Janela de oportunidade contra o negacionismo climático no Brasil e América Latina

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8 jan 2025
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poço de petróleo

O Brasil e a América Latina têm uma janela de oportunidade única na luta contra o negacionismo climático, mas ela pode se fechar em breve, se a comunicação sobre a realidade das mudanças climáticas e, principalmente, a gravidade de seus impactos não for melhor direcionada e enquadrada para o público, em especial a parcela da população que se identifica como "conservadora" ou "de direita". É o que aponta Matias Spektor, professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP) e um dos autores de estudo que traçou o perfil do negacionismo climático na região, publicado na revista Nature Communications.

A pesquisa ouviu pouco mais de 5,3 mil pessoas em amostras representativas de Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Peru e México, países que juntos respondem por mais de 80% das emissões de carbono da América Latina. Em geral, os latino-americanos concordam que atravessamos uma crise climática (mais de 90% em todos os países) como resultado da atividade humana (93% em média). Na região, o negacionismo surge principalmente quanto à percepção da gravidade dos impactos das mudanças climáticas, com apenas 65% dos respondentes acreditando que elas podem ter consequências negativas.

Segundo Spektor, o fato de o levantamento ter sido feito entre outubro e novembro 2021, antes, portanto, da sequência de desastres climáticos que atingiram o país nos últimos anos, entre eles uma seca histórica na Amazônia e a série de tempestades extremas que arrasaram o Rio Grande do Sul, não é suficiente para explicar esta dissociação.

"De modo geral, na América Latina, a experiência pessoal de um indivíduo com eventos climáticos extremos não tem efeito sobre a percepção que essa pessoa tem a respeito das consequências severas da mudança do clima", conta. "Isso de certa forma é surpreendente. Como assim uma pessoa vive um evento extremo destes, com consequências muito negativas, se não para si, para seus próximos, e isso não afeta suas crenças sobre mudanças climáticas? Mas não acho que se a gente rodasse a pesquisa hoje teria outro resultado, porque à época, três anos atrás, o Brasil já sofria com extremos eventos climáticos extremos. Chuvas fora de temporada, secas e queimadas não são um fenômeno recente. O pico de queimadas na Amazônia, com aqueles efeitos nefastos todos sobre a qualidade do ar em todo o território nacional, datam de agosto de 2019".

Para o pesquisador, o que este dado revela na verdade é que o cidadão brasileiro, e em última forma o cidadão da América Latina, tem um problema grande de atribuição.

"Por exemplo, se você pega a cobertura jornalística sobre esses eventos, de modo geral a culpa inicial é dada ou à política de habitação, ou à política urbana, ou à um problema da prefeitura. O primeiro culpado é sempre o político local, que é responsável por políticas locais, de habitação, de escoamento etc", aponta. "Mas isto não é incompatível com a pessoa entender que é um problema da mudança no clima. E isso nos obriga a uma reflexão mais ampla sobre o momento dramático que o planeta vive e a responsabilidade que o setor público, o setor privado e a sociedade civil organizada têm nisso".

 

Fatores individuais do ceticismo

Assim, a pesquisa não ficou por aí. O estudo também procurou levantar os fatores psicológicos, político-ideológicos e sociodemográficos por trás da crença - ou descrença - nas mudanças climáticas na América Latina. E foi justamente neste ponto que os pesquisadores encontraram uma grande discrepância frente ao negacionismo climático no Norte Global, o que abre um caminho único para evitar que se dissemine aqui como lá, além angariar apoio popular para ações de combate, mitigação e adaptação às mudanças climáticas na região.

Isto porque enquanto nos EUA, Europa Ocidental e outros países desenvolvidos o negacionismo climático está fortemente ligado ao posicionamento político e a fatores sociodemográficos como gênero, idade, etnia e nível educacional e de renda, no Brasil e na América Latina esta associação se dá principalmente em torno de uma personalidade mais individualista.

