No início do mês o G1 publicou a seguinte matéria: “Suplementos alimentares eram vendidos fora da validade e com fórmula adulterada, revela investigação”. Uma quadrilha adulterava a fórmula do produto, alterava o prazo de validade das embalagens e vendia por um preço abaixo do mercado – sendo que o suposto mentor do esquema operava principalmente online.
De acordo com a matéria, a segunda fase da investigação será descobrir se houve colaboração entre a quadrilha e outras empresas do ramo de suplementos.
Infelizmente, ocorrências dessa natureza são relativamente frequentes. Em novembro do ano passado, a marca Vitafor comunicou à Anvisa a identificação de itens falsos circulando em diversas plataformas eletrônicas de venda. Os criminosos recriavam embalagens semelhantes às da marca e as preenchiam com cápsulas de conteúdo não especificado.
No entanto, esse primeiro cenário de fraude envolve revendedores como os principais criminosos. Como veremos a seguir, quase uma versão não ficcional de um conto de Agatha Christie, nem sempre esse é o caso.
A ascensão de Newmaster
No final de 2013, o professor de botânica da Universidade de Guelph (Canadá) Steven Newmaster e seus colegas publicaram um artigo intitulado “DNA barcoding detects contamination and substitution in North American herbal products”. Neste estudo, investigaram a integridade e autenticidade de produtos de saúde baseados em plantas e ervas.
Dado que não havia práticas recomendadas para identificar as espécies dos diversos ingredientes usados na composição de produtos fitoterápicos, especialmente devido à dificuldade de avaliação de biomateriais pulverizados ou processados, os autores conduziram dois testes cegos de autenticidade. Eles utilizaram a técnica de “DNA barcoding”, uma ferramenta que facilita a identificação de sequências genéticas de diferentes espécies.
Além disso, eles também definiriam critérios para classificar os produtos: autêntico (apresenta o código de barras de DNA para uma espécie que é o ingrediente principal listado no rótulo); contaminado (além do código de barras de DNA do ingrediente principal listado, contém um código de barras de outra espécie que não foi listada); e substituído (contém o código de barras de DNA de uma espécie não listada no rótulo e não há traços do DNA do ingrediente principal).
No primeiro teste, foram analisados 44 produtos fitoterápicos (41 em cápsulas; dois em pó; e um em tabletes), provenientes de 12 empresas diferentes e com 30 espécies vegetais distintas.
No segundo teste, foram analisadas 50 amostras de folhas coletadas de estufas, representando 42 espécies, incluindo todas as listas nos rótulos dos produtos fitoterápicos e algumas espécies intimamente relacionadas.
Os autores concentraram-se em responder a três questões: (1) autenticação: a planta indicada no rótulo está presente no produto?; (2) substituição: o ingrediente principal foi substituído por outras espécies?; (3) excipientes: foram utilizados materiais de preenchimento não rotulados?
Como resultado, verificou-se que nem todos os ingredientes listados nos rótulos dos produtos fitoterápicos correspondem aos que estão realmente presentes. O “DNA barcoding” classificou 48% dos produtos como autênticos. No entanto, a maioria (59%) continha espécies de plantas não declaradas nos rótulos.
Também observou-se que alguns dos produtos classificados como autênticos (33%) apresentavam contaminantes e/ou excipientes não mencionados no rótulo. Muitas amostras analisadas apresentavam contaminações por plantas conhecidas por sua toxicidade.
Em relação à substituição do ingrediente vegetal principal, verificou-se que, dos 44 produtos analisados, 32% apresentaram o problema.
Ao analisar a presença de excipientes não listados, identificaram-se soja e arroz em 21% da amostra, e também algum trigo. Ainda não está claro se essas plantas foram adicionadas intencionalmente para dar volume ao produto, ou se representariam contaminantes não intencionais.
Com base nos resultados encontrados, Newmaster e seus colegas concluem que não existem padrões para a autenticação de produtos fitoterápico. Apesar de haver consideráveis evidências dos benefícios à saúde da fitoterapia, a indústria enfrenta atividades antiéticas da parte de alguns fabricantes, incluindo publicidade enganosa, substituição de produtos, contaminação e uso de excipientes não listados. Essas práticas representam sérios riscos à saúde dos consumidores.
Esses resultados repercutiram – e muito – na mídia, ainda mais após Newmaster participar do “Supplements and Safety”, um documentário que investigou os perigos dos suplementos e vitaminas.
