No último dia 11 de março participei do programa Roda Viva, na TV Cultura, como integrante da bancada convidada para entrevistar o físico Marcelo Gleiser, em razão do lançamento do livro “O Despertar do Universo Consciente”. O programa pode ser acessado na íntegra neste link. Exponho aqui minhas impressões e considerações a respeito do livro e da entrevista, já que o formato do programa não é adequado para um debate direto entre entrevistadores e entrevistado.
O objetivo do livro é provocar uma mudança de visão de mundo para recuperar um sentimento "sagrado" pela biosfera, para que ela seja preservada. Um dos primeiros problemas que saltam à vista, porém, é que a história mostra, desde os primórdios do Homo sapiens, que não existe consenso possível sobre o que é “sagrado”: crucificam-se pessoas, queimam-se mulheres e destroem-se prédios com aviões.
Ainda que o autor não queira dar um sentido religioso, confessional, ao termo “sagrado”, usando-o para referir-se a uma “sacralidade secular”, a proposta mostra-se, no mínimo, ingênua. É como dizer que para acabar com as guerras basta que as pessoas se amem – pode ser bonito, mas é completamente desconectado da realidade.
Associar a veneração do sagrado a algo necessariamente bom não só é uma falácia – basta ver que as pessoas são capazes de identificar trechos absurdos da Bíblia, mostrando que o senso de sacralidade é construído socialmente, e não imposto por uma autoridade sobrenatural ou fruto de um sentimento ou intuição superior – como o fervor religioso normalmente está ligado a algo ruim: quando o apego ao “sagrado” se coloca acima de tudo, edifícios são derrubados por aviões.
Isso não quer dizer que devamos abandonar um comportamento responsável em relação ao consumo de alimentos, produção de lixo e respeito ao meio ambiente, mas o convencimento da sociedade deve ser feito através de políticas públicas bem embasadas e apoiadas por dados objetivos – é neste ponto que os cientistas podem atuar de maneira bastante positiva. Não se faz política pública baseada em bons sentimentos (“bons” em que quadro de referência?) ou em impressão pessoal.
Além de ser desnecessária, a introdução do sagrado para a salvação do planeta não decorre da exposição factual feita por Gleiser na primeira parte do livro. Os fatos científicos ali apresentados estão corretos, mas a conclusão geral da obra não decorre dessa primeira parte – aceitar a afirmação de que a beleza das descobertas científicas basta para embasar o manifesto sentimental que vem depois será um gesto de eventual boa vontade do leitor, não uma conclusão lógica construída pela força de fatos e argumentos. A conclusão e a tese central não derivam das premissas – “O Despertar do Universo Consciente” é um non sequitur sofisticado: a validade científica da parte factual não passa, por osmose, para o restante do livro.
A prática de usar premissas corretas para gerar a impressão de que elucubrações questionáveis estão bem sustentadas é algo que normalmente se vê em textos pseudocientíficos. Os textos começam com algo sofisticado, citando filósofos e cientistas. O leitor não compreende direito o que o autor escreveu, mas fica com uma sensação de que a culpa é dele mesmo por desconhecer conceitos complexos. Vestida a roupagem científica, o caminho está aberto para dizer qualquer coisa. Isto não se aplica exatamente ao livro de Gleiser, mas ao longo de sua carreira o autor não deixou de instigar uma intersecção entre ciência e espiritualidade, que resultou na conquista do Prêmio Templeton a ele.
O físico Sean Carroll escreveu em seu blog que o objetivo da Fundação Templeton é confundir a linha entre a ciência e a religião, fazendo parecer que as duas coisas fazem parte de um grande projeto. Para a religião, pode ser interessante essa confusão, haja vista as várias tentativas de colocar ensino de criacionismo nas escolas, mas a ciência nada ganha com o estabelecimento dessa falsa equivalência.
O climatologista Michael Mann acusa as grandes empresas petrolíferas de empurrar a responsabilidade de deter o aquecimento global para o indivíduo e suas “pegadas pessoais de carbono”, enquanto continuam a extrair óleo do planeta. Esse desvio de foco é essencialmente o que o livro de Gleiser propõe: vamos fomentar bons sentimentos no povo, e assim os grandes problemas estruturais que ameaçam a biosfera sumirão sozinhos. Nas palavras de Mann, “se as pessoas começam a achar que parar de viajar de avião e de comer carne é uma forma mais eficiente de combater a mudança climática do que pressionar governos para que limitem as emissões de CO2 de importantes setores da economia e invistam em fontes limpas de energia, isso é a estratégia do desvio funcionando.”
É certo que não fará mal ler o “Despertar do Universo Consciente” na Toscana, “bebendo Brunello e comendo maravilhosos prosciuttos”, mas o manifesto está mais para uma solução mágica, à la hippies tentando levitar o Pentágono para interromper a Guerra do Vietnã, do que para uma proposta real para ser levada a sério.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência