Mamão contra dengue? Um mito da ciência medíocre

Artigo
5 mar 2024
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mosquito

 

Não existe “remédio natural” eficaz contra a dengue, a menos que se considere o combate ao mosquito uma atitude “natural”. A despeito disso, uma “fake news” tem circulado no Kwai e em outras mídias sociais afirmando que o “chá de folha de mamão combate a dengue”. Felizmente, essa alegação já foi desmentida por alguns veículos de imprensa como FSP e Aos Fatos.

No entanto, alerto que essa mentira pode ressurgir no ano que vem. Não se trata de profecia, mas de uma constatação baseada nos canais de “cura natural” que venho acompanhando há algum tempo.

Para termos uma noção da imensidão deste problema, um dos canais a que me refiro tem mais de 3 milhões de inscritos, dissemina essa mesma “fake news” há mais de quatro anos e, infelizmente, convence parte do público.

A abordagem oferecida por esses canais é clássica: apresentam-nos um outsider que, ao passar por um episódio traumático, abandona os remédios da “Big Pharma” e encontra respostas nas plantas medicinais e sabedorias ancestrais. Entretanto, não basta ganhar simpatia; é preciso convencer a audiência de que a solução mágica realmente funciona.

Entre as muitas artimanhas que podem ser usadas, quatro se destacam: o conhecido cherry picking, ou atenção seletiva, que envolve peneirar os estudos e pesquisas disponíveis sobre o assunto até que só restem os que corroboram o ponto de vista desejado; tratar como equivalentes estudos realizados in vitro, em modelos animais e ensaios clínicos randomizados, duplo-cego e placebo controlados; fazer o apelo ao natural, uma falácia lógica que parte do pressuposto de que tudo que é natural é superior a produtos manufaturados e sintéticos – para uma abordagem mais aprofundada, há dois artigos publicados na RQC que tratam desse assunto, basta clicar aqui e aqui.

Por último, temos a utilização de experiências anedóticas – casos isolados, individuais – com o tempero da falácia lógica post hoc ergo propter hoc, algo como “se depois disso, por causa disso”. Aqui, os exemplos são muitos. No entanto, o que mais encontrei nos comentários foi: “eu estava com dengue, tomei o chá de folhas de mamão e melhorei”.

 

Dengue

A dengue é causada por um vírus transmitido por fêmeas da espécie de mosquito Aedes aegypti. Esse vírus existe em quatro diferentes configurações, ou “sorotipos”, que os cientistas, sempre muito criativos, identificam por números: dengue vírus (“DENV”) 1, 2, 3 e 4. Sobreviver à infecção por um sorotipo confere imunidade contra ele, mas não contra os demais.

A doença se apresenta em duas formas: dengue clássica e a dengue febre hemorrágica, mais perigosa, já que pode causar hemorragias – isto é, sangramentos graves.

O sangue contém estruturas chamadas plaquetas, ou trombócitos, que são essenciais para reparar vasos sanguíneos e na cicatrização de feridas – para evitar, enfim, grandes sangramentos. Em artigo intitulado “Platelets in dengue infection”, o pesquisador Eugenio Hottz e colegas observam que o vírus da dengue já foi detectado nas células que dão origem às plaquetas e em plaquetas circulantes. Esse vírus pode induzir a redução no número de plaquetas por meio dessas interações.

Mesmo sem contaminar diretamente as plaquetas ou seus precursores, o vírus da dengue pode reduzir seu número. Em resumo, o vírus pode tanto atrapalhar a produção de novas plaquetas como destruir parte das que já existem.

Embora um baixo nível de plaquetas aumente o risco de hemorragias e dificulte o processo de cicatrização, ele não deve ser a principal preocupação no manejo da dengue.

 

E o mamão?

Seria leviandade afirmar que sei de onde esse boato veio; entretanto, ao pesquisar o assunto, encontrei um artigo intitulado “Suco de folha de mamão pode curar a dengue”, cujo autor se apresenta como engenheiro agrônomo e naturopata. Embora a onda deste ano seja o chá, e não o suco, tenho uma forte impressão de que ambas as variações utilizam a mesma base teórica. Como todo o cuidado é pouco quando tratamos de saúde, já aviso que os próximos parágrafos – por mais científicos que possam soar – não passam de propaganda naturalista mequetrefe.

Segundo o artigo, a folha da planta apresenta propriedades curativas para a malária, câncer e dengue. Isso, supostamente, graças a duas enzimas presentes nas folhas de mamoeiro, a quimopapaína e a papaína. De acordo com o clínico geral Sanath Hettige, em seu artigo publicado no Sri Lankan Journal of Family Physicians em 2008, tais enzimas têm o efeito de normalizar a contagem de plaquetas, dissolver as proteínas que atuam no processo inflamatório, melhorar a função hepática e reparar os danos causados no fígado em decorrência da dengue.