Em sua participação, Newmaster explicou como o “DNA barcoding” poderia sanar o problema observado em seu estudo, evitando assim que os consumidores fossem enganados pelas fabricantes.
O trabalho de Newmaster inspirou o então procurador-geral de Nova York, Eric Schneiderman, a realizar um estudo semelhante. Durante a investigação, Schneiderman e seu escritório adquiriram suplementos fitoterápicos de diferentes marcas, lojas e regiões do estado de Nova York. Os testes revelaram que apenas 21% dos produtos continham evidências de DNA da espécie listada no rótulo. Os produtos, adquiridos de quatro grandes redes varejistas, apresentaram DNA de aspargos, plantas domésticas e outras espécies, mas não da planta indicada no rótulo. Como resultado, ordenou-se que as empresas cessassem a comercialização desses produtos.
Apesar de as empresas contestarem a decisão, elas a acataram e começaram a incorporar o “DNA barcode” como ferramenta para controle de qualidade.
Esta mudança significativa, promovida por Newmaster no setor industrial, foi crucial para a sua ascensão como uma autoridade na verificação de ingredientes alimentares e suplementos. Rapidamente, grandes fabricantes do setor contrataram as empresas que ele fundou para garantir a qualidade dos produtos e certificá-los como autênticos.
O ápice na carreira de Newmaster veio em 2017, quando ele criou, em colaboração com parceiros da indústria, o Natural Health Product (NHP), uma aliança que utiliza novas ferramentas de diagnóstico molecular para enfrentar os principais problemas na autenticação de ingredientes e que está sediada dentro de sua universidade.
Gostaria de terminar o artigo aqui e afirmar que o Dr. Newmaster foi essencial para melhorar a situação dos suplementos alimentares na América do Norte – para os que não estão familiarizados, a FDA e a Canadian Food Inspection Agency (CFIA) não são tão rigorosos com esses produtos quanto a Anvisa.
No entanto, como ocorre na maioria das tramas “true crime”, esse é o momento em que há uma reviravolta no roteiro e somos surpreendidos por alguns detalhes obscuros.
A queda de um mito
Como descrito detalhadamente na revista Science, oito especialistas – incluindo um coautor de Newmaster - em “DNA barcoding” e áreas relacionadas acusaram o artigo de 2013 de fraude. Em uma carta de 43 páginas, enviada à Universidade de Guelph em junho de 2021, os reclamantes citaram grandes problemas não apenas neste estudo, mas também em outros dois artigos de Newmaster. Destacaram a falta de divulgação de possíveis conflitos de interesse financeiro por parte do autor, além de alegações graves de dados ausentes, fraudulentos ou plagiados.
Tratando especificamente do conflito de interesse, Newmaster e o geneticista Robert Hanner fundaram em 2012 a Biological ID Tecnhologies Inc., uma empresa que realizava “DNA barcoding” para alimentos e fitoterápicos, oferecendo certificações de pureza para os rótulos dos produtos.
Um ano e uma semana após a submissão do artigo, eles incorporaram uma segunda empresa chamada Tru-ID, que assumiu os negócios iniciados pela firma anterior.
Caso o possível ganho econômico não estivesse claro o suficiente, Stefan Gafner, diretor científico do American Botanical Council (ABC), uma organização sem fins lucrativos que promove o uso responsável de medicamentos fitoterápicos, destacou que pelo menos três grandes fabricantes de suplementos (Nature’s Way, Herbalife Nutrition e Jamieson) contrataram a Tru-ID e adotaram suas certificações.
Novos amigos
Curiosamente, de crítico ferrenho da indústria de suplementos, Newmaster passou a manter uma relação muito próxima com a Herbalife, promovendo seus produtos, elogiando suas práticas de cultivo e defendendo-a de um artigo científico que associava produtos da marca a danos graves no fígado de uma mulher de 24 anos (o artigo foi removido do periódico Journal of Clinical and Experimental Hepatology depois que a empresa ameaçou juridicamente a editora Elsevier).
A investigação conduzida pela Science encontrou outros problemas de conduta de Newmaster, incluindo fabricação e manipulação de dados e, até mesmo, plágio. Alguns dos documentos analisados apresentavam trechos idênticos aos encontrados na Wikipedia, por exemplo.