"O nosso resultado mais surpreendente é o fato de que, diferentemente de outras partes do mundo, no Brasil e na América Latina o cético do clima não é o sujeito mais velho, menos educado, mais pobre e menos urbano, ao passo que o mais comprometido, o mais crente na mudança do clima e suas consequências nefastas é o sujeito mais jovem, mais educado, mais rico, mais urbano. E também a descoberta de que isso não tem nada a ver com ser de esquerda ou de direita, enquanto nos EUA e na Europa tem tudo a ver: se é de esquerda, acredita (nas mudanças climáticas); se é de direita, não", diz Spektor. "O indivíduo onde se concentra o ceticismo climático no Brasil é o indivíduo típico padrão que votou nas últimas eleições municipais aqui em São Paulo, onde eu moro, no Pablo Marçal. E o que é o Pablo Marçal? O sujeito é um coach que representa esta cultura do individualismo, que a gente mensura como uma desconfiança atávica do papel do Estado e sua capacidade de prover soluções coletivas. E isso independe de renda, independe de posição social e independe de nível educacional".

E embora esta posição possa ser relacionada a uma visão de mundo mais "conservadora", ela não é necessariamente ideológica, ressalta.

"Aqui no Brasil temos ceticismo de direita e ceticismo de esquerda, crença de direita e crença de esquerda. O que diferencia é o quanto a pessoa acredita no Estado, e aqui no Brasil temos até individualista de esquerda", avalia o pesquisador. "E isso é um desafio para a América Latina, porque é uma região onde o Estado sofre muito para oferecer bens públicos, e portanto fadada a ter níveis muito altos de individualismo. E individualista não em termos de ser uma pessoa sem apreço por terceiros, ou cruel, não é isso. É individualista por ser uma pessoa que não acredita em soluções coletivas para problemas coletivos, só acredita em soluções individuais para problemas coletivos".

 

Nova comunicação pró-clima

Mas também é justamente aí que Spektor enxerga uma oportunidade para lutar contra o negacionismo climático no Brasil e na América Latina.

"Por outro lado, isto torna possível imaginar mensagens pró-clima que podem ganhar adeptos de direita, justo em um momento que o Brasil está efetivamente dando uma guinada à direita", considera. "A América Latina precisa ter plataformas pró-clima de direita, que possam mobilizar o eleitor de direita. Não há motivos para gente associar a mensagem pró-clima somente à esquerda. E isso é importante. É preciso ter mensagens que possam ter apelo para este cidadão individualista que hoje em dia é o cético do clima brasileiro, que precisa ser ganho, precisa ser trazido para o lado de cá da porteira".

Estratégia de comunicação que começaria com vozes diferentes das usuais trazendo estas mensagens.

"A primeira coisa é diversificar fontes", indica o pesquisador. "A gente precisa de vozes que tenham apelo para este público individualista. É o pastor da igreja evangélica e outras lideranças religiosas. É o presidente da Ford no Brasil, da Volkswagen no Brasil falando em alto e bom som porque estão investindo bilhões para fazer a transição energética em seus carros. Banqueiros falando sobre isso. Mas também lideranças culturais, os youtubers, os coaches, todo esse mundo da internet, esse pessoal que representa o mundo do empreendedorismo, do 'salve-se quem puder', do 'Estado é inútil e não consegue resolver nada'".

Além, claro, da forma e enquadramento destas mensagens.

"Obviamente, estas vozes não falarão nos termos da Marina Silva. O que não tem problema, porque este cidadão cético não acredita na Marina Silva", acrescenta Spektor. "A proposta não vai ser 'nossa, precisa provar o marco regulatório de proteção de terras', ou 'precisa implementar um crédito rural para que a Caixa Econômica Federal - em última instância, dinheiro público - possa subsidiar a manutenção de floresta em pé'. São mensagens sobre como a questão do clima pode ser uma forma de empreendedorismo. Como isso pode trazer satisfação pessoal, como pode trazer ganhos materiais, ainda mais em um país como o Brasil, onde tem muita oportunidade econômica que envolve a proteção do meio ambiente".