O artigo sobre suco de papaia e dengue desafia: “a alegação de que não houve estudos sobre a eficácia terapêutica do mamão contra dengue não resiste à prova da verdade. Pesquisas no banco de dados PubMed mostram detalhes de cinco estudos, incluindo uma pesquisa pré-clínica e clínica sobre os efeitos terapêuticos das folhas de mamão”.

Levando o desafio a sério, constatamos que somente dois desses estudos foram realizados em humanos: um relato de caso e um ensaio clínico randomizado, controlado, com 228 pacientes que foram diagnosticados com dengue ou dengue hemorrágica – trataremos desse mais abaixo. Ambos apontaram efeitos positivos das folhas de mamão na produção plaquetária.

Apesar de utilizar de jargões científicos e mimetizar, em muitos aspectos, um artigo sério – por exemplo, citando as referências utilizadas –, ele ilustra perfeitamente o quanto é fácil é enganar um público mais desavisado e fragilizado. Estamos diante de uma aplicação dos truques escritos no notório livro “Como mentir com estatísticas”, do jornalista americano Darrell Huff. Embora tenha sido publicado em 1954, a obra continua atual.

Parafraseando uma das passagens mais memoráveis: “Os trambiqueiros já conhecem os truques de como enganar com dados; os homens honestos precisam aprendê-los para se defenderem”.

 

O "melhor" estudo

Dando o benefício da dúvida, decidi verificar na íntegra a qualidade do ensaio clínico realizado em humanos.

Trata-se de Carica papaya Leaves Juice Significantly Accelerates the Rate of Increase in Platelet Count among Patients with Dengue Fever and Dengue Haemorrhagic Fever, de autoria de Subenthiran, S. et al (2013) e publicado no periódico Evidence Based Complementary Alternative Medicine.

Trata-se de um ensaio clínico randomizado, aberto – ou seja, sem “cegamento” – e controlado, que contou com 228 voluntários. Participaram pacientes de dengue comum ou hemorrágica (graus I e II) de 18 a 60 anos, com baixa contagem de plaquetas. Foram controlados alguns outros marcadores bioquímicos. Foram excluídos da amostra pacientes com comorbidades; grávidas e lactantes; pessoas que receberam transfusão sanguínea ou outro produto sanguíneo; e que apresentavam dengue hemorrágica de grau III e IV.

Os voluntários do grupo intervenção receberam o tratamento padrão de dengue e 50 gramas de suco fresco das folhas de Carica papaya (mamoeiro) uma vez ao dia, 15 minutos após o café da manhã, por três dias consecutivos.  O grupo controle, por sua vez, recebeu apenas o manejo padrão para dengue.

A mensuração da contagem média de plaquetas foi realizada inicialmente oito horas após a admissão e, em seguida, de oito em oito horas até totalizar 48 horas.

Como resultado, viu-se que ambos os grupos apresentaram aumento plaquetário após 40 horas. No entanto, somente o grupo de intervenção teve aumento significativo quando comparado ao início da pesquisa. Em relação à eficácia global da suplementação com o suco de folhas de mamoeiro, verificou-se que, independentemente do tempo, não houve diferenças significativas na contagem média de plaquetas entre os grupos. Entretanto, ao analisar o efeito do suplemento ao longo do período do estudo, observou-se uma interação significativa entre o tratamento e a passagem do tempo.

Esse efeito tempo-tratamento tornou-se evidente quando o grupo intervenção apresentou uma contagem de plaquetas maior do que o grupo controle nas medições de 40 e 48 horas.

Com base nisso, os autores concluem que a administração de suco de folhas de mamoeiro para a dengue clássica e hemorrágica é segura e eleva rapidamente a contagem de plaquetas.

Vamos destilar isso: na média geral, não houve diferença entre os grupos, ou seja, não se viu efeito do suco de folha de papaia. Mas, quando se fez uma contagem por intervalos de tempo, houve dois períodos em que o grupo que tomou suco se saiu melhor do que o controle, exatamente os períodos finais do estudo. Daí, os autores concluíram que o suco é seguro e eficaz.

Os pesquisadores não produziram uma seção – ou pelo menos um parágrafo – no artigo científico descrevendo as limitações do trabalho, então assumirei essa árdua tarefa.

Acredito que todos concordam que a limitação mais evidente foi o estudo ser aberto. A falta de cegamento pode impactar nos resultados encontrados, já que tanto os participantes quanto os pesquisadores acabam sendo suscetíveis a vieses, como, por exemplo, notificação (basicamente, os autores tendem a suprimir dados que poderiam dificultar a publicação do estudo ou enaltecer aqueles que facilitariam a publicação) e performance (a forma como a equipe de saúde e os pesquisadores tratam os pacientes).