Se isso não fosse o suficiente, em 2014 Newmaster e Ken Thompson, na época um aluno de pós-graduação da Universidade de Guelph, escreveram um artigo intitulado “Molecular Taxonomic tools provide more accurate estimates of species richness at less cost than traditional morphology-based taxonomic practices in a vegetation survey”. O objetivo da pesquisa era determinar qual seria a melhor forma de identificar e pesquisar espécies de plantas: (1) por meio da identificação de sua morfologia; (2) ou pela extração de DNA das folhas e utilização do “barcoding”.
O segundo método apresentou-se superior, visto que identificou mais espécies, a um custo menor.
No entanto, Thompson começou a ter dúvidas sobre os dados utilizados, visto que não haviam sido publicados online na data em que o artigo afirmava e, quando postados, não corroboravam a conclusão geral do trabalho. Por conta disso, pediu que fosse realizada uma investigação interna na faculdade e pelo periódico Biodiversity and Conservation, em que o trabalho havia sido publicado. Representantes da universidade encerraram o caso e afirmaram que não seria necessária uma investigação completa. Já os editores do periódico se recusaram a investigar – pelo menos no começo.
Em 2021, o editor-chefe do jornal publicou uma retratação do artigo, listando motivos que, em resumo, apontam para a falta de informações mínimas para permitir a verificação e checagem dos resultados.
Enquanto Thompson concordou com a retratação, Newmaster não respondeu a nenhuma correspondência enviada pelo editor.
No entanto, apesar de tudo o que foi apresentado, em 2022, o comitê investigativo instituído pela Universidade de Guelph, composto por três pesquisadores, de três áreas não correlatas e sem expertise em genômica, concluiu que, embora o trabalho de Newmaster apresentasse muitas deficiências, não haveria evidências suficientes para considerá-lo culpado de má conduta científica.
Caso a história terminasse aqui, acredito que muitos experimentariam um sentimento de indignação, semelhante ao que senti ao ler as reportagens em ordem cronológica. E, apesar de não gostar da expressão “a justiça tarda, mas não falha”, ela se encaixa perfeitamente na resolução deste caso.
Sintetizando novamente uma matéria da Science. Após essa primeira derrota, os acusadores de Newmaster recorreram ao Secretariado de Conduta Responsável em Pesquisa (SRCR), uma agência federal canadense que supervisiona casos de má conduta científica envolvendo bolsas governamentais. Ao verificar as evidências entregues, em 2023 a agência concluiu que a primeira investigação realizada pela universidade foi inadequada e solicitou outra.
O novo comitê investigativo da Universidade de Guelph, que contou com dois especialistas de outras universidades, concordou com todas as preocupações da reclamação original, exceto o plágio.
Além disso, o painel de investigadores afirmou que a universidade deveria solicitar a retratação do artigo histórico que deu notoriedade a Newmaster, publicado na BMC Medicine, pois, além de ser baseado em dados fabricados e falsificados, os métodos utilizados não refletem com precisão o que foi realmente feito.
Ainda não se sabe o que acontecerá com Newmaster. Seus críticos esperam que ele renuncie aos cargos de diretor da NHP e professor de botânica da Universidade de Guelph ou seja removido pela instituição. Entretanto, até o momento, ele mantém ambas as posições, e a universidade se recusa a comentar se ele sofrerá penalidades ou poderá recorrer da conclusão do comitê.
Apesar do trabalho de Newmaster ser, muito provavelmente, fraudulento, é inegável que a discussão por trás dele é extremamente válida e precisa ser tratada com seriedade.
Sem uma fiscalização adequada, vigilância pós-comercialização e protocolos de padronização para assegurar a qualidade, os suplementos alimentares e, mais especificamente, os fitoterápicos, continuarão a apresentar qualidade duvidosa e poderão causar sérios problemas de saúde. Se não tivéssemos a Anvisa – como alguns conspiracionistas do meio natural gostam de fantasiar –, garanto que casos como o observado em 2022, de uma moça que tomou um chá emagrecedor e faleceu, seriam muito mais frequentes.
Mauro Proença é jornalista
REFERÊNCIAS
FANTÁSTICO. Suplementos alimentares eram vendidos fora da validade e com fórmula adulterada, revela investigação. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/06/09/suplementos-alimentares-eram-vendidos-fora-da-validade-e-com-formula-adulterada-revela-investigacao.ghtml.
NEWMASTER, S. et al. DNA barcoding detects contamination and substitution in North American herbal products. BMC Med. 2013 Oct 11:11:222. Disponível em: https://bmcmedicine.biomedcentral.com/articles/10.1186/1741-7015-11-222.
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