O Rio Grande do Sul vive uma tragédia sem precedentes com as consequências das chuvas dos últimos dias. Milhares perderam suas casas, e uma centena, talvez mais, estão mortos. O Guaíba, por exemplo, em Porto Alegre, está no maior nível já registrado, fazendo com que vários bairros da capital estejam embaixo da água, fora outras regiões do interior do estado.
Diante dessa tragédia, eis que aparece uma notícia de que uma Bíblia fora encontrada praticamente intacta em meio aos destroços deixados pelas inundações, surpreendendo até mesmo a equipe de resgate. Para completar, um dos trechos presentes na página aberta no momento da descoberta aponta uma suposta lição, a de que "Deus ensina por meio do sofrimento".
Bem, talvez você já imagine para onde vai essa conversa: há quem veja, aí, um fato que só pode ser decorrência de algum tipo de intervenção divina, afinal não é fácil (para algumas pessoas) aceitar que a Bíblia saia ilesa “apenas” por obra do acaso, ainda mais aberta numa passagem tão “significativa”. Vamos, nesta discussão, desconsiderar, por irrelevante, a possibilidade de que o vídeo viralizado da descoberta do livro, aberto e intacto, tenha sido o que teólogos chamam de "fraude piedosa", uma encenação criada para transmitir fé.
Crenças individuais são, é claro, questões de foro íntimo, mas quando um apelo à incredulidade pessoal – isso “não poderia” ter ocorrido por acaso – vira argumento no debate público e, mais ainda, parte da tentativa de impor uma interpretação muito peculiar à tragédia nacional, não é descabido submeter essa incredulidade à análise racional.
Questão de perspectiva
Parece que o salvamento da Bíblia no Rio Grande do Sul não é o único do tipo que se tem registro. No início de 2021, pai e filho se envolveram em um acidente, ambos dirigindo caminhões. O veículo do filho, que vinha atrás, não conseguiu frear após uma manobra e colidiu na traseira do pai. Houve incêndio depois da batida e o filho faleceu. O pai, então, apresenta uma Bíblia retirada do caminhão do filho, apenas levemente chamuscada.
O fato, no entanto, é que não são apenas objetos de interesse religioso que sobrevivem “inexplicavelmente” a desastres: estes são apenas os que tendem a chamar mais a atenção, dado o clima cultural prevalente. “Objetos sobreviventes” são comuns nos mais variados cenários, e o “inexplicável” torna-se “explicável” ao considerarmos uma série de fatores: estavam esses objetos abrigados ou protegidos de alguma maneira? Foram carregados ou arremessados por alguma força externa? Se sim, de que intensidade? Algum destroço acabou por protegê-los? Objetos distintos sofrerão danos distintos. No fim, surpresas acontecem.
Dado o número imenso de objetos arrastados pelas cheias que atingem o Rio Grande do Sul, seria inevitável que alguns tivessem destinos inusitados: em um milhão de eventos, é provável que ocorra algo que tem apenas uma chance em um milhão de acontecer.
Vejamos, por exemplo, casos de pares de sapatos retirados dos destroços de um acidente de avião: se fossem misturados em uma estante de sapatos usados, não seria uma tarefa fácil identificar quais vieram diretamente do acidente. Outro exemplo curioso é o caso de um porta-retratos encontrado ainda ostentando uma foto – e sem nenhum arranhão – nos destroços deixados depois que o furacão Ian (categoria 5) passou pela Flórida, nos Estados Unidos: imagine o tamanho do alarde que seria feito sobre o caso se a imagem fosse de alguma figura religiosa...
O sofrimento
Mas e quanto ao suposto “recado” de conforto emocional obtido por meio do trecho destacado na página aberta da Bíblia resgatada no Rio Grande do Sul?
Curiosamente, esse versículo em particular (identificado como Jó 36:15) tem traduções conflitantes em diferentes edições da Bíblia. Por exemplo, na Nova Versão Transformadora, voltada para o público protestante e publicada no Brasil em 2016 (atualizada em 2020), lemos: “Mas, por meio do sofrimento, Ele livra os que sofrem e, por meio da adversidade, obtém sua atenção”. O que é compatível com a ideia de que Deus ensina pela dor: é o sofrimento que liberta e chama a atenção. Já na edição oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, católica, de 2018), a mesma passagem aparece como: “Deus, porém, libertará da angústia o pobre e na tribulação lhe dará ouvido”. Nessa versão, o pobre, ou sofredor, é libertado “da” angústia, não “pela” angústia, e quem ouve é Deus. Que diferença uma preposição faz!
Qual versão está certa? Ambas? Nenhuma? Realmente, não interessa. Este é um problema para teólogos e filólogos. O que vale a pena comentar, por aqui, é a noção mais geral de que o sofrimento teria valor didático.
Isto é, no mínimo, questionável: desconfiamos de que mesmo os mais ferrenhos defensores de que a ideia seja verdadeira seriam contrários a aplicá-la no cotidiano escolar. O que fariam os pais se seus filhos fossem submetidos a tamanho sofrimento emocional, propositalmente, apenas para aprenderem “alguma coisa” com a experiência?
Que situações trágicas podem fazer as pessoas reavaliar ações, relacionamentos e atitudes, é uma coisa; e imaginar que a dor nos torna melhores é uma forma de buscar conforto psicológico. Tentar “tirar algo de bom” de uma catástrofe pode ser um mecanismo eficaz de higiene mental, mas realmente imaginar que o Universo orquestrou uma onda de morte e destruição apenas como uma espécie de apresentação power-point para benefício dos sobreviventes é de um narcisismo patológico.
A única lição que a dor de uma tragédia realmente pode trazer é a de que deveríamos ter feito algo para evitá-la – e de que devemos fazer algo para que não se repita no futuro. As mudanças climáticas não perfazem um cenário hipotético para o qual apenas as gerações futuras precisarão se preparar. Elas já fazem parte do nosso cotidiano.
Precisamos de políticas públicas que visam a melhorar a situação climática do futuro e, para o presente, que mitiguem os efeitos de tragédias climáticas como essa. Infelizmente, tudo indica que deuses, livros sagrados e o Universo não vão resolver nossos problemas climáticos. Será que seres humanos vão?
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)