Cuidado com os testes comerciais de microbioma

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15 mar 2024
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bactérias E. coli

 

Nos últimos anos, cada vez mais pesquisas apontam para a importância do microbioma - o conjunto de microrganismos que habita nossos corpos, como as bactérias e fungos em nossos intestinos que ajudam na digestão, ou as bactérias presentes na pele ou saliva - em diversos aspectos da saúde humana, tanto física quanto mental. De olho nisso, muitas empresas começaram a oferecer "testes de microbioma" diretamente para o público. As companhias vendem os testes alegando que são capazes de detectar se o microbioma dos clientes é "saudável" ou se ele está em "disbiose" (fora de equilíbrio), e sugerem que, se este for o caso, pode estar ali a causa de diversos problemas de saúde.

À semelhança dos testes genéticos de ancestralidade e de supostos riscos hereditários à saúde também vendidos direto ao público, como o 23andMe e outros, no entanto, estes testes de microbioma não têm validade analítica ou relevância clínica: em outras palavras, não trazem informação que possa ser usada de forma correta e  responsável na tomada de decisões sobre saúde. Portanto, é preciso maior regulação do setor pelas autoridades sanitárias, apontam pesquisadores da área em artigo de perspectiva publicado na edição desta semana da prestigiada revista Science.

"As alegações das empresas, de terem a capacidade de detectar microbiomas 'anormais', não são fundamentadas em pesquisas; os processos de testagem carecem de validade analítica, e os resultados não têm validade clínica demonstrada", escrevem. "Como resultado, os consumidores podem ser explorados financeiramente ou prejudicados pelo uso impróprio dos resultados dos testes, que nem eles, nem seus médicos entendem".

 

Avaliação independente

Os autores do artigo não tiraram estas conclusões do nada. Como parte de um projeto financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH), primeiro fizeram um levantamento online de empresas no mundo inteiro que estão oferecendo estes testes e revisaram as informações que fornecem ao público sobre seus serviços. Os pesquisadores também conduziram entrevistas e promoveram grupos de foco - um método de pesquisa qualitativa - com pesquisadores na área de microbioma, médicos que tratam pacientes com condições crônicas nos intestinos e vagina, pacientes e consumidores que usaram ou têm acesso a estes tipos de testes. Por fim, montaram um grupo de trabalho com pesquisadores do microbioma, médicos, especialistas em regulação de equipamentos e serviços para medicina e representantes da indústria e consumidores, para discutir os desafios regulatórios trazidos por estes testes.

Ao todo, os pesquisadores identificaram 31 empresas oferecendo testes de microbioma diretamente para os consumidores, das quais 17 sediadas nos EUA. Observaram que o setor atrai principalmente pessoas saudáveis que estão curiosas para saber mais sobre seu microbioma, assim como indivíduos sofrendo com doenças crônicas que podem estar relacionadas a ele, como síndrome de Crohn, síndrome do intestino irritável e vaginose bacteriana.

Embora o foco da maioria das companhias esteja no microbioma intestinal, algumas também oferecem análises dos microbiomas da vagina e da pele. Novamente, seus processos lembram os usados pelas empresas de testes genéticos: os consumidores encomendam um kit de testagem, respondem a um questionário sobre saúde e estilo de vida, coletam amostras de fezes, da vagina ou da pele, e enviam para análise por um laboratório da empresa.

Esta análise, em geral, descreve a composição taxonômica dos micro-organismos presentes nas amostras e sua abundância relativa e, em alguns casos, incluem as funções metabólicas presentes ou observadas destes micróbios. Junto também vai uma avaliação, muitas vezes utilizando um gráfico, de se o microbioma está numa faixa "saudável" ou não, conclusão supostamente baseada em comparações com pessoas saudáveis ou que tenham doenças ou condições crônicas.

E aí está o primeiro problema, apontam os autores do artigo. Não se sabe exatamente o que são e qual a composição do banco de dados que as empresas usam para fazer a comparação. Em alguns casos, ele pode ser propriedade da empresa, composto pelos resultados de todos seus clientes, e não representar a população em geral. A empresa também pode ter comprado dados de pacientes diagnosticados com certas doenças ou condições crônicas, novamente não tendo como base uma amostra representativa da população.

Além disso, se o microbioma dos clientes está fora da faixa "saudável", as empresas complementam o relatório com sugestões de mudança na dieta ou consumo de suplementos para melhorar o "equilíbrio" do microbioma intestinal. Assim, não é de surpreender que os autores do artigo tenham descoberto que quase a metade das empresas que vendem estes testes caseiros de microbioma também comercializam os suplementos que recomendam. Por fim, as companhias também buscam assegurar o retorno destes clientes, aconselhando a repetição periódica dos testes para avaliar os efeitos das mudanças na dieta e/ou dos suplementos. Algumas empresas oferecem até assinaturas e serviços de nutricionistas, observam os autores do artigo.

 

Sem validade científica

Os pesquisadores destacam então que as três características fundamentais da adequação e benefício de um exame, no contexto da saúde humana, são: a validade analítica do teste em si; e sua validade e utilidade clínicas. Aspectos que estes testes "caseiros" de microbioma não têm, dizem.

Quanto à validade analítica, ela pressupõe, por exemplo, estabelecer taxas de falsos positivos e falsos negativos, o que, no caso dos testes de microbioma, envolveria saber se eles superestimam ou subestimam a abundância relativa dos micro-organismos nas amostras. Mas no caso do microbioma, afirmam, isto é impossível de determinar, já que as ferramentas bioinformáticas usadas pelas empresas não são capazes de reconhecer e identificar todos os micro-organismos das amostras, não permitindo então conhecer as abundâncias relativas.

Já a validade clínica tem como princípio o exame ser capaz de determinar a existência de uma doença, o que no caso dos testes de microbioma, significa saber se eles podem realmente definir um estado de saúde ou doença. O que, por sua vez, leva à sua utilidade clínica, isto é, se esta determinação pode levar a uma ação clínica útil, uma intervenção que poderia ser aplicada para "tratar" o indivíduo. Os autores frisam que a utilidade clínica dos testes de microbioma é questionável, já que há pouca ou nenhuma evidência apoiando as intervenções geralmente recomendadas a partir dos resultados desses exames, como dietas, suplementos, exercícios ou outras mudanças de estilo de vida.

"Sem validade analítica, a primeira destas características fundamentais de adequação e benefício de um exame, os resultados dos testes não têm sentido", afirmam. "Além disso, determinar se uma amostra é característica de de um estado 'saudável' ou não requer a comparação com um padrão. E, no momento, não existe consenso do que constitui um microbioma humano saudável em qualquer população ou subpopulação".

Pior, muitos destes testes se mostraram não confiáveis em seus resultados, com variações nas análises da mesma amostra feitas por empresas diferentes, e até pela mesma empresa. Os autores citam como exemplo resultados preliminares de um estudo ainda em curso de pesquisadores do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos EUA (NIST, na sigla em inglês) em que foram enviadas três amostras iguais de material fecal padronizado para sete empresas diferentes. Apesar da composição idêntica de todas as amostras, os resultados foram discrepantes tanto entre as diferentes empresas quanto nas análises feitas pela mesma empresa.

 

Necessidade de regulação

Diante disso tudo, os autores do artigo na Science defendem uma regulamentação mais rigorosa para a comercialização e realização destes testes de microbioma. Eles observam que embora muitas das empresas afirmem que seus testes não têm fins "diagnósticos", suas estratégias de marketing frequentemente inferem isso, levando as pessoas a acreditar que são baseados em evidências científicas e clinicamente relevantes. Isso também leva muitas pessoas a acreditar que estes testes são fiscalizados pelas agências de regulamentação sanitária - FDA nos EUA, ou Anvisa no Brasil -, quando na verdade estão no limbo dos produtos não regulados de saúde e bem-estar, como os suplementos alimentares.

"A falta de regulamentação destes testes pode colocar os consumidores em risco de danos quando eles se baseiam em resultados imprecisos e acatam recomendações nutricionais ou de suplementos alimentares sem comprovação", avaliam. "Estes danos podem incluir autodiagnósticos errôneos, atraso na procura por tratamento médico e substituir remédios prescritos por suplementos não medicamentosos".

Outra preocupação é com pessoas que já sofrem com doenças ou condições de saúde diagnosticadas, outro grande público destes testes, e que podem ver neles e seus resultados uma alternativa de tratamento:

"Muitos indivíduos que buscam estes testes têm doenças crônicas e estão desesperados para tentar qualquer coisa para mitigar sua dor e sofrimento. Como estes testes são em grande parte desregulados, não estão sujeitos a notificar efeitos adversos, mas temos casos relatados por gastroenterologistas de danos. Em um dos grupos de foco que promovemos, um gastroenterologista pediátrico relatou pacientes que desenvolveram desordens de restrição alimentar depois de seguirem as recomendações das empresas de testes de microbioma para evitar determinados alimentos".

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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