro, a população norte-americana – principalmente, os fabricantes de alimentos e medicamentos – foram pegos de surpresa ao descobrirem que a FDA havia proibido a utilização do corante vermelho nº 3, eritrosina (também conhecido por seu número no Índice Internacional de Corantes, CI 45340).

De acordo com artigo publicado pela agência, FDA to Revoke Authorization for the Use of Red No. 3 in Food and Ingested Drugs, a FDA revogou a autorização em resposta a uma petição de 2022 que havia solicitado à agência rever a legalidade da eritrosina, visto que, em dois estudos conduzidos em ratos, ela havia ocasionado o desenvolvimento de câncer.

A legislação vigente proíbe a FDA de autorizar um aditivo alimentar ou corante que tenha sido identificado como causador de câncer em humanos ou animais.

No entanto, o processo pelo qual o corante causa câncer em ratos machos não ocorre em humanos. Além disso, os níveis de exposição relevantes para humanos geralmente são muito menores do que os que causaram os efeitos observados nos animais.

Estudos realizados em outros animais e em humanos não demonstraram efeitos negativos, e alegações de que o uso do corante vermelho em alimentos e medicamentos representa riscos para as pessoas não têm apoio em evidências científicas.

Os fabricantes que utilizam esse corante, como os de alimentos e medicamentos, terão até 15 de janeiro de 2027 e 18 de janeiro de 2028, respectivamente, para reformular seus produtos.

O banimento da eritrosina não é respaldado pela ciência — como a própria FDA reconhece —, mas sim por uma tecnicidade prevista na legislação de aditivos alimentares e de cor, impulsionada principalmente pelo Center for Science in the Public Interest (CSPI), uma ONG voltada à segurança alimentar e nutrição.

O problema, nesse caso, é que um dispositivo legal imperfeito impede que a agência regulatória — o único órgão responsável por analisar evidências científicas disponíveis sobre determinada substância ou alimento e certificar sua segurança para ingestão humana — exerça sua função. E, como vimos, essa lei pode ser explorada por instituições e organizações que, embora tenham uma aparência legítima, carecem de respaldo da boa ciência.

 

O que é eritrosina?

Para nos auxiliar nessa questão, utilizarei os artigos “Food colour additives: A Synoptical Overview on Their Chemical Properties, Applications in Food Products, and Health Side Effects e “The Application of In Vitro Data in the Derivation of the Acceptable Daily Intake of Food Additives”.

O primeiro trata das características químicas, propriedades, usos e efeitos colaterais dos corantes atualmente permitidos. O segundo avaliou a possível utilidade de dados toxicológicos e toxicocinéticos na definição da Ingestão Diária Aceitável (IDA) para aditivos alimentares.

Toxicocinética, resumidamente, é uma área de estudo que analisa os processos que um fármaco sofre no organismo – como absorção, distribuição, metabolismo e excreção – com o objetivo de determinar eventuais efeitos tóxicos relacionados ao tempo de exposição e ao tamanho da dose. O estudo considerou dados de curto prazo tanto in vivo quanto in vitro.

A eritrosina caracteriza-se por sua fluorescência e coloração vermelho-cereja. Apresenta-se na forma de pó ou grãos, sendo solúvel em água e ligeiramente solúvel em etanol.

Devido à coloração, seu uso é, de certa forma, limitado a produtos específicos, como cerejas cristalizadas, alguns xaropes de frutas vermelhas, coquetéis, além de balas e recheios e coberturas para bolos.

Em 1991, o JECFA – um comitê científico independente composto por especialistas em aditivos alimentares que realiza avaliações de risco e assessora a FAO e a OMS – estabeleceu uma IDA para a eritrosina de 0 a 0,1 mg/kg/dia. Ou seja, uma criança de 30 kg poderia, em tese, consumir até 3 mg do corante com segurança.

O estudo utilizado como base para essa recomendação foi o “Effects of Oral Erythrosine (2’, 4’, 5’, 7’-tetraiodofluorescein) on Thyroid Function in Normal Men”, publicado em 1987 no Toxicology and Applied Pharmacology.

