A neurociência confirma a psicanálise?

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28 ago 2024
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gato frenológico

 

Muitas pseudociências vêm buscando uma conexão forçada com a neurociência na tentativa de obter legitimidade. Teorias e práticas que carecem tanto de plausibilidade quanto de evidências tentam se aproveitar da credibilidade e prestígio associados aos estudos sobre o cérebro humano. Por exemplo, a neuroastrologia sugere que há uma correlação direta entre elementos astrológicos e a organização do sistema nervoso, enquanto o neuroreiki traça paralelos entre supostos chakras do corpo e regiões cerebrais, sugerindo que a “energização” por meio da imposição das mãos poderia "reprogramar" o funcionamento neural.

Em 2004, a prestigiada revista Science publicou um artigo intitulado Neural systems underlying the suppression of unwanted memories ("Os sistemas neurais por trás da supressão de memórias indesejadas"), que demonstrou que duas regiões do cérebro, o córtex pré-frontal e o hipocampo, desempenham papéis fundamentais no processo voluntário de supressão de memórias. Especificamente, os autores identificaram que o córtex pré-frontal está associado ao controle executivo necessário para suprimir memórias, enquanto o hipocampo, essencial para a formação e recuperação de memórias, mostra uma redução de atividade durante a supressão. Esses achados sugerem que o córtex pré-frontal inibe a função do hipocampo, atuando como um mecanismo de supressão de memórias.

Psicanalistas frequentemente citam essa pesquisa – juntamente com estudos sobre a neurobiologia envolvida em traumas e sonhos – para argumentar que Freud estava correto ao postular a existência de um mecanismo inconsciente responsável pelo recalque de memórias traumáticas. Alguns chegam até a afirmar que as descobertas da neurociência corroboram a maioria das premissas fundamentais da psicanálise. Será?

Em primeiro lugar, é importante destacar que o estudo publicado na Science, assim como outros nessa linha de pesquisa, instruiu os participantes a evitar intencionalmente determinadas lembranças. Em outras palavras, as evidências sobre supressão de memórias referem-se a processos conscientes de controle cognitivo, não corroborando, portanto, a existência de um mecanismo inconsciente, como descrito por Freud. Os próprios autores da pesquisa citada afirmam que:

“Às vezes se diz que Freud pretendia uma distinção entre Repressão e Supressão, sendo a primeira inconsciente e a segunda, consciente. No entanto, estudiosos de Freud observaram que essa distinção rígida na terminologia é uma distorção da visão de Freud, introduzida por Anna Freud, e que Freud usava o termo Repressão para se referir tanto a atos conscientes quanto não conscientes. Nós usamos o termo Repressão, mas limitamos nossa discussão à sua variedade consciente".

É perfeitamente possível selecionar estudos sobre o funcionamento do cérebro e tentar alinhar seus achados com proposições da psicanálise. Essa prática de escolher seletivamente dados que apoiam um ponto de vista específico, ao mesmo tempo em que se ignora ou exclui seletivamente as evidências que possam contradizê-lo, é conhecida na ciência como cherry picking. Ao selecionar apenas as descobertas convenientes e desconsiderar as evidências contrárias, cria-se uma falsa impressão de validação de uma teoria ou hipótese. O cherry picking distorce a realidade, levando à conclusão errônea de que a teoria ou hipótese em questão é mais bem embasada do que realmente é.

Estabelecer analogias vagas entre descobertas neurocientíficas e conceitos psicanalíticos não é suficiente para conferir veracidade ao corpo teórico da psicanálise. A verdadeira prova reside em submeter suas proposições – como a estrutura tripartida da mente (id, ego e superego), o complexo de Édipo, as fases oral, anal e fálica da infância, além dos mecanismos de defesa como sublimação e projeção – a investigações empíricas rigorosas. Uma teoria, para ser científica, precisa atender a critérios como testabilidade, replicabilidade e previsibilidade, entre outros. Nestes quesitos, a psicanálise tem falhado miseravelmente.

Embora Freud possa ter tido insights genuínos, é importante destacar que muitos termos originários da psicanálise foram assimilados, reinterpretados ou modificados ao longo do tempo. Esse processo pode culminar na falácia da equivocação, que ocorre quando uma palavra é utilizada com múltiplos sentidos, levando a conclusões enganosas. No caso da psicanálise, um exemplo ilustrativo seria algo assim: "Freud discutiu o inconsciente, e a pesquisa moderna sobre o cérebro também aborda processos inconscientes. Portanto, a psicanálise tem sido confirmada pela neurociência".

Tal argumento é falacioso porque emprega o termo "inconsciente" de maneira ambígua, sem esclarecer as diferentes conotações envolvidas. Na neurociência contemporânea, "processos inconscientes" referem-se a mecanismos automáticos do cérebro que operam fora da consciência explícita. Por outro lado, o "inconsciente" freudiano é uma construção teórica repleta de significados simbólicos e dinâmicos específicos da psicanálise. Embora o termo "inconsciente" seja comum a ambas as disciplinas, os conceitos diferem substancialmente. Portanto, é crucial que qualquer discussão que envolva termos como esse esclareça os significados específicos, a fim de evitar conclusões enganosas.

Aqui, surge uma reflexão pertinente: por que tantos psicanalistas insistem em associar sistematicamente as descobertas da neurociência a citações esparsas de Freud? Sem dúvida, é de interesse histórico rastrear achados recentes até seus precursores. No entanto, diversos filósofos já haviam explorado temas relacionados à psicanálise antes de Freud. Por exemplo, Nietzsche frequentemente abordava os impulsos e instintos profundos que operam fora do domínio da consciência. Schopenhauer desenvolveu uma filosofia centrada na "vontade," concebida como uma força cega e irracional que direciona o comportamento humano. Leibniz introduziu o conceito de percepções inconscientes sutis, que desempenhariam um papel crucial no pensamento e no comportamento. William James discutiu o papel dos processos automáticos e inconscientes na vida mental.

Além disso, as noções de id, ego e superego de Freud podem ser vistas como uma reinterpretação da ideia da alma tripartida de Platão, composta por logistikon, thumos e epithumia. Ora, por que os autores que traçam esses paralelos escolhem mencionar exclusivamente a psicanálise e ignoram as conexões com Platão, Nietzsche, Schopenhauer, Leibniz e James? Seria o desespero de uma pseudociência em sua tentativa de ser reconhecida como ciência?

Embora certas descobertas neurocientíficas possam, ocasionalmente, encontrar ecos distantes em alguns conceitos inventados por Freud (ou Lacan, Klein e Winnicott), isso, por si só, não confere nenhuma legitimidade à psicanálise. A ciência vai muito além de simples correlações superficiais entre descobertas empíricas e suposições conceituais; ela demanda rigor metodológico, o que inclui a definição clara dos conceitos, a formulação de hipóteses testáveis, a coleta e a análise de dados empíricos, a replicabilidade dos resultados e a capacidade de prever e explicar fenômenos de maneira consistente. A psicanálise permanece no campo da especulação, incapaz de satisfazer os critérios básicos que definem uma ciência confiável e útil.

 

Jan Leonardi é psicólogo, doutor em psicologia clínica pela USP e diretor acadêmico e científico do Instituto de Psicologia Baseada em Evidências (InPBE). Divulga conteúdo relacionado à psicologia científica em sua conta no Instagram (@janleonardi).

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