Além disso, destaca-se que a pesquisa apresentou um tamanho amostral inicialmente baixo (290 pacientes) e, ao longo de sua execução, esse número diminui ainda mais, chegando a 228 (62 participantes foram excluídos da análise, sendo que 38 perderam o acompanhamento e 24 apresentaram dados incompletos), o que pode ter aumentado o risco de viés de atrito. O problema aqui é simples: a perda de participantes em um estudo resulta em uma perda de dados que pode comprometer os resultados encontrados.

Por fim, mas não menos importante, é preciso salientar que encontrar resultados positivos em uma pesquisa não é o mesmo que estabelecer um consenso científico. Para um achado ser validado, é preciso que sobreviva ao princípio da reprodutibilidade e, claro, passe pelo escrutínio de metodologias científicas mais rigorosas.

Aproveitando do gancho criado no último parágrafo, Rajaakse, S. et al. publicaram uma revisão sistemática e metanálise intitulada “Carica papaya extract in dengue: a systematic review and meta-analysis” na revista BCM Complementary and Alternative Medicine.

No início da busca, foram encontrados 141 artigos; no entanto, ao utilizar os critérios de inclusão (ensaios clínicos com grupo controle), somente nove permaneceram.

Como resultado, observou-se que os ensaios clínicos eram heterogêneos, apresentando diferentes concentrações da dose de Carica papaya (CP), métodos de mensuração, categorização de pacientes, entre outros. Além disso, destaca-se que a maior parte dos estudos foi classificada como de qualidade “baixa” ou “moderada” e apresentou alto risco de viés

Tendo isso em mente, os autores ressaltam a necessidade de conduzir um grande ensaio clínico randomizado, duplo-cego, placebo controlado para avaliar os possíveis benefícios do extrato de CP.

Em conclusão, os pesquisadores afirmam que a evidência atual sobre os possíveis efeitos benéficos do extrato de CP no tratamento da infecção por dengue é limitada, sendo baseada em ensaios de qualidade baixa e moderada. Embora haja resultados apontando relação entre o extrato e aumento na contagem de plaquetas e diminuição no tempo de internação, destaca-se que muitos desses estudos apresentaram falhas metodológicas significativas.

Concluem os autores que a utilização rotineira de extrato de CP para o tratamento da dengue não deve ser recomendada, com base nas evidências atualmente disponíveis.

Afirmação respaldada pelo “Management of Dengue Infection in Adults (Third Edition)” de 2015, um documento elaborado em colaboração entre o Ministério da Saúde da Malásia e a Academia de Medicina da Malásia, e que apresenta diretrizes clínicas práticas para profissionais da saúde.

Realizando uma tradução livre:

“Alimentos e suplementos, como extrato/suco de folhas de Carica papaya, tawa-tawa, bebidas isotônicas comerciais, entre outros, carecem de evidências robustas que comprovem cientificamente seu papel na prevenção de complicações, aceleração da recuperação ou cura da infecção por dengue. É importante observar que o principal problema a ser tratado nas infecções por dengue é o vazamento plasmático e/ou questões de ativação imunológicas, não apenas a baixa contagem de plaquetas. A manipulação isolada de contagem de plaquetas não altera o curso clínico da doença, visto que se trata, apenas, de um marcador substituto da progressão da doença. O vazamento plasmático e a disfunção de órgãos devem ser o foco principal do tratamento”.

Suco de folhas de mamão, por enquanto, só se você gostar do sabor – o que me parece improvável.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

HOTTZ, E. et al. Platelets in Dengue Infection. Drug Discovery Today. Vol. 8, e33-e38. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/36506/ve_Hottz_Eugenio_etal_INI_2011.pdf?sequence=2&is.

HUFF, D. Como mentir com estatística.  Rio de Janeiro: Intrínseca. 2016.

SUBENTHIRAN, S. et al .Carica papaya Leaves Juice Significantly Accelerates the Rate of Increase in Platelet Count Among Patients with Dengue Fever and Dengue Haemorrhagic Fever. Evid Based Complement Alternat Med. 2013:2013:616737. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3638585/.

RAJAPAKSE, S. et al. Carica papaya extract in dengue: a systematic review and meta-analysis. BMC Complement Altern Med. 2019 Oct 11;19(1):265. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6788024/.

Ministry of Health Malaysia. Clinical Practice Guidelines: Management of Dengue Infection in Adults (Third Edition). 2015. Disponível em: https://www.moh.gov.my/moh/resources/penerbitan/CPG/CPG%20Dengue%20Infection%20PDF%20Final.pdf.

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