Nesse estudo, pesquisadores conduziram um ensaio clínico com 30 homens saudáveis, com idade média de 27 anos, divididos igualmente em três grupos de intervenção. Cada grupo recebeu eritrosina por via oral em doses únicas diárias de 20, 60 ou 200 mg/dia, por 14 dias. Os grupos que receberam 20 e 60 mg foram tratados aproximadamente quatro meses antes do grupo que recebeu a dose de 200 mg.

Com base na avaliação de uma série de exames, incluindo hemograma e dosagem de hormônios, os autores notaram que, em uma dose de 200 mg/dia — 100 vezes superior à dose estimada de ingestão diária per capita nos Estados Unidos — tanto a secreção basal quanto a estimulada de hormônio da tireoide aumentaram significativamente, embora todas as concentrações tenham permanecido dentro da faixa normal. Além disso, o consumo necessário para que a eritrosina passe de uma substância inócua para perniciosa deve estar entre 60 e 200 mg/dia, uma concentração 30 a 100 vezes maior do que a ingestão diária estimada.

A partir dos dados encontrados neste estudo, que apresentou um NOAEL (dose na qual não são observados efeitos adversos) de 1 mg/kg de peso corporal — o equivalente à dose de 60 mg para um indivíduo de 60 Kg —, o painel do JECFA aplicou um fator de segurança de 10, para compensar o pequeno número de participantes e a duração relativamente curta do estudo. Isso resultou na IDA mencionada anteriormente, de 0 a 0,1 mg/kg/dia.

Os valores do LOAEL (menor dose na qual são observados efeitos adversos) e acima deste, por sua vez, foram obtidos a partir de estudos conduzidos em ratos alimentados com eritrosina por dois anos. O LOAEL identificado foi de 3,3 mg/kg/dia, dose na qual o corante induziu alterações nos hormônios tireoidianos. Já em valores acima desse patamar — no caso, quase 1.000 vezes o LOAEL (3.029 mg/kg/dia) —, observaram-se tumores benignos e malignos na tireoide.

Em outras palavras, a menos que você seja um roedor e consuma quantidades anormalmente elevadas de eritrosina, não há — pelo menos até o momento — nenhuma evidência de que o corante cause problemas de saúde no organismo humano.

 

A petição online

No dia 24 de outubro de 2022, o CSPI, em conjunto com outras 23 organizações e alguns cientistas, instou a FDA a remover formalmente a eritrosina da lista de corantes aprovados para uso em alimentos, suplementos alimentares e medicamentos orais. O argumento principal era que a própria agência já havia concluído que esse corante causa câncer em animais de laboratório, violando, assim, a norma legal.

O documento também ressalta que, em 1990, em resposta a outra petição para aprovar permanentemente certos usos da eritrosina que estavam provisoriamente listados, a FDA concluiu que o corante — assim como seus pigmentos e lacas (substâncias formadas pela precipitação de um corante solúvel em água com um material insolúvel, como alumínio) — induziu câncer em testes apropriados e, portanto, não era seguro para uso em medicamentos de aplicação externa e cosméticos de aplicação externa, como batons.

Além disso, naquela época, a agência declarou que tomaria medidas para proibir o uso do corante em alimentos e medicamentos ingeridos, visto que alguns estudos haviam observado que a eritrosina atuava como carcinógeno em animais quando administrada na dieta, ocasionando o desenvolvimento de câncer de tireoide em ratos.

Essa decisão foi embasada na revisão de dois estudos de longo prazo conduzidos pela International Research and Development Corp., uma empresa especializada em pesquisa na área da saúde. Os estudos em questão são os artigos "Long-term dietary toxicity/carcinogenicity study in rats. Unpublished report from IRDC" de 1981 e seu homônimo de 1982. No entanto, como os trabalhos originais não estão disponíveis na internet, a análise que farei será baseada no documento “Opinion of the Scientific Commitee on Consumer Safety CI 45430 (Erythrosine)". Esse relatório foi elaborado a partir da avaliação de três comitês científicos independentes, não relacionados à área de alimentação, que fornecem à Comissão Europeia conselhos científicos para a formulação de políticas e propostas relacionadas à segurança do consumidor, saúde pública e meio ambiente, além de alertar sobre possíveis ameaças.