É o caminho pelo bolso, um discurso com grande possibilidade de atrair esta parcela da população.

"O problema com a palavra 'conservador' é que ela remete a uma pessoa da velha 'terra, família e propriedade'", lembra. "Só que hoje em dia não é esse o perfil do individualista brasileiro. Este perfil hoje é o Pablo Marçal, é um cara jovem que se fez sozinho, que tem presença, se liga nas redes sociais, que se informa não lendo os editoriais do Estadão em papel em casa, mas pelo TikTok, pelo WhatsApp. Um cara que não vai ter um só emprego, mas um pluralista que vai ter numerosos empregos ao longo da vida, que tem perspectivas de trabalho muito diferentes de uma geração atrás. Fazer este sujeito se perguntar 'o que eu posso fazer contra as mudanças climáticas?' seria uma revolução no país".

Diante disso, outro possível caminho para isto, indica o pesquisador, é apelar para a vaidade deste público.

"Aqui em São Paulo tem um fenômeno de prédios chiques que colocam uma placa na frente que diz 'utilizamos água de reuso'", cita. "Isso começou quando teve várias secas seguidas em São Paulo que afetaram o abastecimento de água. Então passou a ser parte do status social do seu prédio sinalizar que está de certa maneira contribuindo para lutar contra o problema. E isso não passa pelo Estado. É o setor privado, a incorporadora que construiu o prédio, é a associação de condomínio do prédio. É se mostrar estar na vanguarda do debate sobre adaptação a um mundo que convive com uma crise climática".

Para Spektor, atrair a iniciativa privada cada vez mais para o discurso e ação pró-clima desta maneira e com iniciativas deste tipo é uma estratégia necessária, mesmo diante do risco de mau uso deste espaço, como o chamado greenwashing.

"As iniciativas de greenwashing já estão aí independentemente do que a gente faz ou diz", argumenta. "O greenwashing é uma realidade horrorosa que deve ser combatida intensamente, porque o que uma empresa - principalmente uma empresa grande, uma marca conhecida - diz tem muito peso. Mas não podemos parar de tentar usar este tipo de fonte e este tipo de mensagem pelo risco de cairmos no greenwashing".

 

Risco de não aproveitar chance

Esta janela de oportunidade, no entanto, não vai ficar aberta para sempre, alerta Spektor.

"Quando participo de eventos sobre mudanças climáticas, este meu argumento não é um que as pessoas que vão para esse tipo de conferências gostam de ouvir", relata. "Tenho encontrado muita resistência no movimento ambientalista a fazer essa mudança de paradigma, o que reflete como é fundo o buraco que a gente está do ponto de vista de ter políticas de comunicação que têm alvos distintos, que fala de forma diferente com pessoas diferentes. Se a gente continuar só falando que precisa de mais regulação, de mais Estado, mais isso, mais aquilo de controle, vamos afastar essas pessoas do debate e perder seu apoio".

Segundo pesquisador, a falha em diversificar e moldar este discurso pró-clima de acordo com o público pode não só pôr a perder esta chance como entregar este contingente nas mãos do negacionismo radical.

"Esse cenário particular do Brasil e América Latina de um negacionismo climático ainda não muito influenciado por questões político-ideológicas pode mudar", destaca. "Quase metade da população brasileira não acha que as consequências das mudanças climáticas são severas. A pessoa entende que elas existem, que são causadas pelos seres humanos, mas não acha que isso vai afetar ela. Parece loucura. Mas não podemos abrir mão de metade da população. Se o custo para ganhar essa metade da população é lançar uma campanha para que bancos, grandes empresas, coaches de YouTube, influencers de TikTok desenvolvam um argumento pró-clima personalizado, individualista, narcisista, o que quiser chamar, para convencer ela, eu digo 'vamos em frente'. Vamos reduzir esse número de céticos, porque, se não, essas pessoas não vão apoiar as políticas de mitigação e enfrentamento das mudanças climáticas que precisamos com urgência".

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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