Os estudos foram conduzidos em ratos e analisaram os efeitos da eritrosina quando administrada na alimentação em diferentes concentrações. No primeiro estudo, os animais receberam a substância misturada à ração em concentrações de 0,1%, 0,5% e 1%, enquanto dois grupos controle receberam apenas a ração tradicional. No segundo estudo, investigou-se uma concentração de 4,0%, comparada a um grupo controle.

Os ratos foram alimentados com essas dietas experimentais por um período de 64 dias antes do acasalamento e até 15 dias após esse período. As fêmeas continuaram a receber a eritrosina durante a gestação e lactação. Após o parto, iniciou-se a fase crônica do estudo, na qual alguns filhotes foram selecionados aleatoriamente para continuar recebendo as mesmas dietas que seus pais por 30 meses, desde a exposição intrauterina.

Os trabalhos levaram à conclusão de que a eritrosina causaria  tumores nas células foliculares da tireoide em ratos machos. Posteriormente, os estudos foram avaliados pelo JECFA, que, embora apontando algumas discrepâncias, calculou haver um aumento de risco de câncer em animais machos e um menor em fêmeas

Voltando à petição, além da FDA, o Comitê Consultivo Científico do Programa Nacional de Toxicologia (NTP) – um programa interagências pertencente ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos – revisou dados sobre a carcinogenicidade do corante em 1983, chegando à conclusão de que havia evidências convincentes de que é um carcinógeno animal.

Embora outras autoridades, como o JECFA e a EFSA (agência regulatória da União Europeia que presta aconselhamento sobre os riscos existentes e emergentes associados aos alimentos), tenham reavaliado as evidências sobre a eritrosina e mantido suas posições originais — que pode apresentar um efeito oncogênico em ratos, mas continua sendo segura da forma que é usada em produtos voltados para consumo humano —, os peticionários afirmam que a decisão da FDA de 1990, que afirma que a eritrosina causa câncer em animais, continua sendo, até o momento, a mais robusta e rigorosa.

Vale destacar que, de acordo com a legislação, mesmo que um corante encontrado como indutor de câncer apresente um risco “extremamente pequeno”, ele deve ser considerado inseguro e não pode ser aprovado.

Como podemos observar, a petição, embora "baseada" em estudos científicos, não apresenta as evidências mais robustas disponíveis sobre o corante — como os estudos realizados em humanos e revisados por organizações como o JECFA, entre outras agências regulatórias. Ademais, não leva em conta que as dosagens utilizadas nos estudos com animais exigem um esforço hercúleo para serem atingidas em seres humanos.

Além disso, é importante destacar que algumas das organizações listadas na petição adotam posturas anticientíficas em certos temas. Um exemplo é a ONG Center for Food Safety, que se opõe a qualquer alimento geneticamente modificado. O motivo? Também não sei.

Pelo que li, suas preocupações incluem o suposto aumento do risco associado ao uso de glifosato em plantações de soja transgênica, um possível risco de alergia relacionado ao consumo de milho geneticamente modificado e, aparentemente, um problema ainda não investigado com o salmão transgênico.

Se você imaginou que, em vez de apresentar evidências embasadas e discutir sua consonância com a literatura científica, essas organizações optaram por uma abordagem alarmista e quimiofóbica, parabéns: acertou em cheio.

Reconheço que esse argumento poderia ser visto como uma falácia do espantalho, já que o tema central é a eritrosina, não os organismos geneticamente modificados (GMOs). No entanto, para mim, isso apenas evidencia o baixo rigor científico dessas organizações ao definir o que é “saudável” e o que não é.

 

E o Brasil?

Como era de se esperar, a notícia da proibição repercutiu em diversos jornais brasileiros. Alguns apresentaram matérias e títulos sóbrios, enquanto outros utilizaram a velha estratégia de clickbait, como o caso da matéria  "Esse corante pode causar câncer e Anvisa está avaliando", publicada pelo Tribuna de Minas.

De acordo com uma matéria no O Globo, a Anvisa, em nota enviada ao portal G1, informou que está ciente da decisão da FDA e que revisará as referências científicas apresentadas na petição à agência. O órgão reforçou que há estudos demonstrando a ocorrência de câncer em ratos machos expostos a "altos níveis do corante", por meio de um mecanismo hormonal específico encontrado nesses animais. No entanto, uma série de estudos realizados em humanos e em outros animais não demonstraram tais efeitos.

Ainda, segundo a nota: "As autorizações de uso de aditivos em alimentos e excipientes em medicamentos podem ser revistas a qualquer tempo, caso haja novas evidências que indiquem risco à saúde".

Atualmente, a eritrosina segue as determinações estabelecidas em diferentes RDCs, sendo as principais as RDCs nº 387 e 388, de 5 de agosto de 1999, que limitam a concentração do corante a 0,005g/100g de produto para os seguintes alimentos: sobremesas de gelatina pronta para consumo, balas, bombons, chocolates e similares, confeitos, balas de goma e gelatina, torrones, goma de mascar, coberturas e xaropes, produtos de confeitaria, pós para o preparo de coberturas, entre outros. Ou seja, por lei, um produto de 1 kg, que utilize o corante, pode adicionar até 50 mg.

Embora haja uma onda de influenciadores espalhando medo sobre o corante, sem ao menos terem lido as evidências, e exigindo que a Anvisa atue pelo princípio da precaução e siga os mesmos passos do órgão americano, fico feliz em anunciar que esse vira-latismo cultural, presente em muitas áreas, não se aplica à nossa agência. Ela continua sendo um dos órgãos regulatórios mais rigorosos do mundo. Por mais que, de fato, às vezes cometa erros, a Anvisa, graças à ausência de uma lei esdrúxula como a que existe nos EUA, pode realizar seu trabalho de forma técnica.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

FDA. FDA to Revoke Authorization for the Use of Red No. 3 in Food and Ingested Drug. 2025. Disponível em: https://www.fda.gov/food/hfp-constituent-updates/fda-revoke-authorization-use-red-no-3-food-and-ingested-drugs.

SILVA, M.; REBOREDO, F. e LIDON, F. Food Colour Additives: A Synoptical Overview on Their Chemical Properties, Applications in Food Products, and Health Side Effects. Foods. 2022 Jan 28;11(3):379. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC8834239/.

WALTON, K. et al. The application of in vitro data in the derivation of the Acceptable Daily Intake of Food Additives. Food and Chemical Toxicology Vol. 37, Issue 12, December 1999, Pages 1175 - 1197.Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0278691599001076.

GARDNER, D. et al. Effects of oral erythrosine (2’, 4’, 5’, 7’ -  tetraiodofluorescein) on thyroid function in normal men. Toxicol Appl Pharmacol. 1987 Dec;91(3): 299 - 304. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/2447681/#:~:text=There%20were%20no%20significant%20changes,uptake%20values%20at%20any%20dose.

CENTER FOR SCIENCE IN THE PUBLIC INTEREST. Color Additive Petition Pursuant to 21 U.S.C. 379e, 721(b)(1) to Remove FD&C Red No. 3 From the Permanent List of Color Additives Aprroved for Use in Food and Dietary Suplements. 2022. Disponível em: https://www.cspinet.org/sites/default/files/2022-10/Red%203%20petition_24%20Oct%202022_FINAL%20%281%29.pdf

SCIENTIFIC COMMITTEE ON CONSUMER SAFETY. Opinion on CI 45430 (Erythrosine). 2010. Disponível em: https://ec.europa.eu/health/scientific_committees/consumer_safety/docs/sccs_o_030.pdf.

BLUM, D. Eritrosina: Tudo sobre a proibição do corante vermelho de alimentos nos EUA; saiba como é a situação no Brasil. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2025/01/17/eritrosina-tudo-sobre-a-proibicao-do-corante-vermelho-nos-eua-e-quais-alimentos-tem-a-substancia.ghtml

ANVISA. Resolução Nº 387, de 5 de Agosto de 1999. Disponível em: https://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/2718376/%281%29RES_387_1999_COMP.pdf/b2379c2a-c29d-4881-8d86-1cf4ef7526e1

ANVISA. Resolução Nº 388, de 5 de Agosto de 1999. Disponível em: https://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/2718376/RES_388_1999_COMP.pdf/6bb3e017-b7c6-4c78-af51-d13ff01fb118

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